sexta-feira, 3 de junho de 2022

Pensamento do Dia

Alex Falcó Chang (Cuba)

 

Furto ​famélico, fenômeno crescente num país desigual

Furto de barras de chocolate que somavam R$ 20,00; furto de seis quilos de linguiça no valor de R$ 51,00; furto de três peças de carne, totalizando R$ 172,50. Esses três casos de furto, de valores insignificantes, chegaram recentemente à análise do Supremo Tribunal Federal (STF).

Isso comprova como é diverso o entendimento do Judiciário sobre furtos famélicos – conceito entendido no direito como a subtração de produtos por "estado de necessidade", sobretudo por fome – ou pequenos furtos de alimentos e objetos, de valores irrisórios, para os quais normalmente se aplica o chamado "princípio da insignificância".

Diante da gravidade da situação econômica e social do Brasil, o aumento de furtos desta natureza é uma hipótese provável, mas não há estatísticas do Judiciário, nos tribunais superiores e de primeira e segunda instâncias, que confirmem tal associação direta entre o crescimento desse tipo de delito sob a conjuntura atual. Alguns levantamentos de Defensorias Públicas mostram esse crescimento de delitos no pós-pandemia, como é o caso da Bahia.

O índice de insegurança alimentar do Brasil é superior ao da média mundial, conforme revelou pesquisa da Fundação Getúlio Vargas/FGV-Social, divulgada no final de maio. "A parcela de brasileiros que não teve dinheiro para alimentar a si ou a sua família em algum momento nos últimos 12 meses subiu de 30% em 2019 para 36% em 2021, atingindo novo recorde da série iniciada em 2006. É a primeira vez desde então que a insegurança alimentar brasileira supera a média simples mundial", diz trecho da pesquisa. Além disso, há hoje no país 11,3 milhões de desempregados, um cenário de espiral inflacionária de dois dígitos, e uma população em situação de rua que cresce a olhos vistos.

A gravidade é tamanha que o Brasil quase alcança o Zimbábue, país africano que tem o pior índice de insegurança alimentar do mundo (80% entre os mais pobres). De acordo com o estudo da FGV, houve um salto de 22 pontos percentuais no índice de insegurança alimentar do Brasil, quando considerados os 20% mais pobres: em 2019, era de 53% desta população, tendo atingido 75% em 2021.

Uma rápida pesquisa de jurisprudências no Superior Tribunal de Justiça aponta que existem 520 decisões monocráticas e 20 acórdãos sobre furto famélico. Já a pesquisa com o termo "princípio da insignificância", geralmente invocado por defensores nesse tipo de delito (mas também em diversos outros casos judiciais), mostra resultados bem mais amplos: 56.393 decisões monocráticas e 7.260 acórdãos. Muitos desses casos acabam chegando à corte suprema do país: é possível encontrar pelo menos sete julgamentos de furto famélico desde 2012, e 888 casos referentes ao princípio da insignificância desde 1988.

"Não é difícil imaginar que as condições socioeconômicas do Brasil vão favorecer o aumento desse tipo de subtração, de furto", afirma o defensor público federal Gustavo Ribeiro, que há anos atua em nome da Defensoria Pública da União (DPU) em julgamentos no Supremo. Crimes famélicos sempre foram comuns ao longo da história, afirma o defensor. "Mas é claro que andando nas ruas, frequentando supermercados, a gente vê um número cada vez maior de pedintes. A tendência é que essas condutas aumentem."


Segundo Ribeiro, o julgamento de um habeas corpus no STF (HC 84.412), em 2004, cujo relator foi o então ministro Celso de Mello, foi o divisor de águas neste casos e embasou todas as decisões subsequentes da corte. O ministro definiu os requisitos para se aceitar o princípio da insignificância, como a ausência de periculosidade da ação, a mínima ofensividade do agente, a inexpressividade da lesão e reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento.

Faz diferença, portanto, se o agente é réu primário ou não, se agiu sozinho ou em grupo, se houve violência na conduta e, sobretudo, se usou alguma arma no furto, por exemplo. No julgamento de 2004, Celso de Mello e os ministros da Segunda Turma, em votação unânime, invalidaram a condenação penal e deram habeas corpus ao agente do furto. O procedimento penal contra ele foi extinto.

Mas esse entendimento está longe de ser unanimidade no Judiciário. Em 2020, por exemplo, no julgamento sobre o furto dos três pedaços de carne citados no início da reportagem, no valor de R$ 172,50, o ministro Marco Aurélio não concordou com a suspensão da ação penal. Os ministros Rosa Weber e Luís Roberto Barroso, discordaram do relator. O caso foi polêmico, porque o agente do furto era reincidente. Ele não escapou da condenação penal e permaneceu preso.

A reincidência, explica o defensor Gustavo Ribeiro, muitas vezes afasta a insignificância. No entanto, ele observa que quem furta para saciar a fome ou porque precisa de itens para suprir necessidades básicas, como higiene, será reincidente pela dificuldade social: "Às vezes é uma pessoa em situação de rua, e ela tem fome. A fome volta. A pessoa não tem emprego, abrigo, nada, e muitas vezes há comprometimento da saúde mental. Mesmo assim, a gente não consegue aplicar o principio da insignificância."

Em 2021, esse foi o entendimento do ministro Joel Ilan Paciornik, do STJ, que revogou a prisão de uma moradora de rua há dez anos, que furtou dois pacotes de macarrão instantâneo, dois refrigerantes e um refresco em pó de um supermercado, itens que totalizavam R$ 21,69. Mas no tribunal de Justiça, o entendimento foi de que ela era reincidente e, por tanto, a liberdade condicional não se aplicaria.

O termo furto famélico, explica o defensor federal, não é aplicável apenas à fome, "mas é também no sentido de atender às necessidades mais básicas dessas pessoas vulneráveis". "A insignificância é extremamente casuística. Difícil vai ser traçar uma regra absoluta. Varia muito de caso a caso, e conforme também quem é o julgador", diz o defensor federal.

Ribeiro diz que sempre usa o mesmo argumento nos julgamentos: "Quem subtrai peça de carne, uma bermuda, um par de chinelos, dois queijos, milho, um frasco de desodorante ou um pacote de fraldas, o faz para enriquecer? Subtrai pela imediata necessidade. Esse tipo de furto é muito mais um problema social de falta de oportunidade e desigualdade do que uma questão de cadeia. E pela situação brasileira, na economia e superlotação do sistema carcerário, tende a criar mais problemas. Não acho que a solução seja encarceramento. Mas não é incomum, infelizmente."

Na Bahia, a Defensoria Pública Estadual fez um levantamento de todas as audiências de custódia realizadas de 2017 a 2021 em Salvador, de casos de furtos famélicos. "Enquadramos como famélico furtos de materiais de necessidades de primeira linha, como alimentos, remédios, material de higiene, básicos", explicou Pedro Casali, coordenador da Defensoria Pública Especializada Criminal e de Execução Penal da Defensoria da Bahia.

Em 2017, do total de furtos na capital 11,5% foram famélicos. Em 2021, a cifra saltou para 20,25%, mesmo com subnotificações geradas pela pandemia. "É muito difícil essa classificação, porque tem que olhar processo por processo. Aqui em Salvador, pelo menos, conseguimos fazer." Segundo o defensor, "o Brasil está vivendo um momento de muito empobrecimento e não há oferta de serviços públicos adequados". "O alimento como um direito social não é respeitado", afirma Casali, enfatizando o alto índice de insegurança alimentar.

"No direito penal, o furto tem pena de um a quatro anos. Não vai resolver em nada a questão da criminalidade e do furto famélico. Não são pessoas dedicadas ao crime, elas estão precisando sobreviver. O direito penal não é para chegar a essa situação. Tem que ser o direito assistencial, a assistência social a essas pessoas." Há, diz o defensor, um clamor público no Brasil pelo encarceramento e um ataque às audiências de custodia e institutos despenalizantes.

Em São Paulo, a Defensoria Pública se prepara para organizar um levantamento sobre furtos de alimentos em 2020, no pré-pandemia, até 2022. Um desafio, segundo o defensor público Glauco Mazetto, Assessor Criminal da Defensoria Pública do Estado. "Queremos aprofundar a pesquisa. Os dados aos quais tivemos acesso são insuficientes para chegarmos a uma conclusão científica se aumentou, diminuiu ou está igual [número de casos de roubos de alimentos]. Queremos uma base científica para essa resposta."

Mazetto observa, ainda, que é preciso distinguir furtos famélicos de furtos de alimentos. "Furto famélico é uma expressão que tem aparecido na imprensa como sinônimo de furto de alimentos. Esse não é o conceito de furto famélico para o direito, em que ele é a subtração de bens para a satisfação de uma necessidade alimentar. Esse estado de necessidade tem uma série de requisitos para o seu reconhecimento."

Ele reconhece que os casos de furtos de alimentos são inúmeros, mas pontua que na maior parte deles é complexo encontrar elementos para afirmar categoricamente se o indivíduo furtou porque não tinha condição nenhuma de satisfazer suas necessidades básicas para a alimentação. A discussão anterior, pontua, é sobre o princípio da insignificância do ato, para o qual já há entendimento no ordenamento jurídico. "Mas não tem consenso em relação a isso no Judiciário. A tendência a ser um critério objetivo, e não subjetivo. Mas está longe de ser algo pacífico, nada está escrito em pedra."

A despeito dos entendimentos controversos no Judiciário, Mazetto assegura que a desigualdade social é elemento comum a todos os casos desse tipo de furto. "Enquanto tivermos desigualdade social, esse tipo de conduta vai continuar a existir em grande volume, em grande escala. Juízes e promotores enfrentam isso desde o inicio de suas carreiras." Ele acrescenta que uma parcela do Judiciário "não quer aplicar o princípio da insignificância".

O defensor ainda guarda na memória o caso de furto de alimentos que mais o sensibilizou, em 2013. Uma mulher roubou dois potes de leite ninho num supermercado da capital paulista. Ela tinha acabado de dar à luz e havia perdido o emprego. Além disso, tinha sido assediada sexualmente pelo ex-chefe. "O Ministério Público, na época, e o juiz concordaram com a absolvição. A moça estava totalmente desamparada, a encaminhamos para atendimento disciplinar. Ela precisava muito de amparo psicológico."

O Estado não é inimigo da cidadania

O Estado deve servir para impulsionar e proteger a cidadania. Essa máxima política foi construída ao longo de séculos na Europa e nos Estados Unidos e só muito recentemente foi incorporada à lógica política brasileira, a partir de 1988 com a chamada (não por acaso) Constituição cidadã. Nos últimos 30 anos essa ideia evoluiu no Brasil e, mesmo com percalços e lacunas, foi a principal bússola do debate público. E aqui entra mais um ineditismo negativo do governo Bolsonaro: sua visão sobre o papel do Estado o torna inimigo da cidadania democrática.

O conceito de cidadão supõe a busca da igualdade como norteadora de todas as dimensões públicas da vida social. É preciso garantir direitos básicos a todos e criar condições para que cada um possa usufruir o máximo possível de sua cidadania. Trata-se de uma ideia com múltiplos pais: republicanos, liberais, democratas, socialistas, social-democratas e ecologistas. Há consensos e nuances nas visões desses grupos, mas todos concordam que a reprodução cotidiana da desigualdade na esfera pública é um mal a ser combatido.

O bolsonarismo é inimigo da ideia de igualdade cidadã. Sua proposta é de manter a desigualdade prévia de cada um, a partir da qual, ilusoriamente, se poderia exercer uma liberdade quase irrestrita, com exceção dos limites impostos pelo exercício do poder do líder maior, o mito - isto é, o presidente da República.

Na via inversa, o igualitarismo democrático é uma construção contínua de direitos e capacidades, o que exige uma ação efetiva do Estado e, concomitantemente, o seu controle. Bolsonaro propõe exatamente o contrário: que o governo seja frágil nas políticas que criam oportunidades e a possibilidade do exercício da cidadania, ao passo que o aparato estatal deve ser forte na garantia das desigualdades prévias e no exercício do poder repressivo, tornando-o incontrolável pela sociedade.


Vários acontecimentos recentes, derivados de ações bolsonaristas ou impulsionadas por seu ideário difundido nos últimos anos, mostraram como o Estado, sob a égide de Bolsonaro, está se transformando num inimigo feroz da igualdade num país marcado por múltiplas assimetrias desde a escravidão. Pode-se dividir tais episódios em três elementos estratégicos do papel do Estado frente à cidadania.

O primeiro é sua capacidade de usar os direitos para expandir capacidades de indivíduos e comunidades. O segundo é sua função de garantir a segurança e a liberdade de todos, indiscriminadamente, para que os cidadãos não sejam atingidos nem pela guerra de todos contra todos - a anomia social - e tampouco pelo poder desmesurado das forças estatais. Por fim, Estado democrático é aquele que contém instrumentos de controle sobre si, sejam externos, advindos da sociedade, sejam internos, advindos das instituições.

O igualitarismo não é uma obra pronta em nenhum país do mundo. Em todos, é preciso que haja direitos e que estes sejam alimentados por políticas públicas capazes de criar capacidades para exercer a autonomia individual e a vida comunitária.

Quando o governo Bolsonaro aprova na Câmara federal uma lei muito ampla de homeschooling, que se torna uma possibilidade para todos, e não uma situação muito excepcional para aqueles que teriam dificuldades de saúde ou de locomoção para usufruírem de um ano escolar regular, o que está sendo feito é reduzir a efetividade do Estado em construir oportunidades para os mais pobres e vulneráveis. Ou seja, para a grande maioria dos 48 milhões de estudantes da educação básica, os mesmos que o MEC bolsonarista abandonou na pandemia de covid-19.

O projeto de homeschooling bolsonarista, para além dos moralismos hipócritas que o sustentam, tem como principal consequência a perpetuação das desigualdades no Brasil. Quantos mais alunos pobres puderem fazer educação domiciliar, e certamente serão incentivados pelos bolsonaristas e algumas lideranças evangélicas que vão enriquecer vendendo sistemas de ensino feitos por semialfabetizados, mais terão reduzidas suas possibilidades de ascensão social.

Mais do que isso: ao não criar as condições para que todos possam ter escolas públicas de qualidade, que poderiam ser substituídas por um simulacro de ensino, Bolsonaro não só se vinga da ciência e dos que pensam autonomamente, como também embarga a chance daqueles que não têm acesso ao saber e ideias diferentes de mundo. Assim, o homeschooling causará um duplo empobrecimento: da renda futura dessas pessoas e do universo cultural ao qual terão acesso.

Cabe recordar que, para os gregos, a cidadania era uma forma de ampliar a capacidade de cada um e da comunidade sonharem. O bolsonarismo quer alimentar a ignorância para que todos se acomodem no status quo vigente, em suas misérias cotidianas, à espera de um salvador secular ou religioso, sem romper com as diferenças sociais históricas que determinam, no fundo, como o Estado pode abordar pessoas na favela ou no Leblon.

Se o governo Bolsonaro quisesse ampliar as capacidades de todos serem cidadãos, teria priorizado a educação, cujo ministério teve um recorde de ministros e que prefere servir ao clientelismo do orçamento secreto. Mais especificamente, se o bolsonarismo quisesse ter um modelo educacional para mudar a situação das pessoas mais pobres e de seus descendentes, estaria investindo em massa em políticas de primeira infância. A literatura internacional está repleta de evidências científicas interdisciplinares de que programas públicos de apoio e intervenção intersetorial junto aos bebês e crianças até os seis anos de idade constituem o motor mais potente de mudança social.

O presidente deveria pegar os R$ 35 bilhões das emendas parlamentares, ou pelo menos os quase R$ 20 bilhões do dinheiro federal que hoje compram de forma secreta tratores e caminhões de lixo para investir no futuro do país. Vale ressaltar que as políticas de primeira infância são feitas em diálogo e parceria com as famílias, mas dependem de uma intervenção constante do Estado em todos os momentos do desenvolvimento da criança - aliás, começando já na gravidez da mãe. Não será trancando as famílias em suas próprias casas, assombradas por líderes demagógicos, que os pobres verão seus filhos numa situação melhor no futuro.

O problema para o bolsonarismo é que desenvolver políticas públicas complexas significa investir em especialistas e servidores públicos que se movem pela ciência e pelo longo prazo. Não é por outra razão que Bolsonaro politizou gigantescamente a administração pública federal, enchendo-a de grupos que o obedecem fielmente, como milhares de apaniguados incompetentes, além de militares ocupando postos civis para os quais não têm preparação.

Para usar o Estado no desenvolvimento da cidadania, ele tem de ser o oposto do que quer o atual presidente: competente, autônomo frente a desmandos e controlável pela sociedade.

O modelo estatal bolsonarista tem uma segunda frente contra a cidadania: ele não busca garantir os direitos iguais dos cidadãos em relação à lei e sua aplicação pelas forças de segurança. O caso de Genivaldo Santos, torturado e morto na semana passada pela Polícia Rodoviária Federal em Sergipe, revela o modelo estatal que Bolsonaro defende.

A vítima foi tratada como culpado desde o início, não lhe sobrando nenhum momento de defesa da sua condição de cidadão. Sua posição social explica a postura dos policiais: negro, pobre e com problemas de saúde mental, Genivaldo seria, para o bolsonarismo, um desigual por natureza e assim deverá ser tratado pelo aparato estatal, assim como indígenas, moradores de rua, pretos, travestis e todos os que não se encaixam no perfil do “homem de bem” bolsonarista.

No fundo, Bolsonaro defende um Leviatã às avessas. O Estado representado pelo monstro com vários braços proposto por Thomas Hobbes tinha como objetivo resguardar a vida e a segurança de todos, sem exceção. Isso seria feito por contrato com participação integral da sociedade, que só aceitava repassar tanto poder à soberania estatal porque ela seria justa e equânime. O bolsonarismo quer ter o monstro com seu poder bélico em suas mãos, mas para enfraquecer a ideia de igualdade, e não para garanti-la.

O último elemento da cidadania democrática refutado pelo bolsonarismo é a ideia de accountability, isto é, de controle público. Para que haja uma sociedade com cidadãos autônomos e respeitados, é preciso, a um só tempo, ampliar e demarcar bem o poder estatal. É trágico como Bolsonaro não quer ampliar o Estado para construir oportunidades e capacidades a todos, mas quer um aparato estatal autocrático e sem fiscalização, quer seja da sociedade, quer seja das instituições. Quando o atual presidente busca enfraquecer o STF ou a Federação, ele se torna um autocrata inimigo da cidadania.

O sonho bolsonarista é duplo. De um lado, uma desresponsabilização do Estado com os mais pobres e sua desregulamentação frente a garimpeiros ilegais, milicianos e motoristas brancos da classe média para cima que andam em suas motos sem capacetes. De outro, o Estado forte será destinado à repressão dos eternos condenados à desigualdade, como também poderá ser usado para ameaçar as instituições que tentam limitar o poder presidencial. Bolsonaro quer se reeleger para que a cidadania inventada pela Constituição de 1988 tenha sua morte decretada no Brasil.

Fanatismo

A essência do fanatismo consiste em considerar determinado problema como tão importante que ultrapasse qualquer outro. Os bizantinos, nos dias que precederam a conquista turca, entendiam ser mais importante evitar o uso do pão ázimo na comunhão do que salvar Constantinopla para a cristandade. Muitos habitantes da península indiana estão dispostos a precipitar o seu país na ruína por divergirem numa questão importante: saber se o pecado mais detestável consiste em comer carne de porco ou de vaca. Os reacionários americanos prefeririam perder a próxima guerra do que empregar nas investigações atómicas qualquer indivíduo cujo primo em segundo grau tivesse encontrado um comunista nalguma região. Durante a Primeira Guerra Mundial, os escoceses sabatários, a despeito da escassez de víveres provocada pela atividade dos submarinos alemães, protestavam contra a plantação de batatas ao domingo e diziam que a cólera divina, devido a esse pecado, explicava os nossos malogros militares. Os que opõem objecções teológicas à limitação dos nascimentos, consentem que a fome, a miséria e a guerra persistam até ao fim dos tempos porque não podem esquecer um texto, mal interpretado, do Génese. Os partidários entusiastas do comunismo, tal como os seus maiores inimigos, preferem ver a raça humana exterminada pela radioatividade do que chegar a um compromisso com o mal - capitalismo ou comunismo segundo o caso. Tudo isto são exemplos de fanatismo.


Em cada comunidade há um certo número de fanáticos por temperamento. Alguns desses fanáticos são essencialmente inofensivos e os outros não fazem mal enquanto os seus partidários forem pouco numerosos ou estiverem afastados do poder. Os “amish” na Pensilvânia pensam que é mau usar botões; isto é completamente inofensivo, salvo na medida em que revela um estado de espírito absurdo. Alguns protestantes extremistas gostariam de ressuscitar a perseguição aos católicos; essas pessoas só serão inofensivas enquanto forem em pequeno número. Para que o fanatismo se torne uma ameaça séria é preciso que possua bastantes partidários para pôr a paz em perigo, internamente por meio de uma guerra civil ou externamente por uma cruzada; ou quando, sem guerra civil, estabeleça uma Lei dos Santos que implique a perseguição e a estagnação mental. No passado, o melhor exemplo da história é o reinado da Igreja desde o século IV ao século XVI.

(...) Para curar o fanatismo - salvo nas aberrações raras dos indivíduos excêntricos - são necessárias três condições: segurança, prosperidade e educação liberal.
Bertrand Russell, "A Última Oportunidade do Homem"

Volkswagen: pois eles sabiam o que estavam fazendo

A VW se depara novamente com seu passado sombrio no Brasil. Mais uma vez, a montadora alemã é alvo do Ministério Público por violações de direitos humanos. Concretamente trata-se de violações de leis trabalhistas, que no Brasil são classificadas como como trabalho análogo ao de escravo. Elas ocorreram numa fazenda de gado que a empresa possuía na Amazônia entre 1974 e 1986.

Segundo o Ministério Público responsável, a empresa empregava na fazenda funcionários terceirizados que eram "tratados como animais". Estima-se que entre 600 e 1.200 trabalhadores tinham que pagar pela própria acomodação, alimentação e transporte. Como desde o início estavam altamente endividados, eram impedidos de deixar a fazenda. Serviços de segurança privados os impediam, além de manter um regimento brutal. Havia tortura, punições e tiros. Doentes não recebiam tratamento, e, principalmente, a malária grassava.

Nos últimos três anos, o Ministério Público recolheu provas e depoimentos. O estopim foi um dossiê no qual o padre e professor Ricardo Rezende Figueira trabalhou por mais de 40 anos. Ele era o vigário de uma paróquia perto da fazenda e testemunhou em primeira mão as condições desumanas, quando alguns trabalhadores conseguiram deixar o local. Posteriormente, conseguiu que parlamentares de São Paulo visitassem a fazenda e confirmassem, pelo menos em parte, essas denúncias.


No entanto nada aconteceu. A maior frustração de Figueira, segundo ele, é jamais ter conseguido responsabilizar a Volkswagen pelas violações de direitos humanos. Ao mesmo tempo, a empresa mandou investigar seu passado nazista na Alemanha e pagou 4,4 bilhões de euros em indenizações a quase 1,7 milhão de ex-trabalhadores forçados. No Brasil, entretanto, nada aconteceu.

A imprensa, o Judiciário, a Polícia, os governos e até mesmo sindicatos de São Paulo não se interessaram pelo assunto, afirma Figueira que coordena o Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Uma nova oportunidade para processar a Volkswagen surgiu para Figueira em 2020, quando a montadora admitiu indiretamente violações de direitos humanos durante a ditadura militar: a empresa pagou indenizações a ex-funcionários, grupos de direitos humanos e sindicatos que foram vítimas da repressão do pessoal de segurança da fábrica, aliado a forças de segurança da ditadura na década de 1970. A Volkswagen pagou R$ 36 milhões, tornando-se a primeira empresa no Brasil a assumir responsabilidade histórica pela colaboração com a ditadura.

Agora, o Ministério Público convocou a empresa para uma audiência em 14 de junho na tentativa de chegar a um acordo extrajudicial entre as vítimas da Amazônia e a Volkswagen. Isso é urgentemente necessário: só assim empresas como a Volkswagen, mas sobretudo outras multinacionais e nacionais no Brasil, vão assumir sua responsabilidade.

Porque é importante que os argumentos utilizados por empresas como Volkswagen para se eximirem de qualquer culpa nas cadeias de produção sejam vistos pelo que são: desculpas esfarrapadas.

As justificativas são sempre algo assim: "a Volks não teria conhecimento da situação"; "a responsabilidade pelas violações de direitos humanos seria dos terceirizados"; "essas eram as condições normais de trabalho em fazendas da Amazônia na época"; "mas isso tudo ocorreu há 50 anos!"

Esses argumentos são pérfidos, pois a Volkswagen apostou conscientemente em trabalhadores baratos e desprovidos de direitos, e num Estado que fazia vista grossa. Ela tolerou violações de direitos humanos em sua cadeia de produção – e a sede em Wolfsburg deveria, quase com certeza, também ter conhecimento disso. Qualquer membro da diretoria que visitasse a fazenda poderia, se quisesse, ver as medidas de segurança aplicadas contra seus próprios funcionários.

É extremamente importante a empresa ser responsabilidade agora, mesmo após 50 anos. Isso será um exemplo, tanto no Brasil quanto para montadoras em todo o mundo. Como na China, onde a Volkswagen mantém uma fábrica na região de Xinjiang, apesar das revelações de violência contra os uigures.