Curral das Vacas, Chaves, 11 de Abril de 1974
O Auto da Paixão num pobre lugarejo transmontano transfigurado numa Galileia imaginária , a fonte de Jacob, o Jardim das Oliveiras e o Sinédrio reduzidos a uma bacia cheia de água, a meia dúzia de ramos espetados no chão , a um palanque de feira. Mas nesse cenário ingénuo e sumário , tudo se passou como no verdadeiro - um Cristo do mundo a sofrer as injustiças e agruras do mundo. Pilatos era qualquer regedor , presidente da Câmara ou juiz poltrão a lavar as mãos na hora da verdade; Caifás , o influente poderoso e rancoroso, quem não é por nós é contra nós ; Judas, o mau vizinho que muda os marcos e jura peitado; e a turba judaica, a multidão que assistia , mata, queima esfola, conforme a onda emotiva. Não havia vedetas . Nem o próprio Redentor tentava ultrapassar a medida humana. Todos faziam diligentemente o seu papel , a debitar o texto e a gesticular como a rudeza era servida. A tarde estava de rosas , e essa doçura da natureza emoldurava harmoniosamente aquela lúcida catarse colectiva, teatro e realidade misturados , festa e pesadelo, agonia fingida e vivida. O povo tem isso: sabe encontrar o meio-termo feliz, o equilíbrio entre as exigências da alma e as fraquezas do corpo. A tragédia do Calvário é a nossa própria tragédia. Mas Deus , um ser absoluto. Pode sofrer absolutamente. Nós somos criaturas relativas... Por isso, a esponja de fel que desta vez o Centurião chegou aos lábios de Cristo era um naco de pão-de-ló ensopado em vinho fino...
Miguel Torga, "Diário XII"
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