terça-feira, 28 de março de 2017


A última tragédia ainda não começou

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Qualquer diferença entre valores ditos fundamentais verificados na vida de cada um merece a unidade de todos. Traduzindo: nenhuma identidade pode ser admitida como definitiva na existência do todo. Em outras palavras, as certezas precisam ser afastadas das conclusões adotadas pelas antecedências. Ninguém pode dizer que chegou ao fim naquilo que não começou. Nem no começo daquilo que não terminou.

Essas confusas tragédias da vida de cada um, que conduzem à inexistência de todos, revelam o vazio jamais conquistado pelo conjunto. Trata-se do nunca, do zero absoluto que nos envolve. Quem, no meio da ignorância definitiva que nos assola, ousará concluir pela presença de alguma coisa permanente e eterna?

Em suma, jamais chegaremos ao final de um dia definitivo e completado pelo que seria a última tragédia. Melhor aguardar a última tragédia.

Direita, esquerda e realidade

Impressionei-me há pouco com uma polêmica ilustrativa entre o professor Samuel Pessoa e o professor Rui Fausto na revista “Piauí”. Os debatedores são dois homens de alto nível, ilustres, mas dava para ver o desejo exasperado de Rui Fausto defendendo os conceitos que o formaram, no seio mais profundo do marxismo. Pessoa defendia mudanças pragmáticas na ideologia, mas Rui se apegou à tentativa de salvar sua fé, propondo um “capitalismo cerceado, autolimitado”, quase um capitalismo sem mercado. Quase repetindo a frase famosa de Geisel quando disse que era a favor do capitalismo, mas contra o lucro.

Pessoa também diz: “Não ocorre a Rui que alguém possa ter reavaliado suas ideias em direção a uma aplicação possível da social-democracia. Quem evolui é imediatamente tachado de neoliberal ou fascista”. Na mosca. A grandeza de uma nova esquerda teria de ser a aceitação do possível, mas isso não é sedutor.

E, hoje, vemos a urgente necessidade de uma reforma no país, quase com perda total, pela estupidez brizolista da presidenta. E vemos a universidade crivada de agitação e propaganda pelos professores. Vemos a espantosa ignorância dos que protestam contra a revisão do país.

Por isso, dediquei-me a listar impressões sobre esquerda e direita, na acepção primitiva de nossa paisagem ideológica. Aí vai.

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A esquerda se considera o Bem. A direita se considera o Bem. Ninguém bate no peito e grita: “Eu sou o Mal!”. Ninguém é canalha e todo mundo se acha meio “de esquerda”, porque sabe que essa palavra ostenta um halo luzente, como uma coroa de santinho. Ninguém quer ser “de direita” – palavra com o estigma da peste, da maldade contra o povo.

O esquerdista de punho cerrado e carteirinha se sente justo e abençoado por um ideal, e absolvido por seus erros. Ele quer a “purificação” da sociedade, e tão nobre é esse anseio que ele pode ignorar incômodos detalhes da política normal – a santidade não precisa da prudência. As complexidades da democracia o entediam e são lidas como frescura, vacilação pequeno-burguesa e, no limite, traição; macho vai à luta em linha reta, ignorando obstáculos – hesitação é coisa de viado (aliás, quem escreve “veado” é “viado” – apud Millôr F.).

Ele ignora meios objetivos, pois se acha fadado à vitória final que virá um dia. Quando? Ele não sabe, mas tem fé, como um bispo da pastoral.

Como será essa “redenção”? Ela é uma vaga imagem de massas cantando nas praças, punhos erguidos, todos regidos por chefes iluminados, passando por cima da democracia, esta coisa labiríntica que enche o saco. A esquerda ama uma categoria imaginária chamada “povo”, sinônimo ibérico de “proletariado”.

Povo: multidões sem teto, sem terra, sem cultura política. Nossos pobres destituídos não opinam, não têm poder algum, mas, para o esquerdista tradicional, eles têm a aura, o charme franciscano do nada. Nada ter é santo. Eles fascinam por sua pureza, muito aquém do mercado ou da globalização da economia. Assim, a invencível circularidade do mundo ficaria sob controle, e os sentimentos “individualistas” ficariam domados sob a ideia da “solidariedade”, este remotíssimo sentimento humano.

O típico esquerdista sonha com um passado de paz (quando houve?). Sua utopia é regressiva, de marcha a ré. Eles até aceitam provisoriamente a complexidade para poder “operar”, mas sempre de olho no tal futuro simplório e meio maoísta. Aliás, a esquerda brasileira é um sarapatel de leninismo com populismo brizolista (vide Dilma) que o PT, aliado à pior direita patrimonialista, transformou em apropriação indébita.

A esquerda não tem memória. Dá um frio na espinha vê-la tender para os mesmos erros de sempre, os mesmo planos descolados da realidade. Mais terrível ainda: as derrotas e fracassos tendem a ser considerados “santos martírios” – estranha cruzada que se orgulha das derrotas. Quanto mais sofrimento, mais merecimento. Esse masoquismo óbvio não pode ser autocriticado , revisto, pois a esquerda tem pavor de cair num temido desvio de direita – o horror máximo! Qualquer esquerdista prefere ser chamado de “sectário”, em vez de “traidor’. Gostam de gestos radicais, impensados – coisas de machos.

Ao invés de se incluir no mundo real, criticamente, revendo dogmas e táticas, a esquerda continua, contra todas as evidências, querendo mudar, com enxadas e desejos, o mundo atual como se muda o curso de um rio. A ideia de revolução continua entranhada em suas cabeças como um tumor inoperável.
A esquerda acha que é o sujeito da história, enquanto a direita sabe que a história não tem sujeito; só tem objeto – o lucro.

A esquerda confunde utopia com projeto. Já o capitalista só tem um projeto: ele mesmo. A esquerda só tem fins; não tem meios. O burguês só tem meios – ele é um fim em si mesmo. “Um dia chegaremos lá” – diz a esquerda. O burguês já chegou. O esquerdista tradicional não aceita que o capitalismo tenha dominado o mundo, quando até a China sabe disso. A esquerda brasileira existe como nostalgia da esquerda – quer voltar a ser o que nunca foi.

A esquerda sonha com o futuro; a direita, com o mercado futuro. A esquerda sonha com o Bem; a direita com os bens. A esquerda só ama o todo; a direita só pensa na parte (a sua).

A esquerda é católica; a direita, luterana. A esquerda não acredita na democracia; a direita também não. A esquerda não leu “O Capital”; a direita também não, mas conhece o enredo.

A esquerda é épica; a direita, realista. A esquerda se acha mais inteligente do que nós; a direita o é.
E, para terminar, lembro-me de outra polêmica mais antiga, também entre pessoas inteligentíssimas e cultas.

Eram dois marxistas sérios discutindo com o grande liberal José Guilherme Merquior na TV.

Os dois esquerdistas desfiavam os grandes erros do comunismo, numa autocrítica lúcida e autêntica: “Ah... porque erramos em 1935, na Intentona, em 1956, na Hungria, em 1968, em Praga, em 1968, no Brasil, erramos nisso, naquilo, aqui, acolá... etc”. José Guilherme não se aguentou e disparou: “Por que vocês não desistem?” .

Gente fora do mapa

Como raízes do Cerrado levam água às torneiras de todo país

O rio São Francisco está secando, haverá cada vez menos água em Brasília e a cidade de São Paulo terá de aprender a conviver com racionamentos.

O alerta é do arqueólogo e antropólogo baiano Altair Sales Barbosa, que há quase 50 anos estuda o papel do Cerrado na regulação de grandes rios da América do Sul.

Ele diz à BBC Brasil que a rápida destruição do bioma está golpeando um dos pilares do sistema: a gigantesca rede de raízes que atua como uma esponja, ajudando a recarregar os aquíferos que levam água a torneiras de todas as regiões do Brasil.

Formado em antropologia pela Universidade Católica do Chile, doutor em arqueologia pré-histórica pelo Museu de História Natural de Washington e professor aposentado da PUC-Goiás, Barbosa conta que a água que alimenta o São Francisco e as represas de São Paulo e Brasília vem de três grandes depósitos subterrâneos no Cerrado: os aquíferos Guarani, Urucuia e Bambuí.

Os aquíferos são reabastecidos pela chuva, mas dependem da vegetação para que a água chegue lá embaixo.

Barbosa afirma que muitas plantas do Cerrado têm só um terço de sua estrutura acima da superfície e, para sobreviver num ambiente com solo oligotrófico (pobre em nutrientes), desenvolveram raízes profundas e bastante ramificadas.

"Se você arrancar uma dessas plantas, vai contar milhares ou até milhões de raízes, e quando cortar uma raiz e levá-la ao microscópio, verá inúmeras outras minirraízes que se entrelaçam com as de outras plantas, formando uma espécie de esponja."

Esse complexo sistema radicular retém água e alimenta as plantas na estação seca. Graças a ele, as árvores do Cerrado não perdem as folhas mesmo nem mesmo no auge da estiagem - diferentemente do que ocorre entre as espécies do Semiárido, por exemplo.

Plantas do cerrado atuam como uma imensa esponja, recarregando
 aquíferos que abastecem rios e reservatórios
Barbosa conta que, quando há excesso de água, as raízes agem como esponjas encharcadas, vertendo o líquido não absorvido para lençóis freáticos no fundo. Dos lençóis freáticos a água passa para os aquíferos.

O professor diz que essa dinâmica começou a ser afetada radicalmente nos anos 1970, com a expansão da pecuária e de grandes plantações de grãos e algodão pelo Cerrado.

A nova vegetação tem raízes curtas e não consegue transportar a água para o fundo.

Pior: entre a colheita e o replantio, as terras ficam nuas, fazendo com que a água da chuva evapore antes de penetrar o solo. Em alguns pontos do Cerrado, como no entorno de Brasília, o uso de água subterrânea para a irrigação prejudica ainda mais a recarga dos aquíferos.

Em fevereiro, Brasília começou a racionar água pela primeira vez na história - e meses antes do início da temporada seca.
Migração de nascentes

Conforme os aquíferos deixaram de ser plenamente recarregados, Barbosa diz que se acelerou na região um fenômeno conhecido como migração de nascentes.

Para explicar o processo, ele recorre à imagem de uma caixa d'água com vários furos. Quando diminui o nível da caixa d'água, o líquido deixa de jorrar dos furos superiores.

Com os aquíferos ocorre o mesmo: se o nível de água cai, nascentes em áreas mais elevadas secam.

Ele diz ter presenciado o fenômeno num dos principais afluentes do São Francisco, o rio Grande, cuja nascente teria migrado quase 100 quilômetros a jusante desde 1970.

O mesmo se deu, segundo Barbosa, nos chapadões no oeste da Bahia e de Minas Gerais: com a retirada da cobertura vegetal, vários rios que vertiam água para o São Francisco e o Tocantins sumiram.

O professor diz que a perda de afluentes reduziu o fluxo dos rios e baixou o nível de reservatórios que abastecem cidades do Nordeste, Centro-Oeste e Norte.

Em 2017, segundo a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec), o número de municípios brasileiros em situação de emergência causada por longa estiagem chegou a 872, a maioria no Nordeste.

Já em São Paulo as chuvas de verão aumentaram os níveis das represas e afastaram no curto prazo o risco de racionamento. Mas Barbosa afirma que a maioria dos rios que cruza o Estado é alimentada pelo aquífero Guarani, cujo nível também vem baixando.

O aquífero abastece toda a Bacia do Paraná, que se estende do Mato Grosso ao Rio Grande do Sul, englobando ainda partes da Argentina, Paraguai e Uruguai.
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'Partidocracia'


Pela lista fechada, o candidato vai ficar situado entre o eleitor e o partido, isso não é soberania popular é soberania partidária. Se você colocar o partido como representante do povo, você substitui a democracia pela 'partidocracia'
Carlos Ayres Britto , ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF)

Partido quer devolver quase R$ 2 milhões ao Fundo

Quase R$ 2 milhões do Fundo Partidário estão parados em uma conta do Partido Novo. A agremiação é contra o repasse de dinheiro público para os partidos políticos. Por isso, desde setembro de 2015, quando o partido foi criado, é estudada a melhor forma de devolver os recursos para a União.

Se o partido tivesse se recusado a receber os recursos, o montante teria retornado ao Fundo e seria dividido entre outras agremiações.

De acordo com o secretário-executivo do Novo, César Franco, a agremiação já pensou em doar os recursos para um fim ou entidade social ou, ainda, utilizar a verba para fazer publicidade contra o Fundo Partidário.

A primeira ideia esbarrou na própria legislação do Fundo destinado às agremiações, que poderia entender a doação como compra de votos. Já a campanha publicitária foi considerada desperdício de dinheiro, tendo em vista que o Novo já trabalha com essa pauta, de forma quase gratuita, nas mídias sociais.

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Agora, em uma nova tentativa para “se livrar” do montante parado em três contas do Brasil do Brasil, conforme manda a legislação, o partido conversa com o Tesouro Nacional para encaminhar os recursos para o caixa único do governo, que poderá avaliar aonde alocar melhor a verba.

“Como a legislação determina como os recursos devem ser usados, estamos avaliando a possibilidade de encaminhar para o Tesouro valor similar ao recebido, mas proveniente do caixa do partido. Com o valor devolvido, utilizaríamos o Fundo Partidário para as atividades do Novo. Devolvemos o recebido, mas sem desrespeitar a legislação que rege o Fundo”, explica

Cabe ressaltar que apenas 75% do montante recebido pelo Novo poderá retornar para os cofres públicos. Isso acontece em razão da legislação prever que 20% do fundo seja aplicado na Fundação mantida pelo partido e outros 5% serem utilizados na promoção da mulher na política.

De acordo com dados de Franco, desde a fundação o Novo estabeleceu que só existirá enquanto os filiados assim o quiserem. Cada filiado pode contribuir com o mínimo de R$ 28,23 por mês ou pode fazer uma contribuição anual. Hoje, o Novo conta com 10 mil filiados, sendo que 70% a 80% fazem doações mensais. O partido também conta com doações individuais de não-filiados, que somam pouco mais de mil pessoas. A renda mensal total giram em torno de R$ 250 mil.

“A não utilização de recursos públicos surgiu porque o Novo entende que verba dessa origem tira a representatividade dos filiados com os partidos. Uma das formas de garantir para o filiado que não vamos desviar dos ideais defendidos é depender exclusivamente deles”, aponta.

Para Franco, muito da falta de representatividade que os partidos vivenciam atualmente é resultado da utilização de recursos públicos. “Em um modelo em que se busca representatividade da população nos partidos, imaginamos que não receber recursos públicos seja o ideal. No contexto de aumento de verba pública para o Fundo Partidário e criação de novo fundo para campanhas sendo vislumbrada no Congresso, os outros partidos estão na contramão do que a população pede”, explica.

Em 2017, a previsão é que R$ 810,1 milhões cheguem aos cofres de 35 partidos políticos brasileiros. O Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, denominado Fundo Partidário, é constituído por dotações orçamentárias da União, multas, penalidades, doações e outros recursos financeiros que lhes forem atribuídos por lei.

Os valores repassados aos partidos políticos, referentes aos duodécimos e multas (discriminados por partido e relativos ao mês de distribuição), são publicados mensalmente no Diário da Justiça Eletrônico.

O fundo existe desde 1965 e tem como objetivo garantir que os partidos tenham autonomia financeira, para criar espaço para a diversidade de ideias na nossa política. Ele é composto a partir de multas e penalidades eleitorais, recursos financeiros legais, doações espontâneas privadas e dotações orçamentárias públicas.

Paisagem brasileira

Mário Zanini , Igreja de São Vicente, São Vicente, SP, 1940, ost, 33 x 46, MACSP
Igreja de São Vicente, São Vicente ( SP), 1940, Mário Zanini

Impugnação da chapa Dilma-Temer ameaça a pinguela

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"O governo atual é uma pinguela"
Fernando Henrique Cardoso

Todos foram pegos de surpresa – o governo, o Congresso e até mesmo os ministros que no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que julgarão o caso. Eles contavam que só daqui a 15 dias ou um pouco mais, o ministro Herman Benjamin apresentasse seu voto como relator no processo movido pelo PSDB que pede a cassação da chapa Dilma-Temer por abuso de poder econômico e outras irregularidades.

Benjamin despachou, ontem, cópia do seu voto para os demais seis ministros do TSE. Telefonou ao presidente, Gilmar Mendes, e pediu que incluísse o processo na pauta de julgamentos do plenário. A cumprir-se a norma, o processo deverá ser votado na próxima semana. Gilmar adiantou que a norma será respeitada. Se for, e se nenhum ministro pedir vista do processo, o caso será encerrado em seguida.

É provável que algum ministro peça, sim. O assunto é polêmico e de alto teor explosivo. O voto de Benjamin tem pouco mais de mil páginas. E quanto mais tempo demorar para ser apreciado, melhor para o governo. Em abril, o ministro Henrique Neves deixará o TSE com o término do seu mandato. Em maio será a vez da ministra Luciana Lóssio. Gente que cerca o presidente Michel Temer acha que os dois votariam pela cassação.

O plenário é composto de sete ministros. Com três votos pela cassação, incluído o de Benjamin, bastaria mais um para decidir a parada. Benjamin se recusa a revelar seu voto. Só o fará quando o ler em plenário. Mas até os apontadores do jogo do bicho na Esplanada dos Ministérios sabem que ele votará pela cassação da chapa completa. Há sólida jurisprudência no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o julgamento de contas eleitorais.

Se titular de chapa e vice são votados juntos, as contas de campanha deles não podem ser separadas. No início de 2015, quando o PSDB entrou com o processo contra a chapa, Dilma ainda era presidente e Temer não passava de um “vice decorativo”. Foi ele mesmo quem se considerou assim. Com o impeachment de Dilma, o PSDB passou a governar junto com o PMDB de Temer. Não quer mais cassá-lo, só a Dilma.

A eventual cassação da chapa não produziria efeitos imediatos. As defesas de Temer e de Dilma ainda poderiam entrar com recursos no TSE. E mais tarde, se necessário, no STF. Mas o efeito político do julgamento poderia ser catastrófico para o governo às vésperas de votações importantes no Congresso – entre elas a da reforma da Previdência, por ora, emperrada. Temer aposta na força de Gilmar para sustentar a pinguela.

Compram-se leis e governos

Na manhã de segunda-feira 31 de março de 2014, o empresário Marcelo Odebrecht recebeu uma planilha financeira organizada por Hilberto da Silva, chefe do Departamento de Operações Estruturadas da empreiteira.

Calvo, dono de um sorriso que lhe repuxa o olho direito, Hilberto era o terceiro a comandar um dos mais antigos núcleos operacionais da construtora, o de pagamento de propinas. Noberto, fundador e avô de Marcelo, tivera a assessoria de Benedito da Luz. Emílio, o pai, nomeara Antonio Ferreira. Marcelo, o herdeiro, assumiu em 2006, escolheu Hilberto e pôs a unidade no organograma do grupo, disfarçada como “Operações Estruturadas”.

Conferiu a planilha: restavam R$ 50 milhões na conta, desde 2010. Só ele sabia a origem e o destino daquele dinheiro. Depois de quatro anos adormecido no caixa paralelo, chegara a hora de repassá-lo à campanha de reeleição da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer.

“O que eu acho que contamina a campanha de 2014 é esse dinheiro do Refis”, ele disse em depoimento no Tribunal Superior Eleitoral, no último 1º de março. “Esse, sim, foi uma contrapartida específica”, acrescentou.

Por trás da propina de R$ 50 milhões à campanha Dilma-Temer, segundo Marcelo, está a história da compra de uma medida provisória (nº 470, ou “Refis da Crise”) no fim do governo Lula.

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Era 2009. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, negociava com empresas devedoras da Receita e da Previdência Social. “Eu sei que, no meio dessa discussão de 2009, aí, sim, nesse caso específico, o Guido me fez uma solicitação, de que tinha uma expectativa de 50 milhões para a campanha de 2010 dela, tá?” — relatou Marcelo, em juízo. “Foi o único pedido, digamos assim, de contrapartida específica que o Guido me fez, no contexto de uma negociação, tá?”

A MP chegou ao Congresso com 61 artigos. De lá saiu com 140. O juiz quis saber se a expectativa fora atendida já na medida provisória ou, depois, no Congresso. Marcelo explicou: “As coisas nunca são atendidas prontamente. Na verdade, uma parte se consegue via governo. Depois você tenta incluir algumas emendas, aí, a Fazenda acaba vetando algumas, então, é o que se consegue. A gente conseguiu algo que era pelo menos razoável para a gente”.

Lula sancionou o “Refis da Crise” em janeiro de 2010. Reduziu em até 75% nas dívidas acumuladas com a Receita e o INSS, deu 15 anos para pagamento do saldo e anistiou as multas. Premiou os devedores, tradicionais financiadores de campanhas. Puniu quem pagava em dia seus tributos.

A “contrapartida específica” de R$ 50 milhões não foi usada na eleição de 2010. Ficou na “conta-corrente do governo” — definições do próprio Marcelo —, no setor de propinas. Em março de 2014, quando acabava o mensalão, e começava a Lava-Jato, ele resolveu aumentar a aposta: aos R$ 50 milhões pelo “Refis da Crise”, acrescentou R$ 100 milhões. Megalômano, passou a se achar “o inventor” da reeleição de Dilma-Temer, como disse em juízo.

Habituara-se a comprar leis e governantes, transferindo os custos aos contratos da Odebrecht com o setor público — os brasileiros pagaram várias vezes a mesma conta. Até hoje, ninguém se preocupou em construir mecanismos institucionais para impedir a captura do Executivo e do Legislativo pela iniciativa privada, como Marcelo e outros fizeram.

José Casado