sábado, 17 de abril de 2021

As fomes do Brasil

No seu livro "El Hambre", um tijolo com mais de 600 páginas que mistura ensaio e reportagem, o jornalista argentino Martín Caparrós argumenta que a fome contemporânea é a mais canalha da história, pois nem sequer existe a justificativa de que não há comida suficiente para alimentar todo mundo. Só não o fazemos devido a um sistema de circulação de bens que concentra a riqueza nas mãos de poucos.

A pandemia decuplicou o problema. Se eu caminho por 15 minutos, da rua onde moro até o largo do Machado, para buscar uma encomenda nos Correios, sou parado de três a quatro vezes com pedidos de dinheiro. "Para comprar comida" —é a explicação de homens ou de mulheres com filhos agarrados às pernas. Quando não tocam o interfone do meu prédio, a qualquer hora, com a mesma solicitação.


Quem recebe algum tipo de auxílio sonha em ver carne no prato em primeiro lugar e depois ovo, arroz, feijão. Passar algum tempo, enquanto o dinheiro durar, longe dos ultraprocessados —macarrão instantâneo, biscoitos, salgadinhos—, que fazem mal à saúde e têm sido um engana-barriga na adversidade.

Um ano depois do primeiro caso de Covid, o país passou a discutir um conceito, o da insegurança alimentar, antes restrito aos pesquisadores. Os estudos registram números alarmantes: 59,3% dos brasileiros —125,6 milhões— não comeram em quantidade e qualidade ideais desde a chegada do vírus. Para 44% das pessoas, a carne sumiu.

O governo atual nunca se interessou em combater a desigualdade --nem antes nem durante a pandemia. E, como também jamais enfrentou a crise sanitária, tornou-se o principal agente da fome. Um sabotador da vida por cálculo político.

Não à toa Bolsonaro vive antevendo saques, desordens e convulsões sociais. "O Brasil está no limite. Parece um barril de pólvora", comemora o presidente que se alimenta no bandejão do caos.

Pensamento do Dia

 


Legados e passivos herdados da pandemia

Temos vivido momentos tristes, tensos e angustiantes. Estamos nos aproximando de 370 mil vidas brasileiras perdidas. O desemprego bate à porta do trabalhador. A fome e a miséria se agravam no cotidiano da população que vive em extrema pobreza.

Talvez pudéssemos encontrar conforto no texto do escritor e dramaturgo Caio Fernando Abreu: “Nada dura para sempre, nem as dores, nem as alegrias. Tudo é aprendizado. Tudo na vida se supera”. Cometemos muitos erros. E como disse Freud: “De erro em erro descobre-se a verdade inteira”. Confúcio ensinou: “Há três métodos para ganhar sabedoria: primeiro, por reflexão, que é o mais nobre; segundo, por imitação, que é o mais simples; e terceiro por experiência, que é o mais amargo”.


Na saúde teremos como legado a valorização do sistema nacional de saúde. O SUS teve uma ação heroica para superar seus gargalos e vazios assistenciais. A saúde suplementar teve uma ação solidária e eficiente aliviando tensões adicionais sobre o sistema público. Os profissionais de saúde foram testados ao limite. É o ambiente propício para as mudanças necessárias. O SUS demanda de todos nós reforço orçamentário, clareamento do padrão de integralidade que queremos oferecer e uma nitidez maior das atribuições de cada ator no pacto federativo setorial, para que não se repitam os conflitos que assistimos.

Na área educacional podemos enfrentar um passivo gravíssimo com o desestímulo às crianças e jovens mais pobres pela interrupção do processo pedagógico ocasionado pela pandemia. O Brasil, que universalizou o acesso ao ensino fundamental e tem uma luta inconclusa em relação aos padrões de qualidade, pode agravar o abismo social e as iniquidades, cancelando o horizonte de esperança que os mais pobres depositam na educação de seus filhos, para prepara-los para a cidadania e o mercado de trabalho.

No mundo do trabalho, a pandemia revelou um verdadeiro Raio X. Descobrimos os invisíveis. Revelamos que os nossos cadastros são falhos. Talvez seja a chance de amadurecermos um cadastro único eficaz e a identidade digital única dos cidadãos brasileiros. Formas alternativas e flexíveis de relações de trabalho foram reveladas. Entretanto, apenas uma minoria pode desempenhar suas funções “on line”. O mundo pós-moderno diferenciou trabalho e emprego. É preciso repensar o mundo do trabalho acossado pela introdução de inovações radicais. E a partir daí, reorganizar nosso sistema de seguridade social, pensado para uma sociedade industrial do século passado.

As novas tecnologias possibilitam avanços como a Teleducação, a Tele Saúde, novos serviços digitais, públicos e privados. No momento em que se discute a introdução do 5G é fundamental estar atento à questão da exclusão digital e ter como objetivo a universalização do acesso à serviços de qualidade.

Aprendemos, na pandemia, que o orçamento público não é elástico. O “Orçamento de Guerra” de 2020 que bancou despesas de saúde, auxílio emergencial, apoio às empresas foi à custa de um forte endividamento. E, o imbróglio do orçamento de 2021 revelou nossos limites e impõe uma radical mudança estrutural na dinâmica rígida das despesas públicas.

Mas, o maior legado da pandemia é se a partir dela construirmos uma sociedade mais solidária e generosa. Não é a única opção. Escolher o futuro que queremos está em nossas mãos.

Pandemia dos desiguais

A Covid-19 deixou em evidência uma verdadeira pandemia de desigualdades, no mundo e em nossa região. É necessário que os governos ajam para garantir meios de subsistência e acesso a serviços. Agir para as pessoas não perderem suas casas e ficarem mais expostas ao vírus. Os direitos humanos devem estar no centro da resposta e de recuperação da crise.
A crise sanitária e socioeconômica precisa ser abordada conjuntamente. Não podem escolher entre saúde e economia. Como pedir que uma pessoa lave as mãos se ela não tem acesso a água, ou pedir distanciamento se moram em aglomerações?
Michelle Bachelet, alta comissária para Direitos Humanos nas Nações Unidas e ex-presidente do Chile 

Um presidente assombrado pelo fantasma do impeachment

Se não bastassem os problemas que ele mesmo cria em volume considerável, além dos naturais que costumam afligir qualquer governante, o presidente Jair Bolsonaro ganhou mais um de bom tamanho que certamente lhe subtrairá o sono até que se resolva.

A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, deu um prazo de cinco dias para que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), explique por que não aceitou até agora nenhum dos pedidos de processo de impeachment contra Bolsonaro.

São mais de 60 pedidos que repousam numa gaveta desde quando Rodrigo Maia (DEM-RJ) era o presidente da Câmara. Outros quatros foram arquivados pelo não cumprimento de formalidades. Maia sempre disse que não era a hora de examiná-los.

Lira, eleito presidente da Câmara contra a vontade de Maia, pensa a mesma coisa. A seu juízo, e por falta de conveniência no momento, o melhor é que fiquem adormecidos. A acordarem, só quando o governo estiver caindo pela tabela, o que ainda não está.

Foi por pensar nessa mesma linha que Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, havia deixado sem resposta o pedido de instalação da CPI da Covid, um direito da minoria parlamentar reconhecido pela Constituição.

Até que, na semana passada, o ministro Luís Roberto Barroso mandou que a CPI fosse instalada. O plenário do Supremo confirmou a ordem de Barroso. O requerimento de instalação foi lido em sessão do Senado, e indicados os 11 membros da CPI.


Há, de fato, um vácuo na legislação sobre o impeachment. Não cabe ao presidente da Câmara arquivar pedidos a seu gosto, mas não há prazo para que delibere a respeito. Se arquivar, abre brecha para que um recurso seja interposto e o plenário consultado.

O vácuo na legislação poderá ser preenchido se Cármen Lúcia determinar o exame dos pedidos de impeachment acumulados. É isso o que teme Bolsonaro e que o fez reagir na live semanal das quintas-feiras nas redes sociais. Bravateou:

"Eu não quero me antecipar e falar o que acho sobre isso, mas digo uma coisa: só Deus me tira da cadeira presidencial e me tira, obviamente, tirando a minha vida. Fora isso, o que estamos vendo acontecer no Brasil não vai se concretizar. Mas não vai mesmo".

Como cristão fervoroso que fez questão de se batizar nas águas do rio Jordão, Bolsonaro está cansado de saber que Deus concedeu ao homem o livre arbítrio. Pode observar tudo à distância segura, mas não se mete. Bolsonaro cairá ou não independente dele.

A frase “só Deus me tira da cadeira presidencial” é nada. Impor a Deus a condição de só tirá-lo da presidência tirando antes sua vida é escárnio com Deus. Bolsonaro não foi esfaqueado porque Deus deixou, nem Getúlio Vargas suicidou-se porque Deus quis.

Bolsonaro sente que o cerco se estreita em torno dele, e que talvez não se reeleja no ano que vem. É difícil, mas já não é mais impossível que seu mandato acabe abreviado. A culpa, a máxima culpa será sua, somente sua, e de mais ninguém.

O som e a fúria em Brasília

Não é fácil entender a política brasileira, mas quem se detiver, esta semana, nos dois mais intrincados nós a serem desatados em Brasília talvez chegue a algumas conclusões interessantes. Os dois nós são a CPI da pandemia e a inadequação do Orçamento da União.

No primeiro, o governo é acusado de omissão no processo de combate ao vírus que já nos custou mais de 360 mil vidas e poderá custar 600 mil até julho, segundo prognósticos da Universidade de Washington. Acusações e mesmo investigações sobre a atuação de Bolsonaro na pandemia não são novas. Há processos no Tribunal Internacional de Haia e inquéritos como o das mortes em Manaus, em que Eduardo Pazuello é o principal investigado.

Bolsonaro é acusado de negacionismo e, realmente, tem negado a importância da pandemia desde o início. Era previsível que surgisse uma CPI sobre o tema no Congresso, uma vez que os parlamentares estavam de quarentena, mas não mortos.


Eleito com apoio de Bolsonaro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, bloqueou a instalação da CPI. Quando, numa entrevista, perguntei a razão do bloqueio, ele respondeu com os argumentos usais de que é preciso união, foco no combate à doença. Na verdade, usou o argumento da própria pandemia para negar direitos legais, algo que muitos governos autoritários tentam fazer no mundo.

A reação de Bolsonaro à CPI foi uma nova forma de demonstrar seu negacionismo. Ele sabe que CPI, além do número legal de assinaturas, precisa de fato determinado. Na conversa gravada com o senador Kajuru, ele pede que a investigação seja estendida aos prefeitos e governadores. É preciso investigar tudo, diz ele. E nós sabemos que essa é a senha para não investigar nada.

A proposta é quase tão absurda quanto chamar a covid-19 de gripezinha ou insinuar que a vacina transforma gente em jacaré. O Senado teria de usar seus recursos limitados para investigar todo o Brasil, sabendo que 11 Estados já fazem essa investigação e em dois, Rio de Janeiro e Santa Catarina, os governadores investigados já foram afastados do cargo.

Isso tudo sem contar o fato de que a Polícia Federal trabalha no tema em nove Estados e já recuperou em torno de R$ 7 milhões desviados, até com incursões em gabinetes de governador, como no caso de Helder Barbalho, no Pará.

Bolsonaro convidou o Senado à dispersão de esforços para se proteger. E não satisfeito em lançar mão de Estados e municípios como escudo, quer que se abram processos contra ministros do Supremo.

São duas lições importantes sobre a política no Brasil. Acusados tentam sempre ampliar as investigações para desaparecerem nela, e quase sempre alegam que todos estão errados. No caso, a ideia é pôr a limitada estrutura do Senado a investigar todo o Brasil e, simultaneamente, tentar cassar membros do Poder Judiciário.

Em outras palavras, a melhor maneira de investigar a omissão criminosa de Bolsonaro é uma ofuscante e laboriosa atividade cujo resultado pode ser nulo. É uma nova pirueta do negacionismo. Não houve pandemia, muito menos responsáveis pela mortandade. A CPI seria apenas, como em Macbeth, uma história, contada por idiotas, cheia de som e fúria, significando nada.

O nó do Orçamento também é interessante, por mostrar que se tornou um instrumento tão precário que não serve nem para um desgoverno como esse que existe hoje no Brasil. Negociações medíocres entre governo e Congresso acabaram fazendo a balança pender para alguns ministérios e, sobretudo, para o lado dos parlamentares.

Não se sabe onde vai parar parte do dinheiro da Previdência, do seguro-desemprego, do financiamento da agricultura familiar. O próprio Paulo Guedes afirma que com esse Orçamento é impossível prosseguir e teme até o impeachment de Bolsonaro. Como sempre, a conta está um pouco mais alta: R$ 33 bilhões.

O que é esclarecedor sobre o Brasil são as soluções discutidas nos bastidores. Aí, sim, o observador conhecerá um pouco da nossa cultura, seguindo o debate. Uma das propostas para livrar Bolsonaro de processo é uma viagem ao exterior. O Orçamento seria assinado por Arthur Lira, que já está queimado mesmo e serviria de escudo para o presidente.

Também muito didática é a troca de ideias entre Guedes e os parlamentares. O ministro propõe que sejam cortados os R$ 33 bilhões e se façam ajustes lá na frente. Os parlamentares propõem que sejam mantidos e se façam ajustes lá na frente. Uma ausência tão completa de planejamento é também uma espécie de negação do governo. O Orçamento é apenas para tocar os assuntos correntes.

O problema é que essa ausência de governo real assusta até o mercado. Hoje apenas por ser uma dispendiosa ausência. Logo o próprio mercado sentirá falta de um governo com projetos de renovação pós-pandemia.

Nos Estados Unidos discute-se uma nova relação entre governo e forças produtivas, trabalha-se com a consciência de um desastre climático, aprofunda-se a experiência digital. O Brasil costuma levar alguns anos para se sintonizar com o mundo. Quase sempre foi assim, mas com um governo negacionista certamente despontamos para o atraso.

Jair Bolsonaro repete Getúlio Vargas e diz que só morto sairá da Presidência da República

Como faz todas as quintas-feiras, o presidente Jair Bolsonaro usou a tradicional “live” (transmissão ao vivo nas redes sociais), para repetir a frase histórica de Getúlio Vargas ao jornalista Samuel Wainer, “Só morto sairei do Catete”, que foi manchete da “Última Hora” no dia 24 de agosto de 1954, quando o presidente cumpriu a promessa e pôs fim à vida, disparando um tiro no peito.

Na noite desta quinta-feira, Bolsonaro tentou repetir a História como farsa, ao dizer que “só Deus” o tira da cadeira presidencial. “E me tira, obviamente, tirando a minha vida. Fora isso, o que nós estamos vendo acontecer no Brasil não vai se concretizar, mas não vai mesmo. Não vai mesmo, tá ok?”, insistiu, em referência indireta ao que ele chama, nos bastidores, de “conspiração” para tirá-lo do cargo.

Como cantava Moreira da Silva em “Na subida do morro”, seu samba clássico com o parceiro Ribeiro Cunhs, “vocês não se afobem, que desta vez ele não vai morrer…”.

Como sua falta de caráter congênita e familiar, já transmitida aos filhos, Bolsonaro não tem a menor pretensão de se matar, é só conversa fiada. Nas longas noites de delírios, porém, ele insiste em vislumbrar alguma possibilidade de se manter no governo através de ato de exceção, caso tenha um Exército para chamar de seu. Mas isso não vai acontecer.

As Forças Armadas estão assistindo os oficiais fracassando no poder. Seu único destaque no governo é o ministro Tarcísio Marques, mas ele não é mais militar de verdade, apenas se formou pelo Instituto Militar de Engenheira e se reformou como capitão.

Mas Bolsonaro continua a sonhar com seu Exército, sem perceber que as Forças Armadas não querem saber de aventuras. Já tiveram seus soldos e gratificações reajustados à elite do serviço público civil, garantiram seus privilégios previdenciários e ganharam generosas verbas para se reequiparem. Então, que maravilha viver, diria Vinicius de Moraes.

Agora Bolsonaro será levado à loucura, porque terá de enfrentar Lula da Silva no primeiro turno de 2020, daqui a um ano e meio. E o tempo voa.

A pressão pelo impeachment é cada vez maior, com a CPI da Pandemia, a união das oposições e os processos que já rolam no Supremo, que estão a salvo das manobras do Centrão. É só uma questão de tempo, portanto.