sábado, 3 de abril de 2021
Governo e sua corte promovem Baile da Ilha Letal
No dia 9 de novembro de 1889, uma semana antes da Proclamação da República, a monarquia não poderia estar mais alheia à realidade. Ignorando completamente o momento político do país, a realeza promoveu um baile suntuoso, gastando para isso um orçamento equivalente a 10% do orçamento total da Província do Rio de Janeiro, o que seria hoje o equivalente ao Estado do Rio.
Carta escrita por uma jovem da época, publicada na revista Veja História, descreve o baile como um “local encantado e habitado por fadas”. Com o país à beira de uma reviravolta, a Corte vivia em um mundo à parte.
No Ministério da Saúde, gastou-se verba pública para pôr o charme de influenciadores a serviço do kit covid. E o Conselho Federal de Medicina, em meio a maior crise sanitária da história, emite nota de repúdio contra a revalidação do diploma de médico emitido fora do país, porque isso coloca em risco a vida dos brasileiros, mas não emite nota contra a prescrição de curas milagrosas que, surpreendentemente, também colocam em risco a vida dos brasileiros. Na Ilha Letal, onde as fadas podem ser substituídas pelos fantasmas dos três senadores ceifados pela pandemia, tudo é possível.
Do lado de cá, no mundo real, pessoas morrem. Mas os defensores da Coroa, que ignoram a realidade mesmo sem convite para o baile, não gostam de ter seus “direitos” tolhidos. Como crianças mimadas, fazem birra. Como assim, não posso ir à praia? Ao shopping?
Mentem para si mesmos. O Brasil não está tão mal assim, se você olhar os números certos. Em mortes por milhão, dizem eles, tem gente muito pior. E excluem os dados que importam: o Brasil tem 3% da população mundial, mas concentra 12% das mortes. No meio desta semana, um de cada três mortos por Covid no mundo era brasileiro.
O Brasil parece uma classe de educação infantil onde o professor saiu, e quem ficou tomando conta da sala foi o líder da turma do fundão, o bully agressivo que tem raiva de todo mundo.
Essa coluna deveria ser sobre ciência. Chama-se, afinal, A Hora da Ciência. Infelizmente, a ciência já não tem hora nem vez no Brasil. Dizem que quando D. Pedro II chegou ao Baile da Ilha Fiscal, teria tropeçado, e ao se recompor, teria dito: “O monarca escorregou, mas a monarquia não caiu”. Uma semana depois, veio a Proclamação da República. O Presidente Jair Bolsonaro disse que não seria uma gripezinha que iria derrubá-lo. Não, presidente. A gripezinha derrubou o país. O senhor segue dançando, no Baile da Ilha Letal. Dança sobre os mortos do Brasil.
Natalia Pasternak
Carta escrita por uma jovem da época, publicada na revista Veja História, descreve o baile como um “local encantado e habitado por fadas”. Com o país à beira de uma reviravolta, a Corte vivia em um mundo à parte.
Hoje, a sensação é a mesma. Não temos governo, temos realeza. Sua Majestade Jair 00 passeia de jet ski enquanto o povo sufoca até a morte. A Corte, agora conhecida como “centrão”, preocupa-se mais em aprovar projetos de lei para empurrar suas próprias vacinas, de preferência passando por cima da Anvisa. Também é urgente para a Corte aumentar o teto de reembolso de saúde dos deputados em 170%. Devem estar preocupados com o custo da UTI em dólar, já que no Brasil até o setor privado entrou em colapso.
No Ministério da Saúde, gastou-se verba pública para pôr o charme de influenciadores a serviço do kit covid. E o Conselho Federal de Medicina, em meio a maior crise sanitária da história, emite nota de repúdio contra a revalidação do diploma de médico emitido fora do país, porque isso coloca em risco a vida dos brasileiros, mas não emite nota contra a prescrição de curas milagrosas que, surpreendentemente, também colocam em risco a vida dos brasileiros. Na Ilha Letal, onde as fadas podem ser substituídas pelos fantasmas dos três senadores ceifados pela pandemia, tudo é possível.
Do lado de cá, no mundo real, pessoas morrem. Mas os defensores da Coroa, que ignoram a realidade mesmo sem convite para o baile, não gostam de ter seus “direitos” tolhidos. Como crianças mimadas, fazem birra. Como assim, não posso ir à praia? Ao shopping?
Mentem para si mesmos. O Brasil não está tão mal assim, se você olhar os números certos. Em mortes por milhão, dizem eles, tem gente muito pior. E excluem os dados que importam: o Brasil tem 3% da população mundial, mas concentra 12% das mortes. No meio desta semana, um de cada três mortos por Covid no mundo era brasileiro.
O Brasil parece uma classe de educação infantil onde o professor saiu, e quem ficou tomando conta da sala foi o líder da turma do fundão, o bully agressivo que tem raiva de todo mundo.
Essa coluna deveria ser sobre ciência. Chama-se, afinal, A Hora da Ciência. Infelizmente, a ciência já não tem hora nem vez no Brasil. Dizem que quando D. Pedro II chegou ao Baile da Ilha Fiscal, teria tropeçado, e ao se recompor, teria dito: “O monarca escorregou, mas a monarquia não caiu”. Uma semana depois, veio a Proclamação da República. O Presidente Jair Bolsonaro disse que não seria uma gripezinha que iria derrubá-lo. Não, presidente. A gripezinha derrubou o país. O senhor segue dançando, no Baile da Ilha Letal. Dança sobre os mortos do Brasil.
Natalia Pasternak
Bolsonaro representa a vitória dos piores contra os melhores
O governo Bolsonaro representa a vitória dos piores quadros contra as melhores cabeças do país. Claro que há exceções, mas a regra é a do triunfo da ruindade, à semelhança do despreparo técnico e político do presidente. Numa situação como essa, sem paralelo na história brasileira, é preciso mais do que uma carta ressaltando o rotundo fracasso no combate à covid-19. É fundamental que a sociedade e a elite do país pressionem para mudar diversas políticas públicas, em suas concepções e seus dirigentes despreparados, antes que a tragédia se aprofunde mais, com efeitos perversos para todos.
A famosa “Carta do PIB e seus economistas”, como foi chamada na semana passada, isolou completamente o governo, que se arrisca a ficar com o apoio apenas dos fiéis do bolsonarismo. O grupo com maior faro de poder no país, o Centrão, já percebeu que, mantida a linha atual de combate à pandemia, quem apoiar Bolsonaro terá dificuldades nas eleições estaduais e parlamentares de 2022. Muitos criticaram o movimento da elite social e dos congressistas, que só abriram os olhos agora, quando a catastrófica política sanitária colocou o Brasil numa situação próxima à barbárie. Trata-se de uma crítica pertinente, mas não é o maior problema dessa movimentação política.
Quem quiser se mobilizar contra a situação reinante, seja que grupo for, precisa fazer não uma, mas várias cartas. Obviamente que a questão mais urgente é a pandemia, e já foi um avanço a elite brasileira sair da sua narrativa única em torno da economia. Todavia, a incompetência técnica, a insensibilidade política e humanitária, a criação de narrativas sem pé nem cabeça e o desejo maior de destruir o que existe se sobrepujando à capacidade de se construir alternativas são características que estão em quase todas as partes da Esplanada dos Ministérios. O fracasso em cada política pública afeta os tempos presente e futuro do país.
Na política externa, a opção pela política antiglobalista da extrema direita tornou o país um pária internacional. Esse projeto já atrapalhou a negociação por vacinas, somando-se a outros equívocos absurdos da política sanitária. Só que os erros dessa canhestra visão diplomática vão atrapalhar outros objetivos da nação: com a atual diretriz, não há chances de o Brasil entrar na OCDE, não haverá diálogo relevante com a América Latina, não há espaço para ampliar a cooperação com a China e as relações com o governo Biden serão muito difíceis. As relações internacionais geralmente são menos visíveis para a população em geral e, por isso, é fundamental ressaltar que os erros atuais podem custar empregos, oportunidades de mercado e parcerias geopolíticas fundamentais ao país.
O estrago na área ambiental pode ser ainda maior. O meio ambiente se tornou um dos principais temas da agenda internacional contemporânea e, ao mesmo tempo, constitui um ativo estratégico brasileiro na sua relação com o mundo. Ter uma política desastrosa sobre esta questão, como há hoje com o ministro Ricardo Salles, pode gerar obstruções políticas e econômicas vindas do mundo desenvolvido. Além disso, quanto mais tempo o país incentivar na Amazônia o faroeste dos desmatadores, garimpeiros e da agricultura ou pecuária predatória, mais isso poderá ter efeitos sobre o próprio clima do país, atingindo particularmente o regime de chuvas do centro-sul. Isso é um tiro no pé, podendo afetar o lado mais dinâmico da economia brasileira.
Tal como na política externa, a gestão ambiental bolsonarista não se baseia em evidências científicas, em práticas que estão dando certo no mundo ou que foram bem-sucedidas no Brasil. Vale relembrar: em ambas as áreas, o país foi uma referência nas últimas décadas, comandadas por profissionais de grande qualidade. Em seu lugar, entrou o pior time possível, gestores com quase nenhuma experiência e com ideias, no mínimo, exóticas. Fica a lição que não só a atuação equivocada em política econômica custa caro ao país.
Um dos exemplos mais paradigmáticos do “governo dos piores” que administra o país é a educação. O MEC já teve três ministros efetivos e um que não chegou a assumir porque mentiu sobre seu currículo - fato simbólico de um governo com quadros despreparados para a função. Em meio à pandemia, que fechou escolas e agravou a desigualdade entre os alunos, o ministério não fez praticamente nada para ao menos reduzir os efeitos dessa crise sanitária. O ministro chegou a dizer que a responsabilidade era dos estados e municípios, lavando as mãos e demonstrando sua insensibilidade e incompetência.
Pior: os ideólogos do MEC, que não entendem nada de gestão pública, só propõem ideias que destoam completamente das experiências bem-sucedidas, tanto internacionalmente como no Brasil. Há modelos educacionais com grande sucesso no país, como nos exemplos do Ceará e de Pernambuco, e o governo federal não os leva em consideração para fazer suas propostas. A comparação piora quando se observa que o país não está seguindo o que é feito pelos 30 países com melhores resultados no exame internacional do Pisa (Programme for International Students Assessment), adotando uma agenda que não é utilizada como referência em nenhum lugar relevante do mundo.
No lugar das boas práticas internacionais, o MEC abraçou o homeschooling (educação domiciliar), a escola sem partido, a militarização da educação e o enfraquecimento dos modelos de avaliação. Todas essas medidas enfraquecem institucionalmente as escolas, desprofissionalizam o ofício do professor, retiram do Estado o papel de pensar um currículo universal, concebem o aluno como um sujeito dependente apenas das regras definidas por suas famílias, em suma, destroem um legado de cerca de 30 anos de reformas educacionais que fizeram a escolarização chegar aos mais pobres. Eis aí mais um viés do “governo dos piores” montado por Bolsonaro: ele não admite nem ataca profundamente o problema da desigualdade. Que país legaremos aos nossos filhos e netos com esse modelo de despreparados movidos por um darwinismo social?
Uma “Carta do PIB” ou de qualquer outro segmento social não pode negligenciar que o governo Bolsonaro está destruindo a principal ponte para o futuro, que é a educação. Óbvio que a tragédia na saúde assusta mais no curto prazo porque estão morrendo milhares de pessoas. Sem ignorar esse fato, é preciso evitar o desmonte completo da política educacional, que agora chegou ao Inep, principal órgão de pesquisa e avaliação do país. Destruir esse órgão é garantir a vitória da ideologia de extrema direita sobre a ciência.
Boa parte daqueles que não são bolsonaristas-raiz votaram no atual presidente por causa da proposta de política econômica. É bem provável que estejam agora insatisfeitos com os resultados, afinal a política liberal prometida está bem longe de ser colocada na prática. Verdade que a equipe econômica, quando comparada ao resto do governo, é quase um oásis. Porém, mesmo essa possibilidade de ilha de excelência foi frustrada por dois fatos. Primeiro, grande parcela do grupo foi embora antes de o governo terminar. Frustrados com a prática efetiva, pensaram que não poderiam manchar seus currículos com uma experiência malsucedida.
Além disso, a competência de gestão não é apenas técnica, pois as habilidades relacionais e de ação política são variáveis-chave dos bons governos. Basta lembrar de outras equipes econômicas que fizeram planos de estabilização e reformas amplas bem-sucedidas. Esse critério claramente piora a avaliação de Paulo Guedes. Uma liderança pública efetiva sabe planejar bem seus projetos, consegue motivar todos os membros do ministério, tem bom diálogo com a sociedade e, sobretudo, com os políticos. E, acima de tudo, deve gerar o menor nível de conflito possível, algo que só atrapalha os resultados da política econômica.
Por estes critérios, o Ministério da Economia está longe do modelo ideal. Precisaria ter lideranças como Felipe Salto, presidente da Instituição Fiscal Independente: elegante, dialoga bem com todas as partes, conhece profundamente o tema e entrega o que planeja. Esse exemplo não serve aqui apenas para polemizar. Cito esse gestor para dizer algo fundamental: o Brasil tem gente milhões de vezes mais qualificada para fazer políticas de saúde, educação, meio ambiente, relações exteriores e política econômica. Poderíamos ter agora um “governo dos melhores”, vindo de partidos diferentes, em vez desse grupo de despreparados que estão levando o país para o buraco.
A substituição do atual “governo dos piores” por um “governo dos melhores” depende de três coisas. Primeiro, escolher gente mais qualificada, técnica e politicamente, que saiba o que efetivamente dá certo em cada política pública. Segundo, ampliar o leque de temas importantes para o país, indo além da questão econômica, evitando assim a miopia que tem caracterizado o debate público brasileiro. Por fim, fazer cartas mais amplas em termos de composição social e visões de mundo, pois só desse modo será possível gerar um movimento profundo de transformação da realidade para todos. Basta lembrar que o maior problema do Brasil é a desigualdade, e combatê-la vai exigir uma aliança de várias forças sociais, incluindo os mais afetados por esse modelo perverso, que ficou mais patente com a pandemia.
A famosa “Carta do PIB e seus economistas”, como foi chamada na semana passada, isolou completamente o governo, que se arrisca a ficar com o apoio apenas dos fiéis do bolsonarismo. O grupo com maior faro de poder no país, o Centrão, já percebeu que, mantida a linha atual de combate à pandemia, quem apoiar Bolsonaro terá dificuldades nas eleições estaduais e parlamentares de 2022. Muitos criticaram o movimento da elite social e dos congressistas, que só abriram os olhos agora, quando a catastrófica política sanitária colocou o Brasil numa situação próxima à barbárie. Trata-se de uma crítica pertinente, mas não é o maior problema dessa movimentação política.
Quem quiser se mobilizar contra a situação reinante, seja que grupo for, precisa fazer não uma, mas várias cartas. Obviamente que a questão mais urgente é a pandemia, e já foi um avanço a elite brasileira sair da sua narrativa única em torno da economia. Todavia, a incompetência técnica, a insensibilidade política e humanitária, a criação de narrativas sem pé nem cabeça e o desejo maior de destruir o que existe se sobrepujando à capacidade de se construir alternativas são características que estão em quase todas as partes da Esplanada dos Ministérios. O fracasso em cada política pública afeta os tempos presente e futuro do país.
Na política externa, a opção pela política antiglobalista da extrema direita tornou o país um pária internacional. Esse projeto já atrapalhou a negociação por vacinas, somando-se a outros equívocos absurdos da política sanitária. Só que os erros dessa canhestra visão diplomática vão atrapalhar outros objetivos da nação: com a atual diretriz, não há chances de o Brasil entrar na OCDE, não haverá diálogo relevante com a América Latina, não há espaço para ampliar a cooperação com a China e as relações com o governo Biden serão muito difíceis. As relações internacionais geralmente são menos visíveis para a população em geral e, por isso, é fundamental ressaltar que os erros atuais podem custar empregos, oportunidades de mercado e parcerias geopolíticas fundamentais ao país.
O estrago na área ambiental pode ser ainda maior. O meio ambiente se tornou um dos principais temas da agenda internacional contemporânea e, ao mesmo tempo, constitui um ativo estratégico brasileiro na sua relação com o mundo. Ter uma política desastrosa sobre esta questão, como há hoje com o ministro Ricardo Salles, pode gerar obstruções políticas e econômicas vindas do mundo desenvolvido. Além disso, quanto mais tempo o país incentivar na Amazônia o faroeste dos desmatadores, garimpeiros e da agricultura ou pecuária predatória, mais isso poderá ter efeitos sobre o próprio clima do país, atingindo particularmente o regime de chuvas do centro-sul. Isso é um tiro no pé, podendo afetar o lado mais dinâmico da economia brasileira.
Tal como na política externa, a gestão ambiental bolsonarista não se baseia em evidências científicas, em práticas que estão dando certo no mundo ou que foram bem-sucedidas no Brasil. Vale relembrar: em ambas as áreas, o país foi uma referência nas últimas décadas, comandadas por profissionais de grande qualidade. Em seu lugar, entrou o pior time possível, gestores com quase nenhuma experiência e com ideias, no mínimo, exóticas. Fica a lição que não só a atuação equivocada em política econômica custa caro ao país.
Um dos exemplos mais paradigmáticos do “governo dos piores” que administra o país é a educação. O MEC já teve três ministros efetivos e um que não chegou a assumir porque mentiu sobre seu currículo - fato simbólico de um governo com quadros despreparados para a função. Em meio à pandemia, que fechou escolas e agravou a desigualdade entre os alunos, o ministério não fez praticamente nada para ao menos reduzir os efeitos dessa crise sanitária. O ministro chegou a dizer que a responsabilidade era dos estados e municípios, lavando as mãos e demonstrando sua insensibilidade e incompetência.
Pior: os ideólogos do MEC, que não entendem nada de gestão pública, só propõem ideias que destoam completamente das experiências bem-sucedidas, tanto internacionalmente como no Brasil. Há modelos educacionais com grande sucesso no país, como nos exemplos do Ceará e de Pernambuco, e o governo federal não os leva em consideração para fazer suas propostas. A comparação piora quando se observa que o país não está seguindo o que é feito pelos 30 países com melhores resultados no exame internacional do Pisa (Programme for International Students Assessment), adotando uma agenda que não é utilizada como referência em nenhum lugar relevante do mundo.
No lugar das boas práticas internacionais, o MEC abraçou o homeschooling (educação domiciliar), a escola sem partido, a militarização da educação e o enfraquecimento dos modelos de avaliação. Todas essas medidas enfraquecem institucionalmente as escolas, desprofissionalizam o ofício do professor, retiram do Estado o papel de pensar um currículo universal, concebem o aluno como um sujeito dependente apenas das regras definidas por suas famílias, em suma, destroem um legado de cerca de 30 anos de reformas educacionais que fizeram a escolarização chegar aos mais pobres. Eis aí mais um viés do “governo dos piores” montado por Bolsonaro: ele não admite nem ataca profundamente o problema da desigualdade. Que país legaremos aos nossos filhos e netos com esse modelo de despreparados movidos por um darwinismo social?
Uma “Carta do PIB” ou de qualquer outro segmento social não pode negligenciar que o governo Bolsonaro está destruindo a principal ponte para o futuro, que é a educação. Óbvio que a tragédia na saúde assusta mais no curto prazo porque estão morrendo milhares de pessoas. Sem ignorar esse fato, é preciso evitar o desmonte completo da política educacional, que agora chegou ao Inep, principal órgão de pesquisa e avaliação do país. Destruir esse órgão é garantir a vitória da ideologia de extrema direita sobre a ciência.
Boa parte daqueles que não são bolsonaristas-raiz votaram no atual presidente por causa da proposta de política econômica. É bem provável que estejam agora insatisfeitos com os resultados, afinal a política liberal prometida está bem longe de ser colocada na prática. Verdade que a equipe econômica, quando comparada ao resto do governo, é quase um oásis. Porém, mesmo essa possibilidade de ilha de excelência foi frustrada por dois fatos. Primeiro, grande parcela do grupo foi embora antes de o governo terminar. Frustrados com a prática efetiva, pensaram que não poderiam manchar seus currículos com uma experiência malsucedida.
Além disso, a competência de gestão não é apenas técnica, pois as habilidades relacionais e de ação política são variáveis-chave dos bons governos. Basta lembrar de outras equipes econômicas que fizeram planos de estabilização e reformas amplas bem-sucedidas. Esse critério claramente piora a avaliação de Paulo Guedes. Uma liderança pública efetiva sabe planejar bem seus projetos, consegue motivar todos os membros do ministério, tem bom diálogo com a sociedade e, sobretudo, com os políticos. E, acima de tudo, deve gerar o menor nível de conflito possível, algo que só atrapalha os resultados da política econômica.
Por estes critérios, o Ministério da Economia está longe do modelo ideal. Precisaria ter lideranças como Felipe Salto, presidente da Instituição Fiscal Independente: elegante, dialoga bem com todas as partes, conhece profundamente o tema e entrega o que planeja. Esse exemplo não serve aqui apenas para polemizar. Cito esse gestor para dizer algo fundamental: o Brasil tem gente milhões de vezes mais qualificada para fazer políticas de saúde, educação, meio ambiente, relações exteriores e política econômica. Poderíamos ter agora um “governo dos melhores”, vindo de partidos diferentes, em vez desse grupo de despreparados que estão levando o país para o buraco.
A substituição do atual “governo dos piores” por um “governo dos melhores” depende de três coisas. Primeiro, escolher gente mais qualificada, técnica e politicamente, que saiba o que efetivamente dá certo em cada política pública. Segundo, ampliar o leque de temas importantes para o país, indo além da questão econômica, evitando assim a miopia que tem caracterizado o debate público brasileiro. Por fim, fazer cartas mais amplas em termos de composição social e visões de mundo, pois só desse modo será possível gerar um movimento profundo de transformação da realidade para todos. Basta lembrar que o maior problema do Brasil é a desigualdade, e combatê-la vai exigir uma aliança de várias forças sociais, incluindo os mais afetados por esse modelo perverso, que ficou mais patente com a pandemia.
O fracasso de Bolsonaro
Não foi por falta de aviso, a pandemia da covid-19 no Brasil virou um problema do mundo. Todos os países importantes do globo, seja pelo seu poder econômico, seja pelo militar e/ou pelas dimensões demográficas, estão domando a pandemia com cuidados pessoais, medidas de isolamento social, testes em massa, cuidados médicos e, finalmente, vacinas. Menos o Brasil, que registra quase quatro mil mortos por dia e, no embalo que vai, pode ultrapassar em muito os 400 mil mortos nos próximos três meses. Os problemas da economia — recessão, crise fiscal, desemprego etc. — são consequência. E podem se agravar ainda mais com as medidas que estão sendo tomadas por outros países para confinar o Brasil, em razão das novas variantes do coronavírus que estão surgindo por aqui.
O presidente Jair Bolsonaro fez todas as apostas erradas. Apostou que a covid-19 era só uma gripezinha; que a segunda onda não existia. Imaginou que defendendo a manutenção da atividade econômica teria uma luz no fim do túnel da recessão, não levando em conta que os problemas estruturais da nossa economia antecedem a pandemia. Acreditou que o Brasil poderia fazer um leilão para comprar as vacinas mais baratas, quando elas ficassem prontas, em vez de investir em uma delas quando ainda estavam em fase de testes, para ter a opção de compra quando fossem liberadas para aplicação em massa. Perdeu todas.
Gostem ou não, quem se precaveu e apostou no planejamento para enfrentar a pandemia foi o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que enfrenta o epicentro da segunda onda, mesmo sendo o estado com melhor sistema de saúde pública e maior poder econômico da federação. São Paulo já entregou ao Ministério da Saúde 36 milhões de doses da vacina produzida pelo Butantan em parceria com os chineses, a CoronaVac, das quais 3 milhões e 400 mil na quinta-feira. Vejam bem, com uma população estimada em 45 milhões de pessoas, com o que já produziu, poderia ter vacinado 80% da população paulista e controlado a pandemia, mas está carregando o Plano Nacional de Imunizações nas costas.
Até agora, a Fiocruz só conseguiu produzir 4 milhões de vacinas da Oxford/AstraZeneca. Está atrasada por culpa do presidente Jair Bolsonaro, que contingenciou como pôde a produção das vacinas, na gestão do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. É o resultado dos ataques à China, no bojo de uma política externa desastrada, que também nos colocou em rota de colisão com o novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Entretanto, faça-se a ressalva, o que ainda existe de planejamento no governo federal para o combate à pandemia deve-se à Fiocruz, cujos cientistas estão na linha de frente do monitoramento e do esclarecimento da população sobre a pandemia e têm um papel estratégico no Sistema Único de Saúde (SUS).
Todas as tentativas feitas para coordenar as ações dos entes federados — estados e municípios — no combate à pandemia, inclusive pelo Ministério da Saúde, foram sabotadas por Bolsonaro. Agora, o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que tenta liderar uma ação nacional conjunta, está enfrentando as mesmas dificuldades que os ex-titulares Henrique Mandetta e Nelson Teich enfrentaram. Com o agravante de que assumiu com mais de 300 mil mortos no país, herança da desastrada passagem do general Eduardo Pazuello pela pasta.
É uma tragédia nacional que Bolsonaro se recusa a ver, talvez porque saiba que a conta está no seu colo. Optou por uma estratégia de confronto que inviabiliza qualquer solução para esses problemas. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que até agora matou no peito a CPI do Ministério da Saúde, começa a cair na real de que o mundo caminha numa direção e Bolsonaro insiste na outra. Tenta coordenar a relação do Ministério da Saúde com governadores e prefeitos sem ter os instrumentos para isso. Garante a governabilidade na pandemia, mas a capacidade de governança passa longe.
O presidente Jair Bolsonaro fez todas as apostas erradas. Apostou que a covid-19 era só uma gripezinha; que a segunda onda não existia. Imaginou que defendendo a manutenção da atividade econômica teria uma luz no fim do túnel da recessão, não levando em conta que os problemas estruturais da nossa economia antecedem a pandemia. Acreditou que o Brasil poderia fazer um leilão para comprar as vacinas mais baratas, quando elas ficassem prontas, em vez de investir em uma delas quando ainda estavam em fase de testes, para ter a opção de compra quando fossem liberadas para aplicação em massa. Perdeu todas.
Gostem ou não, quem se precaveu e apostou no planejamento para enfrentar a pandemia foi o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que enfrenta o epicentro da segunda onda, mesmo sendo o estado com melhor sistema de saúde pública e maior poder econômico da federação. São Paulo já entregou ao Ministério da Saúde 36 milhões de doses da vacina produzida pelo Butantan em parceria com os chineses, a CoronaVac, das quais 3 milhões e 400 mil na quinta-feira. Vejam bem, com uma população estimada em 45 milhões de pessoas, com o que já produziu, poderia ter vacinado 80% da população paulista e controlado a pandemia, mas está carregando o Plano Nacional de Imunizações nas costas.
Até agora, a Fiocruz só conseguiu produzir 4 milhões de vacinas da Oxford/AstraZeneca. Está atrasada por culpa do presidente Jair Bolsonaro, que contingenciou como pôde a produção das vacinas, na gestão do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. É o resultado dos ataques à China, no bojo de uma política externa desastrada, que também nos colocou em rota de colisão com o novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Entretanto, faça-se a ressalva, o que ainda existe de planejamento no governo federal para o combate à pandemia deve-se à Fiocruz, cujos cientistas estão na linha de frente do monitoramento e do esclarecimento da população sobre a pandemia e têm um papel estratégico no Sistema Único de Saúde (SUS).
Todas as tentativas feitas para coordenar as ações dos entes federados — estados e municípios — no combate à pandemia, inclusive pelo Ministério da Saúde, foram sabotadas por Bolsonaro. Agora, o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que tenta liderar uma ação nacional conjunta, está enfrentando as mesmas dificuldades que os ex-titulares Henrique Mandetta e Nelson Teich enfrentaram. Com o agravante de que assumiu com mais de 300 mil mortos no país, herança da desastrada passagem do general Eduardo Pazuello pela pasta.
É uma tragédia nacional que Bolsonaro se recusa a ver, talvez porque saiba que a conta está no seu colo. Optou por uma estratégia de confronto que inviabiliza qualquer solução para esses problemas. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que até agora matou no peito a CPI do Ministério da Saúde, começa a cair na real de que o mundo caminha numa direção e Bolsonaro insiste na outra. Tenta coordenar a relação do Ministério da Saúde com governadores e prefeitos sem ter os instrumentos para isso. Garante a governabilidade na pandemia, mas a capacidade de governança passa longe.
O que é genocídio — e as formas que assume no Brasil
Manifestações denunciando a política do Governo Federal no tratamento à Covid-19, utilizando-se das palavras “genocida” e “genocídio” vêm se tornando cada vez mais frequentes no Brasil.
Na quinta-feira (18/3), cinco manifestantes abriram uma faixa chamando o presidente Jair Bolsonaro de “genocida” em frente ao Palácio do Planalto, na Praça dos Três Poderes, e foram detidos pela Polícia Militar do Distrito Federal. Quatro deles foram liberados após a tentativa de serem enquadrados por cometer crime contra a Lei de Segurança Nacional.
O incomodo do governo com a associação ao termo “genocida” tem levado a abertura de inquéritos pela Polícia Federal ou pela Polícia Civil nos estados para investigar pessoas que relacionaram o presidente ao crime de genocídio. Um dos casos recentes foi o do youtuber Felipe Neto, no Rio de Janeiro.
Outro caso foi o do advogado Marcelo Feller. Durante uma das edições do quadro “O Grande Debate”, da emissora CNN, ele se referiu a Bolsonaro como “genocida, politicamente falando”, “criminoso” e “omisso”. A investigação, a mando do ministro da Justiça André Mendonça, foi arquivada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) por falta de justa causa.
Por conta da sucessão de aberturas de investigações devido as críticas ao presidente, um grupo de nove advogados entrou com habeas corpus coletivo no Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 18 de março pedindo um salvo conduto para impedir investigações e processos contra todos que realizarem críticas à forma como o presidente tem conduzido a pandemia da covid-19, “inclusive por sua qualificação como ‘genocida’”.
O grupo argumenta que o uso do termo faz parte do direito fundamental à liberdade de expressão e crítica. Para pesquisadores ouvidos pela Ponte é preciso reconhecer o processo de genocídio instalado no Brasil, afim de que haja responsabilização civil e penal dos perpetradores das práticas genocidas.
Como nasceu o termo genocídio?
O termo genocídio surge em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. Raphael Lemkin, um advogado de origem judaica nascido na Rússia Imperial (no país hoje conhecido como Belarus), analisou o sistema legal da ocupação nazista na Europa em sua obra Axis Rule in Occupied Europe e cunhou o termo genocídio para representar, inicialmente, o Holocausto de judeus (e também de homossexuais, ciganos e outros grupos minoritários) levado a cabo por Adolf Hitler e seus seguidores.
O termo está atrelado “à ameaça à existência de uma coletividade e, portanto, à ordem social em si. Além da morte física, o genocídio refere-se à destruição econômica, política e cultural de uma comunidade”, como explica Marcos Queiroz, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), doutorando em Direito na Universidade de Brasília, com passagens na Duke University e Universidad Nacional de Colombia (Programa Abdias Nascimento – CAPES).
Em 1948 o conceito foi inserido na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio da Organização das Nações Unidas (ONU), onde se estabeleceu de forma mais ampla e tornou o genocídio passível de punição. “Trata-se de genocídio quaisquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como assassinato de membros do grupo; dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; transferência forçada de menores do grupo para outro grupo”, diz o tratado.
Novos massacres voltaram a surgir, como a morte de mais de 800 mil pessoas em Ruanda, no conflito entre hutus e tutsis, entre 1990 e 1994 e as mortes de muçulmanos bósnios mortos pelas forças militares e paramilitares sérvias durante os conflitos nos Balcãs nos anos 1990. Desta forma, as disputas políticas e jurídicas pelo termo seguem ocorrendo, como explica Marcos.
Segundo ele, um dos debates diz sobre a própria aplicação das normas internacionais, muitas vezes vistas como ambíguas ou pouco objetivas, e também em relação à abrangência do conceito. “Se genocídio abrangeria também o genocídio cultural, atrelado a práticas de supremacismo étnico-racial e colonial e à imposição de uma cultura sobre a outra, como Lemkin defendia, ou se genocídio se refere somente à morte física. Ademais, como também aponta a pesquisadora Ana Flauzina, há a ideia de ‘singularidade do Holocausto’, ou seja, de que o Holocausto teria sido o único genocídio existente”.
Na prática, atrelar o termo genocídio apenas ao Holocausto impede que outros fatos sejam caracterizados também como genocidas. “Em termos políticos e jurídicos, a alegação dessa singularidade impede o reconhecimento de outros fenômenos como genocídios, seja o extermínio de povos indígenas, o colonialismo, a escravidão e, mais contemporaneamente, as políticas de morte contra populações não-brancas e a gestão da Covid-19 no país. Tal aspecto aponta uma tendência da jurisprudência internacional, que é o não reconhecimento de genocídios praticados por grupos brancos contra populações negras e indígenas”, explica Marcos.
Na mesma linha, o professor livre-docente em Jornalismo, Informação e Sociedade da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), Dennis de Oliveira lembra que práticas não-explicitas de eliminar um grupo étnico devem ser chamadas de genocídio, como é o caso do racismo no Brasil, negado por alguns intelectuais brancos. “Ele [o racismo] é marcado por práticas não-explícitas, mas tem uma consequência física e a ameaça a população negra. Então, o movimento negro chama de genocídio essas práticas estruturais do Estado brasileiro contra a população negra”.
O que é o genocídio indígena? E o genocídio negro?
A dizimação dos povos indígenas no país é amplamente conhecida e mencionada nos livros escolares dos brasileiros. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1500, ano da chegada de Pedro Álvares Cabral e do início da colonização portuguesa no Brasil, a população indígena era de aproximadamente 3 milhões de habitantes.
Em 1650, apenas 700 mil indígenas sobreviveram e, em 1957, o número mais baixo foi registrado, eram somente 70 mil. De lá para cá, a população indígena voltou a crescer: segundo o Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, são hoje 817.963 indígenas vivendo no Brasil.
De acordo com o livro “O Mundo Indígena na América Latina – Olhares e Perspectivas“, o Brasil é líder no genocídio de índios na América Latina, diferentemente da Bolívia, onde os indígenas são mais do que a metade da população e estão presentes intensamente no México, Colômbia, Venezuela, Equador e Paraguai.
Apesar de terem seus direitos garantidos na Constituição de 1988, os povos indígenas ainda sofrem com o racismo, com a alta letalidade da Covid-19 e com o desmonte das políticas ambientais e sociais indigenistas, fato que levou o Instituto Socioambiental (ISA), a Conectas Direitos Humanos e a Comissão Arns a denunciarem o risco elevado de genocídio contra os indígenas brasileiros isolados no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra neste mês.
Já o genocídio da população negra brasileira, que corresponde a 56,1% do total de brasileiros, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua de 2019 do IBGE, perpassa séculos, começando no Brasil com o massacre imposto pela escravidão implantada no século XVII e que terminou no final no século XIX. Até os dias de hoje o cenário é de morte.
Segundo o Atlas da Violência de 2020, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em 2018, os negros representaram 75,7% das vítimas de todos os homicídios. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública também divulgou em 2020 que os negros correspondem a 79,1% das vítimas de intervenções policiais que resultam em morte no Brasil.
É baseado nessas e em outras estatísticas que o termo genocídio pode ser utilizado no caso das populações negras e indígenas no Brasil, segundo o professor Marcos Queiroz. “O eugenismo fundamenta as políticas de limpeza racial que marcaram o Brasil da virada do século XIX para o XX. Depois, mesmo com a ideologia da mestiçagem e da democracia racial, negros e indígenas foram incorporados à nação como elementos culturais, muitas vezes estereotipados e subalternizados, não como sujeitos políticos”.
Além disso, “o aumento do encarceramento e do extermínio nas periferias e nas zonas rurais, é um prolongamento de um projeto nacional em que sujeitos não-brancos não têm vez, a não ser na vala”, diz o professor.
Para ele, a pandemia do novo coronavírus reforçou algumas dinâmicas desse processo. “Primeiramente, indígenas e negros estão entre os grupos mais afetados pela pandemia. Por exemplo, a mortalidade por Covid-19 entre indígenas é 16% maior do que no restante da população e apenas 19% dos imunizados no Brasil são pretos ou pardos, que constituem 56% dos brasileiros. Ou seja, mesmo no meio de uma desgraça generalizada, os mais afetados são justamente aqueles que mais são violentados no país. O racismo calibra os efeitos sociais do vírus”.
Para explicar o genocídio negro e indígena, Marcos retoma o conceito de “devir negro”, trazido por Achille Mbembe. “Por mais que negros e indígenas sejam os mais afetados pela pandemia, nota-se uma tendência daquilo que Achille Mbembe chama de ‘devir negro’ do mundo, ou seja, a extensão da condição de extermínio reservada aos sujeitos não-brancos à totalidade do corpo social. O que era comum a negros e indígenas se tornou comum a todos”.
Na quinta-feira (18/3), cinco manifestantes abriram uma faixa chamando o presidente Jair Bolsonaro de “genocida” em frente ao Palácio do Planalto, na Praça dos Três Poderes, e foram detidos pela Polícia Militar do Distrito Federal. Quatro deles foram liberados após a tentativa de serem enquadrados por cometer crime contra a Lei de Segurança Nacional.
O incomodo do governo com a associação ao termo “genocida” tem levado a abertura de inquéritos pela Polícia Federal ou pela Polícia Civil nos estados para investigar pessoas que relacionaram o presidente ao crime de genocídio. Um dos casos recentes foi o do youtuber Felipe Neto, no Rio de Janeiro.
Outro caso foi o do advogado Marcelo Feller. Durante uma das edições do quadro “O Grande Debate”, da emissora CNN, ele se referiu a Bolsonaro como “genocida, politicamente falando”, “criminoso” e “omisso”. A investigação, a mando do ministro da Justiça André Mendonça, foi arquivada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) por falta de justa causa.
Por conta da sucessão de aberturas de investigações devido as críticas ao presidente, um grupo de nove advogados entrou com habeas corpus coletivo no Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 18 de março pedindo um salvo conduto para impedir investigações e processos contra todos que realizarem críticas à forma como o presidente tem conduzido a pandemia da covid-19, “inclusive por sua qualificação como ‘genocida’”.
O grupo argumenta que o uso do termo faz parte do direito fundamental à liberdade de expressão e crítica. Para pesquisadores ouvidos pela Ponte é preciso reconhecer o processo de genocídio instalado no Brasil, afim de que haja responsabilização civil e penal dos perpetradores das práticas genocidas.
Como nasceu o termo genocídio?
O termo genocídio surge em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. Raphael Lemkin, um advogado de origem judaica nascido na Rússia Imperial (no país hoje conhecido como Belarus), analisou o sistema legal da ocupação nazista na Europa em sua obra Axis Rule in Occupied Europe e cunhou o termo genocídio para representar, inicialmente, o Holocausto de judeus (e também de homossexuais, ciganos e outros grupos minoritários) levado a cabo por Adolf Hitler e seus seguidores.
O termo está atrelado “à ameaça à existência de uma coletividade e, portanto, à ordem social em si. Além da morte física, o genocídio refere-se à destruição econômica, política e cultural de uma comunidade”, como explica Marcos Queiroz, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), doutorando em Direito na Universidade de Brasília, com passagens na Duke University e Universidad Nacional de Colombia (Programa Abdias Nascimento – CAPES).
Em 1948 o conceito foi inserido na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio da Organização das Nações Unidas (ONU), onde se estabeleceu de forma mais ampla e tornou o genocídio passível de punição. “Trata-se de genocídio quaisquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como assassinato de membros do grupo; dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; transferência forçada de menores do grupo para outro grupo”, diz o tratado.
Novos massacres voltaram a surgir, como a morte de mais de 800 mil pessoas em Ruanda, no conflito entre hutus e tutsis, entre 1990 e 1994 e as mortes de muçulmanos bósnios mortos pelas forças militares e paramilitares sérvias durante os conflitos nos Balcãs nos anos 1990. Desta forma, as disputas políticas e jurídicas pelo termo seguem ocorrendo, como explica Marcos.
Segundo ele, um dos debates diz sobre a própria aplicação das normas internacionais, muitas vezes vistas como ambíguas ou pouco objetivas, e também em relação à abrangência do conceito. “Se genocídio abrangeria também o genocídio cultural, atrelado a práticas de supremacismo étnico-racial e colonial e à imposição de uma cultura sobre a outra, como Lemkin defendia, ou se genocídio se refere somente à morte física. Ademais, como também aponta a pesquisadora Ana Flauzina, há a ideia de ‘singularidade do Holocausto’, ou seja, de que o Holocausto teria sido o único genocídio existente”.
Na prática, atrelar o termo genocídio apenas ao Holocausto impede que outros fatos sejam caracterizados também como genocidas. “Em termos políticos e jurídicos, a alegação dessa singularidade impede o reconhecimento de outros fenômenos como genocídios, seja o extermínio de povos indígenas, o colonialismo, a escravidão e, mais contemporaneamente, as políticas de morte contra populações não-brancas e a gestão da Covid-19 no país. Tal aspecto aponta uma tendência da jurisprudência internacional, que é o não reconhecimento de genocídios praticados por grupos brancos contra populações negras e indígenas”, explica Marcos.
Na mesma linha, o professor livre-docente em Jornalismo, Informação e Sociedade da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), Dennis de Oliveira lembra que práticas não-explicitas de eliminar um grupo étnico devem ser chamadas de genocídio, como é o caso do racismo no Brasil, negado por alguns intelectuais brancos. “Ele [o racismo] é marcado por práticas não-explícitas, mas tem uma consequência física e a ameaça a população negra. Então, o movimento negro chama de genocídio essas práticas estruturais do Estado brasileiro contra a população negra”.
O que é o genocídio indígena? E o genocídio negro?
A dizimação dos povos indígenas no país é amplamente conhecida e mencionada nos livros escolares dos brasileiros. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1500, ano da chegada de Pedro Álvares Cabral e do início da colonização portuguesa no Brasil, a população indígena era de aproximadamente 3 milhões de habitantes.
Em 1650, apenas 700 mil indígenas sobreviveram e, em 1957, o número mais baixo foi registrado, eram somente 70 mil. De lá para cá, a população indígena voltou a crescer: segundo o Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, são hoje 817.963 indígenas vivendo no Brasil.
De acordo com o livro “O Mundo Indígena na América Latina – Olhares e Perspectivas“, o Brasil é líder no genocídio de índios na América Latina, diferentemente da Bolívia, onde os indígenas são mais do que a metade da população e estão presentes intensamente no México, Colômbia, Venezuela, Equador e Paraguai.
Apesar de terem seus direitos garantidos na Constituição de 1988, os povos indígenas ainda sofrem com o racismo, com a alta letalidade da Covid-19 e com o desmonte das políticas ambientais e sociais indigenistas, fato que levou o Instituto Socioambiental (ISA), a Conectas Direitos Humanos e a Comissão Arns a denunciarem o risco elevado de genocídio contra os indígenas brasileiros isolados no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra neste mês.
Já o genocídio da população negra brasileira, que corresponde a 56,1% do total de brasileiros, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua de 2019 do IBGE, perpassa séculos, começando no Brasil com o massacre imposto pela escravidão implantada no século XVII e que terminou no final no século XIX. Até os dias de hoje o cenário é de morte.
Segundo o Atlas da Violência de 2020, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em 2018, os negros representaram 75,7% das vítimas de todos os homicídios. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública também divulgou em 2020 que os negros correspondem a 79,1% das vítimas de intervenções policiais que resultam em morte no Brasil.
É baseado nessas e em outras estatísticas que o termo genocídio pode ser utilizado no caso das populações negras e indígenas no Brasil, segundo o professor Marcos Queiroz. “O eugenismo fundamenta as políticas de limpeza racial que marcaram o Brasil da virada do século XIX para o XX. Depois, mesmo com a ideologia da mestiçagem e da democracia racial, negros e indígenas foram incorporados à nação como elementos culturais, muitas vezes estereotipados e subalternizados, não como sujeitos políticos”.
Além disso, “o aumento do encarceramento e do extermínio nas periferias e nas zonas rurais, é um prolongamento de um projeto nacional em que sujeitos não-brancos não têm vez, a não ser na vala”, diz o professor.
Para ele, a pandemia do novo coronavírus reforçou algumas dinâmicas desse processo. “Primeiramente, indígenas e negros estão entre os grupos mais afetados pela pandemia. Por exemplo, a mortalidade por Covid-19 entre indígenas é 16% maior do que no restante da população e apenas 19% dos imunizados no Brasil são pretos ou pardos, que constituem 56% dos brasileiros. Ou seja, mesmo no meio de uma desgraça generalizada, os mais afetados são justamente aqueles que mais são violentados no país. O racismo calibra os efeitos sociais do vírus”.
Para explicar o genocídio negro e indígena, Marcos retoma o conceito de “devir negro”, trazido por Achille Mbembe. “Por mais que negros e indígenas sejam os mais afetados pela pandemia, nota-se uma tendência daquilo que Achille Mbembe chama de ‘devir negro’ do mundo, ou seja, a extensão da condição de extermínio reservada aos sujeitos não-brancos à totalidade do corpo social. O que era comum a negros e indígenas se tornou comum a todos”.
Outro ponto importante é que há uma luta travada há décadas pelo movimento negro para usar o termo genocídio no Brasil, como esclarece Marcos. “No mínimo desde a década de 1970, intelectuais e o movimento negro vêm utilizando o termo genocídio para tratar da condição da população afro-brasileira. Ponto importante dessa denúncia é o livro O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado, de Abdias Nascimento, publicado em 1978”.
O livro de Abdias, então exilado por conta da ditadura militar no Brasil, foi apresentado no Festival Mundial de Artes e Culturas Negras, em 1977, na cidade de Lagos, na Nigéria. Lá a obra foi bem aceita, apesar de agentes da ditadura que corroboravam com a visão da “democracia racial” tentarem censurar a participação de Abdias no Festival.
O livro desmascara “as narrativas oficiais sobre a escravidão branda, a harmonia racial e a ausência de racismo no Brasil, bem como delineava o persistente genocídio do negro em diferentes etapas da história brasileira”, diz Marcos.
Essa ideia política que associa o Brasil ao extermínio vai se aprofundar nas décadas seguintes a partir da ação do movimento negro e de artistas. “Campanhas do Movimento Negro Unificado na década de 1980, que associam as prisões aos navios negreiros, na própria música negra e periférica, simbolizada em nomes de álbuns como Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC’s, ou A Marcha Fúnebre Prossegue, do Facção Central”.
As ações dos movimentos sociais também foram muito importantes para a aplicação do termo genocídio em relação ao povo negro. “É o caso de ações dos movimentos sociais, como Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta, que chama o cotidiano de negros e negras de uma guerra de alta intensidade, ou o Movimento das Mães de Maio, que busca a responsabilização internacional do Estado brasileiro pela chacina que tirou a vida de mais de 500 pessoas no ano de 2006 em São Paulo”, complementa Marcos Queiroz.
Ainda que historicamente o movimento negro batalhe pelo uso do conceito de genocídio, autores como Alba Maria Zaluar tentam disputar a narrativa culpabilizando a população negra pelo próprio genocídio. No artigo “Retomar o debate logo“, ela argumenta: “As pessoas se referem sempre à violência policial, à violência institucional, então, o genocídio é provocado pelos policiais, que estão matando os negros nas favelas, mas ninguém se refere ao fato de que os jovens negros e favelados estão matando outros jovens negros e favelados há anos e anos, e a maior parte desses jovens negros que morrem, eles morrem na mão um do outro”.
Sobre essa ideia, Marcos Queiroz diz que para essa tradição, não é que a população negra seja responsável pelo seu genocídio. “A questão é outra: o genocídio não existe”.
Para ele, compreender o genocídio como projeto estatal não é fechar o debate com os setores de segurança pública, especialmente em sua base, composta por pessoas negras. “Mas apontar uma realidade em que corpos pretos e pardos pagam a conta dos dois lados daqueles que tombam, como demonstra a tragédia em Salvador no último domingo (28/3)”.
Por fim ele aponta que “para uma tradição de pensamento social que nunca quis escutar as contribuições de negros vivos, talvez seria importante ouvir as vozes e as cores do necrotério. Como aprendemos na comunidade negra, qualquer discussão sobre genocídio começa primeiramente no diálogo e respeito aos mortos”.
A atuação do governo na pandemia pode ser considerada genocídio?
Atribuir o termo genocídio à situação sanitária do Brasil também é algo discutido pelos pesquisadores. No ponto de vista de Dennis de Oliveira, a morte causada pelo vírus é uma das formas de genocídio. “As mortes pela Covid-19 posso caracterizar como uma forma de genocídio. Mas o fato de a população negra ter uma longevidade menor, estar em locais insalubres, dificultando o seu isolamento, ela acaba sendo a maior vítima da Covid-19. É um conjunto situações criadas pelo racismo estrutural que faz com que acabe se caracterizando também como uma forma de genocídio”.
Assim como ele, Marcos Queiroz reitera o processo de genocídio na pandemia. Ele argumenta que o estudo produzido pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da USP, em parceria com a Conectas Direitos Humanos, revela que a maioria das mortes por Covid-19 no Brasil poderiam ter sido evitadas. “Ademais, ele aponta que não se trata de erro ou omissão do governo federal, mas sim de uma estratégia de propagação do vírus, implementada sob a liderança do presidente da República”. Leia o estudo na íntegra – Baixar
Segundo Marcos, o ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello assumiu a responsabilidade direta pela morte de milhares de brasileiros. “Quando Pazuello foi comentar a sua posse como Ministro da Saúde, ele proferiu a seguinte frase: ‘eu não sabia nem o que era o SUS’. Pode ter passado despercebido para muita gente, mas ali ele assumia, em cadeia nacional, a responsabilidade direta pela morte de milhares de brasileiros. Uma pessoa que aceita ser Ministro da Saúde, no meio da maior pandemia dos últimos tempos, sem conhecer o principal instrumento de enfrentamento do vírus”.
O que em sua análise ilumina outro aspecto do genocídio: “É o acúmulo de atos ‘pequenos’ e burocráticos como esse. Ele depende de um cotidiano que naturaliza a morte nas ações mais básicas”, diz.
Há um arcabouço legal que abrange o genocídio, que é considerado crime internacional desde 1950, depois da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio da Organização das Nações Unidas (ONU), ocorrida em 1948, da qual o Brasil é signatário.
O Brasil já ratificou tratados internacionais que mencionam o genocídio, como o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em 2002, que em seu artigo 6º entende por genocídio “o homicídio de membros do grupo, ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo, sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial”, além da imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo e transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.
O genocídio foi reconhecido como crime no Brasil a partir da Lei no. 2.889 de 1956. Em 1984, a Lei 7.209 incluiu no Código Penal o genocídio cometido por brasileiro ou domiciliado no Brasil.
O Brasil tem um caso julgado de genocídio que gerou repercussão internacional, o “massacre de Haximu”, cometido por garimpeiros contra a população indígena Yanomami, ocorrido em julho de 1993, no norte de Roraima, em uma aldeia na fronteira do Brasil com a Venezuela, quando garimpeiros fortemente armados mataram 16 indígenas a tiros e golpes de facão, incluindo cinco crianças.
22 pessoas foram acusadas de participar do massacre, e cinco delas foram condenadas: Pedro Emiliano Garcia, João Pereira de Morais, Francisco Alves Rodrigues, Juvenal Silva e Elizeio Monteiro Neri. As penas variaram de 19 a 20 anos de prisão em regime fechado.
Thiago Amparo, advogado e professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), lembra que o genocídio negro no Brasil já foi alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados em 2015, que concluiu que esse população sofre um “genocídio simbólico”. “Na Câmara dos Deputados, o relatório da CPI sobre mortes por pessoas negras também teve o uso da palavra genocídio para descrever a situação atual, o que é adequado também do ponto de vista político”.
No entanto, ele afirma que a efetividade de se punir alguém pelo crime ainda é baixa. “Já existe um respaldo jurídico pra responsabilizar tanto o Estado brasileiro como um todo, quanto autoridades específicas individuais pela perpetuação do genocídio há bastante tempo. Acontece que o nosso judiciário é mais de 30% composto de pessoas brancas. As dores de pessoas negras e indígenas é muitas vezes normalizada. Então, o que falta é que efetivamente o sistema judiciário e a sociedade em geral acorde e que processe coletivamente essas responsabilidades estruturais e individuais pelo nome que elas merecem”.
No olhar de Marcos Queiroz, a responsabilização deve ser vista nos aspectos políticos e jurídicos. “Do ponto de vista material, trata-se tanto da responsabilização civil e penal dos perpetradores das práticas genocidas, como do ressarcimento social e econômico daqueles que tiveram suas vidas afetadas pelo evento. Como aponta Flauzina, no caso do Holocausto, por exemplo, bancos suíços tiveram que pagar cerca de US$ 1,25 bilhão até o momento a vítimas das políticas nazistas”.
Para o pesquisador, reconhecer a existência de um genocídio em curso é um fator decisivo para o futuro do país. “Não é uma disputa conceitual. Trata-se de qual Brasil queremos construir a partir dos escombros da Covid-19. E isso começa agora. Outras pandemias e intempéries climáticas virão em poucos anos, cabe a nós saber se as gerações futuras também pagarão com a vida ou não. O Brasil inteiro está pagando o preço por tolerar por séculos a banalização da morte na sua vida ordinária.”
O livro de Abdias, então exilado por conta da ditadura militar no Brasil, foi apresentado no Festival Mundial de Artes e Culturas Negras, em 1977, na cidade de Lagos, na Nigéria. Lá a obra foi bem aceita, apesar de agentes da ditadura que corroboravam com a visão da “democracia racial” tentarem censurar a participação de Abdias no Festival.
O livro desmascara “as narrativas oficiais sobre a escravidão branda, a harmonia racial e a ausência de racismo no Brasil, bem como delineava o persistente genocídio do negro em diferentes etapas da história brasileira”, diz Marcos.
Essa ideia política que associa o Brasil ao extermínio vai se aprofundar nas décadas seguintes a partir da ação do movimento negro e de artistas. “Campanhas do Movimento Negro Unificado na década de 1980, que associam as prisões aos navios negreiros, na própria música negra e periférica, simbolizada em nomes de álbuns como Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC’s, ou A Marcha Fúnebre Prossegue, do Facção Central”.
As ações dos movimentos sociais também foram muito importantes para a aplicação do termo genocídio em relação ao povo negro. “É o caso de ações dos movimentos sociais, como Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta, que chama o cotidiano de negros e negras de uma guerra de alta intensidade, ou o Movimento das Mães de Maio, que busca a responsabilização internacional do Estado brasileiro pela chacina que tirou a vida de mais de 500 pessoas no ano de 2006 em São Paulo”, complementa Marcos Queiroz.
Ainda que historicamente o movimento negro batalhe pelo uso do conceito de genocídio, autores como Alba Maria Zaluar tentam disputar a narrativa culpabilizando a população negra pelo próprio genocídio. No artigo “Retomar o debate logo“, ela argumenta: “As pessoas se referem sempre à violência policial, à violência institucional, então, o genocídio é provocado pelos policiais, que estão matando os negros nas favelas, mas ninguém se refere ao fato de que os jovens negros e favelados estão matando outros jovens negros e favelados há anos e anos, e a maior parte desses jovens negros que morrem, eles morrem na mão um do outro”.
Sobre essa ideia, Marcos Queiroz diz que para essa tradição, não é que a população negra seja responsável pelo seu genocídio. “A questão é outra: o genocídio não existe”.
Para ele, compreender o genocídio como projeto estatal não é fechar o debate com os setores de segurança pública, especialmente em sua base, composta por pessoas negras. “Mas apontar uma realidade em que corpos pretos e pardos pagam a conta dos dois lados daqueles que tombam, como demonstra a tragédia em Salvador no último domingo (28/3)”.
Por fim ele aponta que “para uma tradição de pensamento social que nunca quis escutar as contribuições de negros vivos, talvez seria importante ouvir as vozes e as cores do necrotério. Como aprendemos na comunidade negra, qualquer discussão sobre genocídio começa primeiramente no diálogo e respeito aos mortos”.
A atuação do governo na pandemia pode ser considerada genocídio?
Atribuir o termo genocídio à situação sanitária do Brasil também é algo discutido pelos pesquisadores. No ponto de vista de Dennis de Oliveira, a morte causada pelo vírus é uma das formas de genocídio. “As mortes pela Covid-19 posso caracterizar como uma forma de genocídio. Mas o fato de a população negra ter uma longevidade menor, estar em locais insalubres, dificultando o seu isolamento, ela acaba sendo a maior vítima da Covid-19. É um conjunto situações criadas pelo racismo estrutural que faz com que acabe se caracterizando também como uma forma de genocídio”.
Assim como ele, Marcos Queiroz reitera o processo de genocídio na pandemia. Ele argumenta que o estudo produzido pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da USP, em parceria com a Conectas Direitos Humanos, revela que a maioria das mortes por Covid-19 no Brasil poderiam ter sido evitadas. “Ademais, ele aponta que não se trata de erro ou omissão do governo federal, mas sim de uma estratégia de propagação do vírus, implementada sob a liderança do presidente da República”. Leia o estudo na íntegra – Baixar
Segundo Marcos, o ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello assumiu a responsabilidade direta pela morte de milhares de brasileiros. “Quando Pazuello foi comentar a sua posse como Ministro da Saúde, ele proferiu a seguinte frase: ‘eu não sabia nem o que era o SUS’. Pode ter passado despercebido para muita gente, mas ali ele assumia, em cadeia nacional, a responsabilidade direta pela morte de milhares de brasileiros. Uma pessoa que aceita ser Ministro da Saúde, no meio da maior pandemia dos últimos tempos, sem conhecer o principal instrumento de enfrentamento do vírus”.
O que em sua análise ilumina outro aspecto do genocídio: “É o acúmulo de atos ‘pequenos’ e burocráticos como esse. Ele depende de um cotidiano que naturaliza a morte nas ações mais básicas”, diz.
Há um arcabouço legal que abrange o genocídio, que é considerado crime internacional desde 1950, depois da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio da Organização das Nações Unidas (ONU), ocorrida em 1948, da qual o Brasil é signatário.
O Brasil já ratificou tratados internacionais que mencionam o genocídio, como o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em 2002, que em seu artigo 6º entende por genocídio “o homicídio de membros do grupo, ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo, sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial”, além da imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo e transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.
O genocídio foi reconhecido como crime no Brasil a partir da Lei no. 2.889 de 1956. Em 1984, a Lei 7.209 incluiu no Código Penal o genocídio cometido por brasileiro ou domiciliado no Brasil.
O Brasil tem um caso julgado de genocídio que gerou repercussão internacional, o “massacre de Haximu”, cometido por garimpeiros contra a população indígena Yanomami, ocorrido em julho de 1993, no norte de Roraima, em uma aldeia na fronteira do Brasil com a Venezuela, quando garimpeiros fortemente armados mataram 16 indígenas a tiros e golpes de facão, incluindo cinco crianças.
22 pessoas foram acusadas de participar do massacre, e cinco delas foram condenadas: Pedro Emiliano Garcia, João Pereira de Morais, Francisco Alves Rodrigues, Juvenal Silva e Elizeio Monteiro Neri. As penas variaram de 19 a 20 anos de prisão em regime fechado.
Thiago Amparo, advogado e professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), lembra que o genocídio negro no Brasil já foi alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados em 2015, que concluiu que esse população sofre um “genocídio simbólico”. “Na Câmara dos Deputados, o relatório da CPI sobre mortes por pessoas negras também teve o uso da palavra genocídio para descrever a situação atual, o que é adequado também do ponto de vista político”.
No entanto, ele afirma que a efetividade de se punir alguém pelo crime ainda é baixa. “Já existe um respaldo jurídico pra responsabilizar tanto o Estado brasileiro como um todo, quanto autoridades específicas individuais pela perpetuação do genocídio há bastante tempo. Acontece que o nosso judiciário é mais de 30% composto de pessoas brancas. As dores de pessoas negras e indígenas é muitas vezes normalizada. Então, o que falta é que efetivamente o sistema judiciário e a sociedade em geral acorde e que processe coletivamente essas responsabilidades estruturais e individuais pelo nome que elas merecem”.
No olhar de Marcos Queiroz, a responsabilização deve ser vista nos aspectos políticos e jurídicos. “Do ponto de vista material, trata-se tanto da responsabilização civil e penal dos perpetradores das práticas genocidas, como do ressarcimento social e econômico daqueles que tiveram suas vidas afetadas pelo evento. Como aponta Flauzina, no caso do Holocausto, por exemplo, bancos suíços tiveram que pagar cerca de US$ 1,25 bilhão até o momento a vítimas das políticas nazistas”.
Para o pesquisador, reconhecer a existência de um genocídio em curso é um fator decisivo para o futuro do país. “Não é uma disputa conceitual. Trata-se de qual Brasil queremos construir a partir dos escombros da Covid-19. E isso começa agora. Outras pandemias e intempéries climáticas virão em poucos anos, cabe a nós saber se as gerações futuras também pagarão com a vida ou não. O Brasil inteiro está pagando o preço por tolerar por séculos a banalização da morte na sua vida ordinária.”
O governante que não se importa com vidas para nada serve
Diz a Constituição no artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida”. A ser assim, a prioridade do governante não pode ser outra, tanto mais em meio a uma pandemia.
Criado em 2004, no primeiro governo do presidente Lula, o programa Farmácia Popular distribui medicamentos básicos gratuitamente para hipertensão, diabetes e asma. Remédios para controle de rinite, mal de Parkinson, osteoporose e glaucoma, além de anticoncepcionais, são vendidos com desconto de até 90%.
O que fez Bolsonaro? No ano passado, o primeiro da pandemia, reduziu o orçamento do programa. 20,1 milhões de pessoas foram beneficiadas, 1,2 milhão a menos do que em 2019. A cobertura de 2020 foi a menor desde 2014. A quantidade de farmácias caiu para 30.988 unidades em 2020, o menor patamar desde 2013.
Novas farmácias estão impedidas de se cadastrar no programa desde dezembro de 2014. Na época, o governo da ex-presidente Dilma Rousseff suspendeu o credenciamento por já ter atingido a meta de rede de cobertura daquele ano. Mas o cadastramento não foi restabelecido até hoje, e não há sinal de que será um dia.
Para este ano, o orçamento do programa foi reduzido. No ano passado era de R$ 2,7 bilhões, em valores corrigidos pela inflação. Em 2021, é de R$ 2,5 bilhões mesmo com o agravamento da pandemia. Desde o início do governo Bolsonaro que o Farmácia Popular está na lista dos programas a serem extintos.
Se antes se dizia que ele seria incorporado a outro programa, talvez à Bolsa Família, hoje não se diz mais nada, a não ser que falta dinheiro para que o governo realize tudo o que deseja. Ocorre que não se trata de fazer ou não o que se deseja, mas de respeitar o que está escrito na Constituição. Ou não importa o que ela manda?
O Orçamento da União reserva, por exemplo, 48 bilhões de reais para o pagamento de emendas parlamentares, destinadas à construção de obras nos redutos eleitorais de deputados e senadores. Qual o político, sob o risco de ser exposto, negaria um pequeno corte nesse total para fortalecer o programa?
Um governo que dá as costas à saúde dos mais pobres despreza a vida e não serve para nada. É esse exatamente o caso do governo Bolsonaro. Não foi por equívoco que ele forneceu passe livre à Covid para que matasse os que tivessem de morrer. Foi por achar que é preciso destruir o que está aí para reconstruir depois.
Foi também porque governadores e prefeitos saíram na sua frente com medidas de isolamento social e cobrança de vacinas, e Bolsonaro, ao invés de como presidente da República liderar o combate à pandemia, preferiu enfrentá-los para não descontentar sua base radical de apoio da qual depende para se reeleger.
Sua preocupação com a situação geral do país é nenhuma. Seu entendimento do papel que o destino lhe reservou é nenhum. Sua capacidade para o exercício do cargo que ocupa é igual a zero. Não tinha nenhum preparo para ser presidente quando foi candidato. Nada aprendeu nos últimos dois anos.
Em compensação, nada se esqueceu do que possa ter aprendido no seu tempo de quartel e de membro apenas insignificante do baixo clero da Câmara dos Deputados. Aprendeu a dar ordens e a exigir obediência cega aos que o rodeiam. E a extrair vantagens para si e os seus atropelando as regras da boa conduta parlamentar.
No que vai dar tudo isso? Quantos milhares a mais de pessoas terão que morrer infectadas até que os brasileiros finalmente acordem e digam “basta”?
Criado em 2004, no primeiro governo do presidente Lula, o programa Farmácia Popular distribui medicamentos básicos gratuitamente para hipertensão, diabetes e asma. Remédios para controle de rinite, mal de Parkinson, osteoporose e glaucoma, além de anticoncepcionais, são vendidos com desconto de até 90%.
O que fez Bolsonaro? No ano passado, o primeiro da pandemia, reduziu o orçamento do programa. 20,1 milhões de pessoas foram beneficiadas, 1,2 milhão a menos do que em 2019. A cobertura de 2020 foi a menor desde 2014. A quantidade de farmácias caiu para 30.988 unidades em 2020, o menor patamar desde 2013.
Novas farmácias estão impedidas de se cadastrar no programa desde dezembro de 2014. Na época, o governo da ex-presidente Dilma Rousseff suspendeu o credenciamento por já ter atingido a meta de rede de cobertura daquele ano. Mas o cadastramento não foi restabelecido até hoje, e não há sinal de que será um dia.
Para este ano, o orçamento do programa foi reduzido. No ano passado era de R$ 2,7 bilhões, em valores corrigidos pela inflação. Em 2021, é de R$ 2,5 bilhões mesmo com o agravamento da pandemia. Desde o início do governo Bolsonaro que o Farmácia Popular está na lista dos programas a serem extintos.
Se antes se dizia que ele seria incorporado a outro programa, talvez à Bolsa Família, hoje não se diz mais nada, a não ser que falta dinheiro para que o governo realize tudo o que deseja. Ocorre que não se trata de fazer ou não o que se deseja, mas de respeitar o que está escrito na Constituição. Ou não importa o que ela manda?
O Orçamento da União reserva, por exemplo, 48 bilhões de reais para o pagamento de emendas parlamentares, destinadas à construção de obras nos redutos eleitorais de deputados e senadores. Qual o político, sob o risco de ser exposto, negaria um pequeno corte nesse total para fortalecer o programa?
Um governo que dá as costas à saúde dos mais pobres despreza a vida e não serve para nada. É esse exatamente o caso do governo Bolsonaro. Não foi por equívoco que ele forneceu passe livre à Covid para que matasse os que tivessem de morrer. Foi por achar que é preciso destruir o que está aí para reconstruir depois.
Foi também porque governadores e prefeitos saíram na sua frente com medidas de isolamento social e cobrança de vacinas, e Bolsonaro, ao invés de como presidente da República liderar o combate à pandemia, preferiu enfrentá-los para não descontentar sua base radical de apoio da qual depende para se reeleger.
Sua preocupação com a situação geral do país é nenhuma. Seu entendimento do papel que o destino lhe reservou é nenhum. Sua capacidade para o exercício do cargo que ocupa é igual a zero. Não tinha nenhum preparo para ser presidente quando foi candidato. Nada aprendeu nos últimos dois anos.
Em compensação, nada se esqueceu do que possa ter aprendido no seu tempo de quartel e de membro apenas insignificante do baixo clero da Câmara dos Deputados. Aprendeu a dar ordens e a exigir obediência cega aos que o rodeiam. E a extrair vantagens para si e os seus atropelando as regras da boa conduta parlamentar.
No que vai dar tudo isso? Quantos milhares a mais de pessoas terão que morrer infectadas até que os brasileiros finalmente acordem e digam “basta”?
Sob Bolsonaro, o Brasil tornou-se uma surubocracia anarco-intervencionista
Patrono do pensamento econômico liberal, o economista Roberto Campos (1917-2001) dizia que "não temos uma democracia no Brasil. Temos uma surubocracia anarco-sindicalista." Vivo, Campos concluiria que a democracia brasileira continua sendo um regime por fazer. A diferença é que, sob Bolsonaro, o Brasil passou a ter uma surubocracia anarco-intervencionista.
Bolsonaro abriu a semana fabricando uma crise com as Forças Armadas. E chega à Sexta-Feira Santa colhendo os trovões e os raios que o partam que havia semeado no Banco do Brasil. Presidente do Conselho de Administração da casa bancária, Hélio Magalhães renunciou ao cargo. Saiu atirando para o alto. Mirou no Planalto.
Eleito em 1982 pelo Mato Grosso, seu Estado, Roberto Campos frequentou o Senado por oito anos. Em 1990, candidatou-se a deputado federal pelo Rio de Janeiro. Elegeu-se no mesmo pleito em que o eleitorado fluminense concedeu ao paulista Bolsonaro seu primeiro mandato federal.
Ironia suprema: Campos, o avô, estreou na Câmara junto com Bolsonaro, o insuspeitado futuro presidente da República. Hoje, seu neto tem acesso direto às orelhas de Bolsonaro.
Até outro dia, Campos Neto gastava baldes de saliva tentando mostrar a Bolsonaro que há bilhões de dólares dispostos a desembarcar no Brasil. Basta que exista responsabilidade ambiental, compromisso fiscal e sensatez. Desistiu. Deve ter notado que, na surubocracia anarco-intervencionista o presidente governa com a crise, para a crise e pela crise.
Bolsonaro abriu a semana fabricando uma crise com as Forças Armadas. E chega à Sexta-Feira Santa colhendo os trovões e os raios que o partam que havia semeado no Banco do Brasil. Presidente do Conselho de Administração da casa bancária, Hélio Magalhães renunciou ao cargo. Saiu atirando para o alto. Mirou no Planalto.
Na segunda-feira, quando o "mercado" puder se pronunciar sobre os rolos do feriadão, as ações do BB se depreciarão. Como já foram desvalorizados os papeis da Petrobras quando Bolsonaro interveio para colocar um general no comando. Ou os da Eletrobras, quando o capitão consolidou-se como estorvo à privatização, levando o presidente da companhia à renúncia.
Bolsonaro conseguiu transformar o liberalismo de Paulo Guedes numa nova modalidade de frustração. Quando alguém é convidado a participar de um projeto supostamente relevante e o abandona, costuma-se dizer que o desertor cuspiu no prato que comeu.
Guedes já perdeu algo como duas dezenas de auxiliares. A maioria deixou suas posições cuspindo no prato em que Bolsonaro não permitiu que ninguém comesse. Não venderam estatais, não reformaram o Estado, não aperfeiçoaram o sistema tributário. Não fizeram isso nem aquilo.
Uma pessoa realizadora não prediz o futuro, ajuda a criá-lo. Roberto Campos, por exemplo, teria motivos para dar pulos de satisfação sob a lápide se pudesse ver o que foi feito do neto homônimo. Roberto Campos Neto preside o Banco Central, uma instituição que o avô ajudou a criar em 1964, quando era ministro do Planejamento do governo do marechal Castelo Branco.
Ex-embaixador, ex-ministro, ex-senador e ex-deputado, o velho Roberto Campos não poderia supor que um neto que o rodeava de calças curtas presidiria sua criação meio século mais tarde. Tampouco lhe foi dado supor que a coincidência se materializaria num governo presidido por Jair Bolsonaro, um deputado obscuro com quem esbarrou no Congresso sem cogitar um estreitamento de relações.
Bolsonaro conseguiu transformar o liberalismo de Paulo Guedes numa nova modalidade de frustração. Quando alguém é convidado a participar de um projeto supostamente relevante e o abandona, costuma-se dizer que o desertor cuspiu no prato que comeu.
Guedes já perdeu algo como duas dezenas de auxiliares. A maioria deixou suas posições cuspindo no prato em que Bolsonaro não permitiu que ninguém comesse. Não venderam estatais, não reformaram o Estado, não aperfeiçoaram o sistema tributário. Não fizeram isso nem aquilo.
Uma pessoa realizadora não prediz o futuro, ajuda a criá-lo. Roberto Campos, por exemplo, teria motivos para dar pulos de satisfação sob a lápide se pudesse ver o que foi feito do neto homônimo. Roberto Campos Neto preside o Banco Central, uma instituição que o avô ajudou a criar em 1964, quando era ministro do Planejamento do governo do marechal Castelo Branco.
Ex-embaixador, ex-ministro, ex-senador e ex-deputado, o velho Roberto Campos não poderia supor que um neto que o rodeava de calças curtas presidiria sua criação meio século mais tarde. Tampouco lhe foi dado supor que a coincidência se materializaria num governo presidido por Jair Bolsonaro, um deputado obscuro com quem esbarrou no Congresso sem cogitar um estreitamento de relações.
Eleito em 1982 pelo Mato Grosso, seu Estado, Roberto Campos frequentou o Senado por oito anos. Em 1990, candidatou-se a deputado federal pelo Rio de Janeiro. Elegeu-se no mesmo pleito em que o eleitorado fluminense concedeu ao paulista Bolsonaro seu primeiro mandato federal.
Ironia suprema: Campos, o avô, estreou na Câmara junto com Bolsonaro, o insuspeitado futuro presidente da República. Hoje, seu neto tem acesso direto às orelhas de Bolsonaro.
Até outro dia, Campos Neto gastava baldes de saliva tentando mostrar a Bolsonaro que há bilhões de dólares dispostos a desembarcar no Brasil. Basta que exista responsabilidade ambiental, compromisso fiscal e sensatez. Desistiu. Deve ter notado que, na surubocracia anarco-intervencionista o presidente governa com a crise, para a crise e pela crise.
Os 30 Bolsonaros
Um dos livros mais emblemáticos dos anos 1970 é o romance humorístico de Moacyr Scliar, O exército de um homem só. O personagem, simbolicamente, é um comunista enlouquecido que quer criar um mundo próprio, o Capitão Birobidjan, que faz a sua pregação de forma solitária e que se vê como uma força política, despertando o riso do leitor.
Como a realidade não se cansa de copiar os personagens da ficção, a trajetória do capitão Jair Messias Bolsonaro, desligado prematuramente do Exército Brasileiro, foi marcada por este sentimento de que ele, sozinho, mudaria o Brasil. Como um Capitão Birobidjan da direita, fundou o seu exército de um homem só, e começou a sua pregação afirmando como positivo tudo que era aberração. Da tortura à discriminação de gênero. O que não se poderia imaginar é que esta figura quixotesca, em sua cruzada contra princípios estruturantes da democracia, chegaria à Presidência.
Como sua ascensão é baseada neste persona, que ele cultivou por décadas, o do capitão que é um exército inteiro, a sua eleição unificou discursos, que se tornaram virais, patrocinados por todos que querem representar o papel do pseudo-herói. Cada opinião dele vinha com um código: siga o mestre. E adormecidos intelectualmente clicavam a tecla “compartilhar” na internet.
Na presidência, Bolsonaro criou a ideia de que não devia sua eleição a ninguém, a nenhum grupo político, pois ele tinha sido eleito sozinho, por uma política de virilização espontânea. Não montou um governo de indicações políticas nem de técnicos, mas de seguidores cegos. Nunca a fotografia oficial do Presidente teve um peso castrador tão grande nas repartições e nas entrevistas coletivas. Atrás do ministro ou de qualquer outro cargo de importância, vê-se, na parede, a figura centralizada do mandatário, com sua faixa presidencial. E os ministros só podem falar e pensar o que o capitão quer. O presidente é assim todos os seus ministros. Está no lugar de comando de todos os cargos. Multiplica-se em cada um de seus ungidos e se torna especialista em generalidades em todas as áreas, da saúde à política internacional.
O presidente compôs o governo de um homem só, obrigando que todos coloquem no rosto a máscara de papelão com a sua face. O que afirma o Ministro da Saúde sobre vacinas? Exatamente o que o presidente quer que ele fale naquele momento. Este grau zero de autonomia tem levado a trocas corriqueiras de comando em cargos-chave.
A substituição por atacado, nesta semana, do comando das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) revela esta identidade monopolizadora que nega a hierarquia tão prezada no meio. Ele queria mostrar que quem manda na tropa não seriam mais os generais ou outros altos oficiais de comando, mas o capitão à frente de seu exército tanto militar quanto paramilitar. No caso das Forças Armadas, Bolsonaro tentou, mas não conseguiu atingir o seu objetivo.
Umas das experiências mais importantes da história da fotografia brasileira é a montagem do fotógrafo Valério Vieira (1862 – 1941). Chama-se “Os trinta Valérios”, preparada para a Exposição Universal de Saint Louis, nos Estados Unidos, em 1904, e que mostra o autorretrato do artista disseminado na face de todos que estão na apresentação de uma orquestra. Garçons, músicos, plateia e o próprio maestro são uma única pessoa, o fotógrafo. Na parede, os retratos pendurados são ainda do Valério. Não existe melhor metáfora para o governo atual. Só há espaço para clones do Presidente. Todos são uma única pessoa. O que indica que ele está cada vez mais só.
Como a realidade não se cansa de copiar os personagens da ficção, a trajetória do capitão Jair Messias Bolsonaro, desligado prematuramente do Exército Brasileiro, foi marcada por este sentimento de que ele, sozinho, mudaria o Brasil. Como um Capitão Birobidjan da direita, fundou o seu exército de um homem só, e começou a sua pregação afirmando como positivo tudo que era aberração. Da tortura à discriminação de gênero. O que não se poderia imaginar é que esta figura quixotesca, em sua cruzada contra princípios estruturantes da democracia, chegaria à Presidência.
Como sua ascensão é baseada neste persona, que ele cultivou por décadas, o do capitão que é um exército inteiro, a sua eleição unificou discursos, que se tornaram virais, patrocinados por todos que querem representar o papel do pseudo-herói. Cada opinião dele vinha com um código: siga o mestre. E adormecidos intelectualmente clicavam a tecla “compartilhar” na internet.
Na presidência, Bolsonaro criou a ideia de que não devia sua eleição a ninguém, a nenhum grupo político, pois ele tinha sido eleito sozinho, por uma política de virilização espontânea. Não montou um governo de indicações políticas nem de técnicos, mas de seguidores cegos. Nunca a fotografia oficial do Presidente teve um peso castrador tão grande nas repartições e nas entrevistas coletivas. Atrás do ministro ou de qualquer outro cargo de importância, vê-se, na parede, a figura centralizada do mandatário, com sua faixa presidencial. E os ministros só podem falar e pensar o que o capitão quer. O presidente é assim todos os seus ministros. Está no lugar de comando de todos os cargos. Multiplica-se em cada um de seus ungidos e se torna especialista em generalidades em todas as áreas, da saúde à política internacional.
O presidente compôs o governo de um homem só, obrigando que todos coloquem no rosto a máscara de papelão com a sua face. O que afirma o Ministro da Saúde sobre vacinas? Exatamente o que o presidente quer que ele fale naquele momento. Este grau zero de autonomia tem levado a trocas corriqueiras de comando em cargos-chave.
A substituição por atacado, nesta semana, do comando das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) revela esta identidade monopolizadora que nega a hierarquia tão prezada no meio. Ele queria mostrar que quem manda na tropa não seriam mais os generais ou outros altos oficiais de comando, mas o capitão à frente de seu exército tanto militar quanto paramilitar. No caso das Forças Armadas, Bolsonaro tentou, mas não conseguiu atingir o seu objetivo.
Umas das experiências mais importantes da história da fotografia brasileira é a montagem do fotógrafo Valério Vieira (1862 – 1941). Chama-se “Os trinta Valérios”, preparada para a Exposição Universal de Saint Louis, nos Estados Unidos, em 1904, e que mostra o autorretrato do artista disseminado na face de todos que estão na apresentação de uma orquestra. Garçons, músicos, plateia e o próprio maestro são uma única pessoa, o fotógrafo. Na parede, os retratos pendurados são ainda do Valério. Não existe melhor metáfora para o governo atual. Só há espaço para clones do Presidente. Todos são uma única pessoa. O que indica que ele está cada vez mais só.
Os generais e o capitão
Com a água chegando ao pescoço, o presidente reformou nesta terça (30) o seu ministério —e mais uma vez fabricou uma crise, sua especialidade. Nesse dia, com UTIs superlotadas, equipamentos e profissionais escasseando, o país batia novo recorde de mortos pela pandemia em 24 horas: 3.668. Imenso também era o número de desempregados para os quais o auxílio emergencial ainda não chegou, assim como o de alunos aos quais não se ofereceu alternativa de estudo enquanto as escolas estiverem fechadas.
Poderia ter sido mudança rotineira: a troca de um chanceler que, movido por ideias delirantes sobre o mundo, vinha sendo competente apenas em destruir a reputação internacional do país. Só que não foi.
Pressionado pelos aliados no Congresso, com a popularidade em queda e perdendo apoios importantes entre as elites econômicas —para não falar da tensão com os governadores e parceiros internacionais que cobram do Brasil compromisso ambiental—, o ex-capitão tratou de se defender.
Imaginou arrimar-se com a ajuda do centrão para bloquear o impeachment; da Advocacia-Geral da União para proteger-se do Supremo Tribunal Federal; do Ministério da Justiça para pôr sob controle a Polícia Federal e manter a política de liberação de armas a civis e, por último, mas não menos importante, procurou assegurar a cumplicidade das Forças Armadas ao que fizer e acontecer.
O ocupante do Planalto não tem proposta para enfrentar a pandemia ou projeto para a nação depois dela. Só tem clara a sua obsessão: aferrar-se à primeira cadeira —pelo voto se possível, pela força se necessário. Ninguém perderá dinheiro apostando que até outubro do ano que vem planeje um autogolpe. Como se sabe, falta-lhe o mais ínfimo compromisso com a democracia.
Felizmente as suas chances não parecem boas. De acordo com o Center for Systemic Peace, think-tank americano que registrou todas as tentativas de golpe —bem-sucedidas ou não— em países com mais de 500 mil habitantes, entre 1946 e 2018, foram 39 os casos de "subversão pelo Executivo no poder". Destes, apenas um numa democracia sólida —a França de De Gaulle— e seis na América Latina, todos em países mais frágeis que o Brasil em matéria de tradição democrática e instituições políticas. O mesmo se pode dizer das nações onde ocorreram os outros 32 casos de autogolpe.
Com homenagens vazias, cargos, mais recursos no Orçamento e, agora, com a imposição de fidelidade ao líder, o ex-capitão imagina arrastar os generais —e a Força que comandam— para um aventura autoritária contra inimigos fabricados. Não será bom para eles, muito menos para o país.
Poderia ter sido mudança rotineira: a troca de um chanceler que, movido por ideias delirantes sobre o mundo, vinha sendo competente apenas em destruir a reputação internacional do país. Só que não foi.
Pressionado pelos aliados no Congresso, com a popularidade em queda e perdendo apoios importantes entre as elites econômicas —para não falar da tensão com os governadores e parceiros internacionais que cobram do Brasil compromisso ambiental—, o ex-capitão tratou de se defender.
Imaginou arrimar-se com a ajuda do centrão para bloquear o impeachment; da Advocacia-Geral da União para proteger-se do Supremo Tribunal Federal; do Ministério da Justiça para pôr sob controle a Polícia Federal e manter a política de liberação de armas a civis e, por último, mas não menos importante, procurou assegurar a cumplicidade das Forças Armadas ao que fizer e acontecer.
O ocupante do Planalto não tem proposta para enfrentar a pandemia ou projeto para a nação depois dela. Só tem clara a sua obsessão: aferrar-se à primeira cadeira —pelo voto se possível, pela força se necessário. Ninguém perderá dinheiro apostando que até outubro do ano que vem planeje um autogolpe. Como se sabe, falta-lhe o mais ínfimo compromisso com a democracia.
Felizmente as suas chances não parecem boas. De acordo com o Center for Systemic Peace, think-tank americano que registrou todas as tentativas de golpe —bem-sucedidas ou não— em países com mais de 500 mil habitantes, entre 1946 e 2018, foram 39 os casos de "subversão pelo Executivo no poder". Destes, apenas um numa democracia sólida —a França de De Gaulle— e seis na América Latina, todos em países mais frágeis que o Brasil em matéria de tradição democrática e instituições políticas. O mesmo se pode dizer das nações onde ocorreram os outros 32 casos de autogolpe.
Com homenagens vazias, cargos, mais recursos no Orçamento e, agora, com a imposição de fidelidade ao líder, o ex-capitão imagina arrastar os generais —e a Força que comandam— para um aventura autoritária contra inimigos fabricados. Não será bom para eles, muito menos para o país.
Páscoa
Curral das Vacas, Chaves, 11 de Abril de 1974
O Auto da Paixão num pobre lugarejo transmontano transfigurado numa Galileia imaginária , a fonte de Jacob, o Jardim das Oliveiras e o Sinédrio reduzidos a uma bacia cheia de água, a meia dúzia de ramos espetados no chão , a um palanque de feira. Mas nesse cenário ingénuo e sumário , tudo se passou como no verdadeiro - um Cristo do mundo a sofrer as injustiças e agruras do mundo. Pilatos era qualquer regedor , presidente da Câmara ou juiz poltrão a lavar as mãos na hora da verdade; Caifás , o influente poderoso e rancoroso, quem não é por nós é contra nós ; Judas, o mau vizinho que muda os marcos e jura peitado; e a turba judaica, a multidão que assistia , mata, queima esfola, conforme a onda emotiva. Não havia vedetas . Nem o próprio Redentor tentava ultrapassar a medida humana. Todos faziam diligentemente o seu papel , a debitar o texto e a gesticular como a rudeza era servida. A tarde estava de rosas , e essa doçura da natureza emoldurava harmoniosamente aquela lúcida catarse colectiva, teatro e realidade misturados , festa e pesadelo, agonia fingida e vivida. O povo tem isso: sabe encontrar o meio-termo feliz, o equilíbrio entre as exigências da alma e as fraquezas do corpo. A tragédia do Calvário é a nossa própria tragédia. Mas Deus , um ser absoluto. Pode sofrer absolutamente. Nós somos criaturas relativas... Por isso, a esponja de fel que desta vez o Centurião chegou aos lábios de Cristo era um naco de pão-de-ló ensopado em vinho fino...
Miguel Torga, "Diário XII"
O Auto da Paixão num pobre lugarejo transmontano transfigurado numa Galileia imaginária , a fonte de Jacob, o Jardim das Oliveiras e o Sinédrio reduzidos a uma bacia cheia de água, a meia dúzia de ramos espetados no chão , a um palanque de feira. Mas nesse cenário ingénuo e sumário , tudo se passou como no verdadeiro - um Cristo do mundo a sofrer as injustiças e agruras do mundo. Pilatos era qualquer regedor , presidente da Câmara ou juiz poltrão a lavar as mãos na hora da verdade; Caifás , o influente poderoso e rancoroso, quem não é por nós é contra nós ; Judas, o mau vizinho que muda os marcos e jura peitado; e a turba judaica, a multidão que assistia , mata, queima esfola, conforme a onda emotiva. Não havia vedetas . Nem o próprio Redentor tentava ultrapassar a medida humana. Todos faziam diligentemente o seu papel , a debitar o texto e a gesticular como a rudeza era servida. A tarde estava de rosas , e essa doçura da natureza emoldurava harmoniosamente aquela lúcida catarse colectiva, teatro e realidade misturados , festa e pesadelo, agonia fingida e vivida. O povo tem isso: sabe encontrar o meio-termo feliz, o equilíbrio entre as exigências da alma e as fraquezas do corpo. A tragédia do Calvário é a nossa própria tragédia. Mas Deus , um ser absoluto. Pode sofrer absolutamente. Nós somos criaturas relativas... Por isso, a esponja de fel que desta vez o Centurião chegou aos lábios de Cristo era um naco de pão-de-ló ensopado em vinho fino...
Miguel Torga, "Diário XII"
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