quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Pensamento do Dia

 


E ao pó retornamos...

Só quem experimenta uma boa velhice medita sobre o pó. A poeira — na juventude feita de estrelas e, na idade ou temporada final, uma espécie de segundo tempo ou parágrafo derradeiro de um belo livro — é puro e seco pó.

Esse tal “sujo” que na nossa cultura tanto preocupa mães e esposas dispostas a manter suas casas imaculadamente limpas, sem um “pingo de sujeira” ou “um traço de pó”. Pó que embaça móveis e louças e revela ao visitante uma “dona de casa” incompetente ou preguiçosa, o equivalente moral antiquado do marido que, mesmo vagabundo, teria de bancar o “trabalhador”. Traço importante até hoje no simbolismo pouco estudado do nosso congênito populismo.

Exceto na cabeça duvidosa de alguns jurisconsultos, não pode haver convivência entre o sujo e o limpo, assim como o pó impede que alguma coisa brilhe ou fique de pé. O pó é aquela parte menor de tudo o que foi alguma coisa.


Ele tem uma solidez enganadora, porque não se pode botar o pó em pé, do mesmo modo que não se podem cortar a água ou o ar. O pó é a divisão da divisão, é o átomo do “sujo”. Livros sagrados, que a IA certamente desmontará, dizem que viramos pó. Mas um lado meu resiste — ou, melhor e mais honestamente, duvida...

Sei apenas que estou pautado e aprisionado pelas cinzas-pó desta Quarta-Feira de Cinzas, que são o resultado do vale-tudo programado do carnavalesco que passou.

A cinza é o símbolo dominante ou central — como diria o saudoso Victor Turner (que viu um carnaval carioca e niteroiense comigo) — de arrependimento e expiação de culpas. Nestes nossos tempos enigmáticos e inseguros, esquecemos que, quando havia profetas, e não salvadores da pátria, as cinzas dos mortos eram postas num saco e espalhadas na cabeça do arrependido culposo que, desse modo dramático, incluindo rasgar suas próprias vestes, clamava publicamente por comiseração a Deus.

Hoje dizem que Deus acabou ou não tem importância, porque sua onipotência, onipresença e onisciência será superada pela IA. Mas o pó e as cinzas nos esperam, como decretam sem nenhum pudor esses antiquados, reacionários, os velhos rituais. Solenidades feitas de gestos lentos, realizados obrigatoriamente com a mão direita, elas mostravam sua força precisamente pela entrega absoluta, como determinam tanto a fé quanto o amor, no sofrido rito expiatório de reentrada na rotina, depois de um tempo vivido em pecado...

Confesso que recebi cinzas na testa depois de alguns carnavais antigos. Pior. Confesso que não estava arrependido nem um pouco porque havia ficado abraçado à minha linda e doce namorada, tão trêmula quanto eu naquela brecha licenciosa que — puxa vida! — o carnaval abria e encorajava. Eu não era bem eu. Era um marinheiro de um filme colorido, e ela não era bem ela. Era uma ciganinha de lábios pintados que lambuzavam o branco do meu falso uniforme, dando-lhe realidade. Aquele real inescapável que só acontece nas dores mais pungentes e nos mais belos sonhos.

A carne existe com a dura realidade do mundo. Mas o pecado ou o abuso da carne têm seu começo depois da descoberta e manejo do fogo. Junte carne e fogo, e você tem muito mais que um churrasco. Você tem o gosto, o sabor, a gula, a fome, o deleite do comer e do englobar. O gozo de ser canibalizado pela carne cozida que nos torna humanos e, eventualmente, humanos com o direito ao deleite de gozar com nossa carne.

Não seria exagero dizer que ainda estamos no campo delimitado pelas regras que separam a necessidade do exagero.

Mas o fato permanente — sem o qual não seríamos capazes de conhecer as cinzas do dia de hoje — tem tudo a ver com a lembrança do pó, como admoestava o Senhor Deus a Adão, depois do pecado:

— Lembra-te de que és pó e ao pó voltarás!

Covid ainda mata mais do que dengue

No Brasil, ainda morre muito mais gente de Covid do que de dengue. Não, não se quer menosprezar o surto de dengue ou qualquer doença. Os alertas de autoridades sanitárias e profissionais de saúde devem ser levados muito a sério. Não o serão.

Trata-se apenas de um mote para lembrar de como morremos aos montes de doenças e barbaridades antigas, estúpidas, evitáveis e ignoradas. De homicídio, morriam 117 por dia em 2022. Devem ter sido 110 em 2023, na projeção do Ministério da Justiça. Mesmo assim, o Brasil ainda estaria perto do topo do ranking mundial da morte, de taxa de homicídio.

Morremos de doenças causadas pelo HIV: 31 por dia em 2022. De doença de chagas, aquela causada por um parasita carregado pelo barbeiro: 11 por dia.

É um lembrete conveniente para este início de ano do que, para católicos e simpatizantes, um dia foi o começo de um período especial de reflexão e introspecção, a Quaresma. Agora, o Carnaval nem acaba, propriamente.

No último mês, morreram POR DIA 31 pessoas de Covid no Brasil. É a média das quatro semanas epidemiológicas contadas até 3 de fevereiro, dados do Ministério da Saúde. Nas últimas 52 semanas, um ano, morreram 12.844.

Em 2023, se foram 1.094 pessoas por causa de dengue. Foi o maior morticínio causado pela doença desde ao menos 2000. Em 2024, até 12 de fevereiro, atualização oficial mais recente, eram 75 os mortos de dengue. Até dia 3 de fevereiro, a Covid levou 963.

As doenças são muito diferentes, claro, embora se difundam por causa do nosso primitivismo geral. Isso quer dizer também: por causa de ignorância, que é a vontade de não saber, de não se informar e de ter "opiniões". Por causa do nosso individualismo obsessivo, selvagem; da avacalhação; da opressão da miséria.

Muita gente ainda não se vacinou contra o coronavírus. Muita gente ainda oferece criadouros para o Aedes aegypti: água parada. Muita cidade gasta milhão com show de música e não tira o lixo e os focos de Aedes. O óbvio.

A Covid está sendo esquecida em parte por um motivo cruel e desumano, evidente já no pior da epidemia: leva os mais velhos, os já mais doentes, o que aliás era um tema da propaganda necrófila do governo das trevas, 2019-22. Mais de 80% dos mortos deste ano tinha 60 anos ou mais. A dengue manda mais para o hospital crianças de 10 a 14 anos, dizem as autoridades. Por isso, receberiam primeiro as vacinas escassas.

Não esquecemos apenas da Covid.

Quando criança, no auge da ditadura militar, lia impressionado que pessoas morriam de doença de Chagas, ou de esquistossomose e padeciam de cisticercose. O livrinho escolar ilustrava o assunto com pessoas com cara de Jeca Tatu vivendo em uma tapera de barro. A propaganda da ditadura dizia que o "progresso" nos livrava daquele "atraso", enquanto ocorria um surto censurado de meningite. Os militares nunca decepcionam.

Pois então. Em 2022, dado mais recente disponível, morreram 4.028 pessoas de doença de Chagas, quase o quádruplo das vítimas da dengue naquele ano (segundo o Datasus). Morre uma pessoa por dia de esquistossomose, ao menos. Etc.

Afora micropaíses e ilhas de América Central e Caribe, a taxa de homicídio no Brasil apenas é menor do que a de África do Sul, Venezuela, México, Mianmar e Equador; meio que empatamos com a Colômbia. Os dados são os compilados pelo Escritório das Nações Unidas (ONU) sobre Drogas e Crime, mas as fontes são diversas e um tanto imprecisas.

Como um país antidesenvolvimento autêntico (subdesenvolvido é eufemismo), nos acostumamos a males novos sem lidarmos com os antigos. Não nos preocupamos com essa sempiterna acumulação primitiva, por assim dizer, de deseducação, desigualdade, ineficiência e desumanidade.

Era só para lembrar.

Bolsonaristas amam a democracia, mas não gostam de conviver com ela

O Brasil é um país tão apaixonado pela democracia que boa parte da população e da sua elite política considera aceitável que seja dado um golpe de Estado para salvá-la. Tem tanto horror e ódio à ditadura que considera razoável abolir violentamente o Estado de Direito para evitar a ditadura do Poder Judiciário.

A proposta de "acabar com a democracia para salvar a democracia" não é uma pilhéria de Carnaval, infelizmente. É apenas mais uma evidência de nossa capacidade de acolher e alimentar crenças contraditórias.

Quem disse que 42,2% dos brasileiros acham que as investigações judiciais contra Bolsonaro são uma perseguição política injusta foi uma pesquisa Atlas Intel da semana passada, feita no rescaldo da operação Tempus Veritatis; 40,5% divergem.


Curiosamente, a mesma pesquisa indicou que 46,5% acreditam que Bolsonaro planejou um golpe de Estado. E que, se o presidente tivesse declarado um estado de sítio para limitar os poderes do STF e convocar novas eleições, 36,3% da população o apoiariam, enquanto 41,3% não o fariam.

Essa dinâmica sugere que, embora as pessoas estejam convencidas de que Bolsonaro planejou um golpe de Estado, essa percepção não é considerada tão grave a ponto de justificar investigações e processos. É pura perseguição política.

No cerne da questão, está o fato de termos uma profunda devoção pela democracia enquanto ela é em nossa cabeça uma nebulosa de ideias e valores. Como conceito, a democracia é como amor de mãe, crianças meigas, crepúsculos e veleiros ao poente —objetos de encantamento e reverência.

Assim, nada é mais mobilizador do que os apelos para proteger a democracia ou os lamentos que proclamam sua perda iminente. Nesse sentido, quimeras como "a ditadura do Judiciário" ou "o fascismo que está aí", bem como teorias da conspiração, como "a fraude eleitoral", cumprem as mesmas funções: emocionar as massas, provocar um sentimento de ultraje e justificar qualquer ação a partir desse ponto.

Eu aprendi ainda criança na escola que a Revolução havia salvado a pátria do comunismo. Se o golpe bolsonarista não tivesse fracassado, uma nova geração teria aprendido como o mito salvou a democracia dos "ditadores de toga" e dos "ladrões" que teriam vencido uma eleição fraudulenta. A democracia precisou, novamente, ser resgatada dos seus inimigos.

Os conspiradores que se reuniram com Bolsonaro para construir "um plano B" ao processo eleitoral democrático falavam de uma suposta fraude em andamento como se estivessem mencionando a parede ou a mesa sob seus braços. Tratavam-na como algo concreto, palpável, indiscutível, mesmo que, como admitiram, não tivessem meios de comprová-la. Era uma questão de fé.

A sinceridade da crença ou a conveniência da convicção não importam, contudo, pois todos os "considerandos" da minuta do golpe apontavam para o dogma compartilhado: a democracia precisava ser protegida das urnas do TSE.

No bolsonarismo, democracia está vagamente relacionada à vontade do povo depositada no líder carismático, autorizando-o a governar como queira em seu nome.

E pelo tempo que for necessário enquanto o vínculo orgânico entre o povo e o seu líder perdurar. Métodos para aferir e medir a real vontade popular, expressa em votos, são considerados problemáticos, pois é sabido que as elites do poder trabalharão para não perder o poder e irão certamente trapacear.

Em teoria política, acabei de descrever não uma democracia, mas uma autocracia de base populista. Mas uma vez que muitos estiverem convencidos de que democracia é isso, e de que tudo mais é abuso e usurpação do poder do povo, começa-se a entender por que golpes de Estado para salvar a democracia se tornam uma proposta aceitável.

Da mesma forma, compreende-se por que, no universo mental do bolsonarismo, a democracia liberal é uma inconveniência. Os três poderes (para que três se o líder escolhido poderia governar melhor sozinho?), as obrigações de que o Executivo preste contas e responda por suas decisões (deixem o homem trabalhar), a divisão de prerrogativas, os constrangimentos dos princípios e direitos fundamentais (como assim não se pode prender quem chama o líder de pequi roído?), nada disso faz sentido para eles.

Da democracia, gostam muito, mas não dos constrangimentos que ela impõe, das obrigações de transparência e prestação de contas, do rito de eleições regulares e livres, da liberdade de se divergir de quem governa. Tudo na democracia lhes é um estorvo, exceto a ideia de democracia, pela qual são capazes de tudo, até de um golpe de Estado.

Deixe-os comer sujeira

Nunca houve qualquer possibilidade de o governo israelense concordar com uma pausa nos combates proposta pelo Secretário de Estado Antony Blinken, muito menos com um cessar-fogo. Israel está prestes a dar o golpe de misericórdia na sua guerra contra os palestinos em Gaza – fome em massa. Quando os líderes israelitas usam o termo “vitória absoluta”, querem dizer dizimação total, eliminação total. Os nazistas em 1942 fizeram sistematicamente passar fome os 500 mil homens, mulheres e crianças no Gueto de Varsóvia. Este é um número que Israel pretende ultrapassar.


Israel, e o seu principal patrono, os Estados Unidos, ao tentarem encerrar a Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA), que fornece alimentos e ajuda a Gaza, não só estão a cometer um crime de guerra, como também está em flagrante desafio ao Tribunal Penal Internacional (CIJ). O tribunal considerou plausíveis as acusações de genocídio apresentadas pela África do Sul, que incluíam declarações e factos recolhidos pela UNWRA. Ordenou que Israel cumprisse seis medidas provisórias para prevenir o genocídio e aliviar a catástrofe humanitária. A quarta medida provisória apela a Israel para que garanta medidas imediatas e eficazes para fornecer assistência humanitária e serviços essenciais em Gaza.

Os relatórios da UNRWA sobre as condições em Gaza, que cobri como repórter durante sete anos, e a sua documentação sobre ataques indiscriminados israelenses ilustram que, como disse a UNRWA, “as ‘zonas seguras’ declaradas unilateralmente não são nada seguras. Nenhum lugar em Gaza é seguro. ”

O papel da UNRWA na documentação do genocídio, bem como no fornecimento de alimentos e ajuda aos palestinos, enfurece o governo israelense. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu acusou a UNRWA após a decisão de fornecer informações falsas à CIJ. Sendo já um alvo israelense há décadas, Israel decidiu que a UNRWA, que apoia 5,9 milhões de refugiados palestinos em todo o Médio Oriente com clínicas, escolas e alimentos, tinha de ser eliminada. A destruição da UNRWA por Israel serve um objetivo político e também material.

As acusações israelenses, sem provas, contra a UNRWA, de que uma dúzia dos 13 mil funcionários tinham ligações com aqueles que levaram a cabo os ataques em Israel em 7 de Outubro, resolveram o problema. Viu 16 grandes doadores, incluindo os Estados Unidos, o Reino Unido, a Alemanha, a Itália, os Países Baixos, a Áustria, a Suíça, a Finlândia, a Austrália, o Canadá, a Suécia, a Estónia e o Japão, suspenderem o apoio financeiro à agência de ajuda humanitária, na qual quase todos os palestinos em Gaza dependem de comida.

Israel matou 152 trabalhadores da UNRWA e danificou 147 instalações da UNRWA desde os ataques do Hamas e outros grupos de resistência em Israel, em 7 de outubro, que mataram cerca de 1.200 israelenses. Israel também bombardeou caminhões de ajuda humanitária da UNRWA.

Mais de 27.708 palestinos foram mortos em Gaza, cerca de 67 mil ficaram feridos e pelo menos 7 mil estão desaparecidos, provavelmente mortos e enterrados sob os escombros.

Mais de meio milhão de palestinos – um em cada quatro – estão a passar fome em Gaza, segundo a ONU. Os palestinianos em Gaza, 1,7 milhões dos quais foram deslocados internamente, carecem não só de alimentos suficientes, mas também de água potável, abrigo e medicamentos. Existem poucas frutas ou vegetais. Há pouca farinha para fazer pão. As massas, juntamente com a carne, o queijo e os ovos, desapareceram. Os preços do mercado negro para produtos secos, como lentilhas e feijões, aumentaram 25 vezes em relação aos preços anteriores à guerra. Um saco de farinha no mercado negro passou de US$ 8,00 para US$ 200 dólares.

O sistema de saúde em Gaza, com apenas três dos 36 hospitais de Gaza parcialmente a funcionar, entrou em colapso em grande parte. Cerca de 1,3 milhões de palestinos deslocados vivem nas ruas da cidade de Rafah, no sul do país, que Israel designou como “zona segura”, mas que começou a bombardear. As famílias tremem sob as chuvas de inverno sob lonas frágeis em meio a poças de esgoto bruto. Estima-se que 90 por cento dos 2,3 milhões de habitantes de Gaza foram expulsos das suas casas.

“Desde a Segunda Guerra Mundial, não houve nenhum caso em que uma população inteira tenha sido reduzida à fome extrema e à miséria com tanta rapidez”, escreve Alex de Waal, diretor executivo da Fundação para a Paz Mundial da Universidade Tufts e autor de “Mass Starvation: A História e o Futuro da Fome”, no Guardian. “E não há nenhum caso em que a obrigação internacional de acabar com isso tenha sido tão clara. ”

Os Estados Unidos, anteriormente o maior contribuinte da UNRWA, forneceram 422 milhões de dólares à agência em 2023. A separação de fundos garante que as entregas de alimentos da UNRWA, já escassas devido aos bloqueios de Israel, serão em grande parte interrompidas até ao final de fevereiro ou início de março.

Israel deu aos palestinos em Gaza duas opções. Vá embora ou morra.

Cobri a fome no Sudão em 1988, que ceifou 250 mil vidas. Há marcas em meus pulmões, cicatrizes por estar no meio de centenas de sudaneses que estavam morrendo de tuberculose. Eu era forte e saudável e lutei contra o contágio. Eles estavam fracos e emaciados e não o fizeram. A comunidade internacional, tal como acontece em Gaza, pouco fez para intervir.

O precursor da fome – a subnutrição – já afeta a maioria dos palestinos em Gaza. Aqueles que passam fome não têm calorias suficientes para se sustentar. Em desespero, as pessoas começam a comer ração animal, grama, folhas, insetos, roedores e até mesmo terra. Eles sofrem de diarreia e infecções respiratórias. Eles rasgam pedacinhos de comida, muitas vezes estragados, e os racionam.

Logo, com falta de ferro suficiente para produzir hemoglobina, uma proteína dos glóbulos vermelhos que transporta oxigênio dos pulmões para o corpo, e mioglobina, uma proteína que fornece oxigênio aos músculos, juntamente com a falta de vitamina B1, eles ficam anêmicos. O corpo se alimenta de si mesmo. Tecido e músculo são desperdiçados. É impossível regular a temperatura corporal. Os rins pararam. Falha do sistema imunológico. Órgãos vitais – cérebro, coração, pulmões, ovários e testículos – atrofiam. A circulação sanguínea fica mais lenta. O volume de sangue diminui. Doenças infecciosas como a febre tifoide, a tuberculose e a cólera tornam-se uma epidemia, matando milhares de pessoas.

É impossível concentrar-se. Vítimas emaciadas sucumbem ao retraimento mental e emocional e à apatia. Eles não querem ser tocados ou movidos. O músculo cardíaco está enfraquecido. As vítimas, mesmo em repouso, encontram-se em estado de virtual insuficiência cardíaca. As feridas não cicatrizam. A visão fica prejudicada com a catarata, mesmo entre os jovens. Finalmente, assolado por convulsões e alucinações, o coração para. Esse processo pode durar até 40 dias para um adulto. Crianças, idosos e doentes morrem mais rapidamente.

Vi centenas de figuras esqueléticas, espectros de seres humanos, movendo-se desamparadamente num ritmo glacial pela árida paisagem sudanesa. As hienas, acostumadas a comer carne humana, costumavam matar crianças pequenas. Fiquei sobre aglomerados de ossos humanos esbranquiçados nos arredores de aldeias onde dezenas de pessoas, fracas demais para andar, se deitaram em grupo e nunca mais se levantaram. Muitos eram os restos mortais de famílias inteiras.

Na cidade abandonada de Maya Abun, morcegos pendiam das vigas da destruída igreja missionária italiana. As ruas estavam cobertas de tufos de grama. A pista de pouso de terra era ladeada por centenas de ossos humanos, crânios e restos de pulseiras de ferro, contas coloridas, cestos e tiras de roupas esfarrapadas. As palmeiras foram cortadas ao meio. As pessoas comeram as folhas e a polpa de dentro. Corria o boato de que a comida seria entregue de avião. As pessoas caminharam durante dias até a pista de pouso. Eles esperaram e esperaram e esperaram. Nenhum avião chegou. Ninguém enterrou os mortos.

Agora, à distância, vejo isso acontecer em outra terra, em outro tempo. Conheço a indiferença que condenou os sudaneses, sobretudo os dinkas, e hoje condena os palestinos. Os pobres, especialmente quando são negros, não contam. Eles podem ser mortos como moscas. A fome em Gaza não é um desastre natural. É o plano mestre de Israel.

Haverá estudiosos e historiadores que escreverão sobre este genocídio, acreditando falsamente que podemos aprender com o passado, que somos diferentes, que a história pode impedir-nos de sermos, mais uma vez, bárbaros. Eles realizarão conferências acadêmicas. Eles dirão “Nunca mais! ” Eles se elogiarão por serem mais humanos e civilizados. Mas quando chegar a hora de falar abertamente sobre cada novo genocídio, com medo de perder o seu estatuto ou posições acadêmicas, eles correrão como ratos para as suas tocas. A história humana é uma longa atrocidade para os pobres e vulneráveis do mundo. Gaza é outro capítulo.

Batalhas pela memória

Israelenses estão com um problema de relações públicas.

Você, leitor, já ouviu falar nas Vésperas Efésias? Em 88 a.C., o imperador Mitrídates 6º, do Ponto, ordenou o assassinato de cidadãos romanos e aliados que viviam em cidades da Ásia Menor. Nem mulheres e crianças teriam sido poupadas. Estima-se que entre 80 mil e 150 mil morreram.

Imagino que esse massacre, um dos muitos da história, não o comova muito. Ele ocorreu há mais de 2.000 anos e, por alguma razão, descontamos o passado. Somos quase imunes às carnificinas muito antigas, nos importamos moderadamente com hemoclismos recentes e reagimos com vívida emoção aos massacres presentes. Está na programação de nossas mentes, ainda que a diferença temporal seja difícil de explicar filosoficamente. Por que a morte de uma pessoa há 2.000 anos valeria menos que a de uma morta há 80 anos?
O problema de Israel é que o tempo está passando. Foi sob o impacto do Holocausto nazista que a ONU aprovou, em 1947, o plano de partilha da Palestina que viabilizou o Estado judeu. Mas a memória viva do Holocausto, que ainda chegou à minha geração através das histórias de meus avós e tios-avós, vai aos poucos se apagando. Os registros históricos sempre podem ser consultados, mas o aspecto afetivo desaparece. Reportagem recente do New York Times mostra que é crescente o número de jovens judeus americanos que se identificam com a causa palestina.

Faz sentido. As histórias de injustiças cometidas contra palestinos estão ocorrendo ao vivo e numa era de hiperconexão. E quanto mais mortos as operações militares israelenses deixarem em Gaza, mais esse efeito se materializará. Ainda que não haja paralelo entre o que fizeram os nazistas e o que fazem os israelenses, civis palestinos estão morrendo aos borbotões.

Que a carnificina em Gaza sirva ao menos para viabilizar o Estado palestino. Sem ele, Israel jamais encontrará uma paz sustentável.