terça-feira, 27 de maio de 2025

Pensamento do Dia

 


Está chegando ao fim a supremacia ocidental?

A pergunta do título ao lado se justifica porque tudo parece de ponta-cabeça. Os neoliberais estão virando nacionalistas e protecionistas. Os socialistas/comunistas se mostram liberais e defensores do livre mercado, pelo menos na retórica. E o ódio aos imigrantes se espalha.

A resposta de um respeitado sociólogo brasileiro, José Luís Fiori, professor emérito da UFRJ, é objetiva: vivemos um momento de “desordem global”, de caos e incerteza sobre o futuro, porque uma era acabou e será preciso construir uma nova ordem.

Fiori, que ministra um curso de extensão sobre A Geopolítica do Século XXI na FESPSP, observa que os principais chefes de Estado do mundo, antes e depois da posse de Donald Trump, têm sido claros sobre o fim dessa ordem mundial. Cita Josep Borrell, ex-vice-presidente da Comissão Europeia, que afirmou com todas as letras: “A supremacia ocidental terminou”.

Não se trata de inocentar Donald Trump de suas trapalhadas e da hiperatividade ultradireitista e até fascista. Mas não foi ele quem provocou essa mudança. A estúpida guerra tarifária e outras iniciativas dele apenas aumentaram o sentimento de desordem, explica Fiori.

O que ocorre no mundo, portanto, é uma disputa por supremacia e poder na nova ordem mundial em formação. Para facilitar o raciocínio, José Luís Fiori elenca alguns acontecimentos emblemáticos do pós-2020, não necessariamente em ordem cronológica, responsáveis pela implosão da ordem global neoliberal constituída a partir do fim dos anos 1970 e dos resquícios daquela estabelecida no pós-Guerra com instituições internacionais, como a ONU.

O primeiro acontecimento emblemático se deu na pandemia da covid-19, por conta de suas consequências, não apenas pelas mortes de 7 milhões de pessoas, mas também por razões geopolíticas. Seu efeito foi altamente corrosivo para o discurso da globalização. Toda a retórica neoliberal dos desafios comuns e da solidariedade global foi água abaixo com o egocentrismo revelado pelas nações mais ricas quando bilhões de pessoas se refugiavam em casa, assombradas com o risco de morte. Para os países pobres, Brasil incluído, faltaram UTIs, respiradores e até simples máscaras.

O segundo acontecimento foi a retirada humilhante das tropas dos EUA do Afeganistão, concluída em 2021, depois de 20 anos de bombardeios massivos determinados por vários presidentes, inclusive Barak Obama (foi o que mais bombardeou). A nação dominante saiu derrotada por um povo tido como desqualificado pelo poderio americano.

O terceiro foi e continua sendo o massacre dos palestinos em Gaza, promovido por Israel, com transmissão ao vivo, na interminável represália ao covarde ataque terrorista do Hamas. Quem acreditava haver algum instrumento global para parar o morticínio descobriu que isso não existe. As instituições multilaterais, inclusive a ONU, foram desmoralizadas. E a explosão de crueldade cumpriu e cumpre um papel importante na erosão definitiva da moralidade do Ocidente.

O quarto foi a guerra na Ucrânia. O fato de os russos entrarem na Ucrânia sem “dar bola” ao poderio militar do Ocidente indica que a Rússia já ganhou essa guerra. A vitória foi militar e econômica. As 30 mil sanções econômicas aplicadas contra o país agressor não aleijaram a Rússia, que continua a crescer, mas atingiram a Europa, principalmente pela redução do fornecimento de petróleo e gás.

A Rússia resistiu às sanções americanas e europeias, redesenhou seu modelo de produção nacional e sua estratégia econômica de inserção internacional e voltou a crescer. Enquanto isso, as economias europeias entraram em processo de desaceleração e estagnação. Agora, para fazer a paz, os russos não querem apenas ficar com a Crimeia e outros territórios conquistados: querem discutir a nova ordem global. E o afastamento econômico da Rússia com relação à União Europeia e aos grupos do G7 representa “um passo irreversível da economia russa na direção do continente asiático, firmando o bloco eurasiano como epicentro econômico do sistema capitalista mundial”.

Steven Levitsky, laureado autor do livro “Como as democracias morrem”, disse ao jornalista Marcos de Moura e Souza, do Valor, que lhe “tira o sono” o fato de Trump estar ajudando a destruir a ordem internacional estabelecida após a Segunda Guerra Mundial. Para o bem ou para o mal, observou Levitsky, os EUA eram os líderes do Ocidente liberal democrático e os principais líderes militares e econômicos do conjunto de países do mundo que chamamos de democracias liberais.

Para onde, então, está caminhando a nova ordem mundial? Analistas costumam afirmar que o sistema está transitando de uma ordem unipolar e globalizada para a multipolar e desglobalizada. Fiori acha que essa “transição” não está clara. De um lado, vê as grandes potências ocidentais que não se dispõem a renunciar à supremacia mundial que exerceram nos últimos 300 anos. De outro, as novas potências regionais que pedem passagem. Nenhum desses países ou conjuntos de países tem hoje capacidade de impor sua vontade sobre o resto do mundo.

O novo clube das grandes potências, segundo Fiori, certamente incluirá, pelo menos, EUA, China, Rússia, Índia e União Europeia (modificada, militarizada e liderada pela Alemanha). E não seria impossível - isso é assustador - imaginar um pacto entre EUA e China, com o surgimento de um “superimperialismo”. E com um detalhe: a nova corrida armamentista dessas potências, todas nucleares, já se dá não apenas na terra, mas no espaço sideral, observa o professor Daniel Barreiros, da UFRJ em aula na FESPSP.

De qualquer forma, até que a nova ordem se estabeleça, prevê Fiori, o mundo deve atravessar um período de flutuação, turbulência, instabilidade e imprevisibilidade até a segunda metade do século XXI. Boa sorte, gerações Alpha e Beta.
Pedro Cafardo

É a 'boa' vida...

Enquanto nos desumanizamos, assistimos a vídeos em que um gato mia “mamãe”, um cachorro toca música sobre as teclas de um piano e uiva ao mesmo tempo, bichanos imitam o dono durante exercícios de ginástica ou passos de dança, jogam longe o celular do humano para ganhar atenção, fazem charme e piscam para os espectadores, a um comando.

E há, ainda, a paixão sem limites pela IA. Quem se diz moderno não a dispensa. 

Brasil é uma ''mina de ouro' para casas de apostas

Entre as décadas de 1930 e 1940, o Brasil era como um paraíso dos cassinos. Mais de 70 casas funcionavam no país, e os jogos de azar faziam parte da cultura nacional. No dia 30 de abril de 1946, entretanto, essa realidade mudou abruptamente. Pelo menos de forma legal. Sob o argumento de que esse mercado feria a “tradição moral, jurídica e religiosa” do brasileiro, o então presidente Eurico Gaspar Dutra assinou um decreto proibindo a prática.

Quase 80 anos depois, o cenário é outro. Mesmo diante de um Congresso considerado conservador, o Brasil reabriu as portas para o mundo das apostas, legalizadas em 2018, com a Lei 13.756. Desde então, o país vive um novo “boom” desse mercado, agora de apostas online.

O setor deve ser regulamentado e fiscalizado a partir de janeiro de 2025. O Ministério da Fazenda já tem 182 pedidos de empresas interessadas em obter licença para operar no país, de acordo com o Sistema de Gestão de Apostas. Somente entre setembro e o primeiro dia de outubro, foram 70 novos pedidos.

O interesse é de empresas nacionais e multinacionais da área, como MGM Grand e Caesars Palace, que atuam no mercado de cassinos físicos em Las Vegas, nos Estados Unidos.

Na outra ponta, as apostas online estão fincando raízes na rotina da população. Uma pesquisa do Instituto DataSenado, publicada nesta terça-feira (01/10), mostra que 13% dos brasileiros com 16 anos ou mais, cerca de 22 milhões de pessoas, declararam ter participado de “bets” no último mês.

Outro levantamento da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) já havia mostrado que 63% de quem aposta no país compromete a renda para jogar. Já um levantamento do Banco Central (BC) revelou que inscritos no Bolsa Família teriam direcionado cerca de R$ 3 milhões para as bets apenas via Pix em agosto.

Esse último estudo vem sofrendo contestação, porém todos esses dados são termômetro da nova onda que já posiciona o Brasil, de acordo com a empresa especializada em análise de dados Comscore, como o terceiro mercado mundial em consumo de casas de apostas, atrás apenas dos Estados Unidos e do Reino Unido.


Pesquisadores e integrantes do setor creditam a atratividade do mercado de apostas brasileiro a uma série de fatores, entre eles o apelo a uma paixão nacional, o futebol; o atraso em regulamentar a área; a possibilidade turística para cassinos físicos; o tamanho da população economicamente ativa; e a desigualdade social existente no país.

“O Brasil não é só um mercado interessante, ele é considerado uma das joias da coroa do mercado de aposta mundial, principalmente se levarmos em consideração que o país está sem jogo legalizado há quase 80 anos”, defende Magno José, presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal (IJL).

Nesta terça-feira (01/10), o Ministério da Fazenda publicou uma lista com todas as empresas de bets e apostas aptas a operar no Brasil até dezembro. A lista inclui 89 empresas com respectivamente 193 bets (marcas) que vão continuar operando no país. O governo federal também solicitou informações aos estados, que registraram seis empresas com respectivamente seis bets.

Todos os outros sites que não foram incluídos na lista não poderão mais divulgar ofertas e serão proibidos no país. Eles permanecerão no ar por dez dias, para facilitar o pedido de devolução do dinheiro de apostadores. A partir de 11 de outubro, eles começarão a ser derrubados, com auxílio da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

Aqueles que não pediram autorização de licença ao ministério passarão a ser classificados como ilegais. Quem solicitou atuar no Brasil, mas não estava funcionando ainda, deverá aguardar até 2025. Até lá, a pasta analisará todos os pedidos de licenciamento.

"A medida proporciona mais segurança para a sociedade e para as empresas que querem operar adequadamente no Brasil. Com isso, protegemos a saúde mental e financeira dos jogadores", ressaltou Regis Dudena, secretário de Prêmios e Apostas do ministério, em nota.

A lei de 2018 previa uma regulamentação para o setor de apostas entre dois a no máximo quatro anos, mas apenas em fevereiro de 2023 o país começou a estabelecer as regras de funcionamento das bets esportivas e jogos similares.

Para tanto foi criada uma agenda regulatória, que incluiu a publicação de 11 portarias até setembro deste ano com normas para licenciamento, marketing, fiscalização, entre outras.

O governo federal havia estabelecido que a partir de janeiro iria banir as empresas que não tivessem a licença de operação concedida, mas pesquisas apontando o dano financeiro e de saúde na população, bem como investigações sobre lavagem de dinheiro envolvendo o mundo das bets e influenciadores digitais, anteciparam a medida.

Representantes do setor, Magno José, defendem que a ausência de regulamentação foi o que catapultou o Brasil no mercado internacional de jogos de azar. Ele estima que haja mais de 2 mil sites em funcionamento. Para José, os recursos que poderiam ter sido investidos na compra de outorgas e gerar tributos ao Estado acabaram direcionados para publicidade e marketing, o que tornou o mercado selvagem e nocivo, além de permeado por sites ilegais.

De acordo com o professor do Departamento de Sociologia e Metodologia e Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marcelo Pereira de Mello, a ausência de regras no mínimo facilitou uma corrida para abrir empresas da área. “Uma regulamentação frouxa e a falta de experiência da gestão pública serviram como estímulo para a criação de muitas empresas de fundo de quintal”, afirma.

O Brasil vive historicamente uma relação de amor e ódio com os jogos de azar. Tanto que a proibição de Dutra, em 1946, não foi a única a ocorrer no país. Por outro lado, a inexistência dos cassinos online nunca limitou totalmente os jogos de azar, que permaneceram ocorrendo por vias lícitas ou ilícitas, seja na loteria federal ou com o jogo do bicho.

De acordo com Mello, do ponto de vista sociocultural não há nada que faça o brasileiro ser mais propenso a jogar em comparação a outros mercados mundiais. “Aqui se joga como em qualquer outro país. Os jogos de aposta são uma tradição das sociedades humanas, de maneira geral”, diz.

Autor do livro Criminalização dos Jogos de Azar - A História Social dos Jogos de Azar no Rio de Janeiro, Mello ressalta inclusive que o Brasil sempre viu os jogos de azar pela perspectiva conservadora. Contudo, ele lembra também que esse tipo de negócio sempre esteve vinculado a políticos.

“Pode parecer um paradoxo, mas isso é explicado por outra característica da política brasileira, que é o fisiologismo. Houve uma intensa atuação de lobbies relacionados a apostas, com promessas de favorecimento a diversos grupos dentro do Congresso Nacional”, acrescenta.

Outro fator apontado como importante nessa equação é a paixão do brasileiro por futebol, já que as apostas em eventos esportivos representam parte significativa desse mercado. Empresas do setor começaram a realizar propaganda em diversos eventos desde 2018 e patrocinam pelo menos 30 clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro, incluindo Flamengo e Corinthians.

“É um mercado novo, que explora uma paixão nacional. As pessoas podem pensar que aquilo não é um jogo de azar, mas de conhecimento técnico sobre o esporte, o time, os jogadores”, afirma Mello. De acordo com José, 80% dos apostadores brasileiros são considerados recreativos, ou seja, que apostam em pequenas quantias. “É aquela coisa de mandar no grupo de amigos que apostei no time que ganhou”, diz.

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio de Janeiro, lembra, contudo, que faltam dados comparativos com outros países para cravar se a paixão do brasileiro por futebol move mais apostas do que em outros países onde acontece o mesmo fenômeno.

“Independentemente disso, é uma novidade, e tudo o que é novo atrai atenção. Além disso, o mundo das bets está entrando com muita publicidade agressiva”, diz Dias.

Com a regulamentação do mercado, as bets vão precisar ter sede no Brasil e licenciamento para seguir patrocinando os times de futebol e outros eventos esportivos. Em outros países, como no Reino Unido, o patrocínio das casas de apostas foi proibido de ser estampado nas camisas dos clubes a partir de 2026.

“A gente vê grandes jogadores de futebol, da seleção, vinculando suas imagens às apostas esportivas. Além disso, a gente tem anúncio em tudo quanto é canto, num ambiente sem categorização de idade”, afirma Rodrigo Machado, psiquiatra e coordenador do Grupo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP).

Em 1920, o então presidente Epitácio Pessoa chegou a liberar os cassinos, mas só em balneários, para fomentar o turismo e custear o saneamento básico no interior. Mas tanto os estados quanto o Governo Federal fecharam vários dos hotéis-cassinos, que só voltaram a ser estimulados a partir de 1930, durante o governo de Getúlio Vargas.

Agora, com o mercado online efervescente, há a expectativa de que o país também volte a aceitar os espaços físicos de apostas. E ter um litoral vasto é considerado um ativo interessante para a eventual instalação de cassinos físicos.

O Congresso discute um projeto de lei para regulamentar o jogo do bicho, a corrida de cavalo e os cassinos. O texto do PL 2.234, de 2022, é uma versão do PL 442, que tramitava desde 1991 e foi aprovado na Câmara dos Deputados em 2022. O documento está em tramitação no Senado, com última movimentação no início de agosto deste ano.

Representantes de empresas com atuação em Las Vegas, como o presidente da Caesars Sportsbook no Brasil, André Feldman, têm realizado encontros com senadores e integrantes da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda.

Segundo a ferramenta Agenda Transparente, da Agência Fiquem Sabendo, Feldman realizou pelo menos três encontros com representantes do Executivo e Legislativo desde 2023. A última delas no dia 4 de setembro, com o senador Rogério Carvalho (PT/SE) e integrantes do MF. Já Alex Pariente, vice-presidente sênior do Hard Rock International para hoteis e cassinos, encontrou-se em maio com representantes do MF.

“Estamos num país que tem muitas belezas naturais, então, se forem aprovados os cassinos presenciais, é um mercado fantástico para instalar resorts e cassinos e fomentar o jogo de azar presencialmente”, lamenta Machado.
Desigualdade social como pano de fundo

A pesquisa do DataSenado mostra que o perfil principal de apostadores no Brasil são pessoas do sexo masculino, entre 16 e 39 anos, que ganham até dois salários-mínimos. Entre as pessoas que apostaram, cerca de 58% estão com dívidas em atraso há mais de 90 dias.

Os dados corroboram as pesquisas já divulgadas pela SBCV e o Banco Central sobre o perfil de quem está se tornando consumidor nesse mercado. Para os pesquisadores entrevistados pela DW, são estatísticas que revelam o papel da desigualdade social na proliferação das bets.

“A camada social mais pobre é mais vulnerável a esse tipo de atividade, pois são pessoas que muitas vezes estão endividadas ou querendo fazer uma grana extra, que estão com a corda no pescoço”, afirma Dias.

Mello ressalta também as desigualdades educacionais como fato. “No Brasil, os mais pobres são também os que têm menos escolaridade formal. Essas empresas prometem enriquecimento, mudança de padrão de vida a uma população desesperançada. Então, a expectativa de ascensão social se dá por esse meio”, diz.

Máquinas, máquinas!

Hoje precisei assistir na internet à entrevista que dei em 2018 em minha língua materna, o moribundo yiddish. Fiquei surpreso porque o computador me informou (talvez fosse o site, nunca sei quem está falando comigo, o computador, o Windows, a Microsoft, o Google, o site etc.) que ele precisava verificar se eu era mesmo humano (na minha ignorância, para quê?). Pensei comigo mesmo, olha só quem está falando! Passado algum tempo, o computador, depois de realizada a verificação, creio eu, voltou, desta vez, para indagar, a mim, se eu era humano. Não achava que estaria vivo para ver uma máquina mandar eu provar para ela que eu era gente. Obediente, respondi que sim. Até pensei em perguntar se ela era uma máquina, mas deixei por isso mesmo. Enfim, funcionou… Mesmo assim, me senti humilhado, intimidado. Toda vez que consigo falar com alguém, isto é, com um ser humano (até prova em contrário), pouco me adianta também, porque geralmente o autômato me informa que não pode fazer nada por mim, o sistema é que dá as cartas.

Em uma ocasião, Lucia Santaella me disse que os países desenvolvidos haviam passado da comunicação oral para a escrita e da escrita para a comunicação de massas; enquanto nós, os brasileiros, passamos diretamente da comunicação oral para a comunicação de massas (pelo menos foi assim que eu entendi o que a Lucia falou, nós aqui contando causos, de cócoras, pitando um cigarrinho de palha, com celular em punho). Um amigo cibernético me contou que estava redigindo uma dissertação com o título Analfabetismo virtual – a popularidade do WhatsApp áudio em relação ao texto deve-se aos inúmeros erros ortográficos, gramaticais e de sintaxe que dariam muito trabalho para o usuário corrigir, mesmo com o auxílio de inteligência artificial (e a empresa, atenta, já introduziu a transcrição automática de áudios para textos).

Achei tudo isso muito interessante – lembrei que as inscrições em sumério, expostas no Museu Arqueológico de Istambul, foram gravadas há quatro mil anos e que a educação pública, instituída no século XVIII, na Prússia, democratizou a escrita e popularizou a literatura, até então reservadas às elites e ao clero. Lembrei também que na Europa e nos Estados Unidos as pessoas carregam livros para baixo e para cima, leem no metrô etc. A tiragem da revista semanal The Saturday Evening Post nos Estados Unidos nos anos 1920 era maior que a da revista Veja no Brasil de hoje. O Post publicava Agatha Christie, Dorothy Parker, Edgar Allan Poe, Francis Scott Fitzgerald, William Faulkner, entre outros. E, já que estamos falando de máquinas, Dorothy Parker declarou: “Sei tão pouco sobre máquinas de escrever que certa vez comprei uma nova porque não conseguia trocar a fita da que eu tinha.”


Durante a pandemia do coronavírus, costumaz viajante, impossibilitado de sair de casa, escrevi dois livros de viagens, Rodando o mundo em palavras e Partir c’est garder son équilibre. Neste segundo, escrevi um capítulo, “Orbit City”, em que falo da modernidade. Na pandemia, com o perdão da palavra, fomos todos jogados direta e literalmente para o futuro com um pé na bunda.

Eu nunca tive TV, nem celular, para surpresa de todos os que me cercam (e algumas vezes irritação). Meus três filhos pequenos viviam mencionando iPhone, iPad, Android, celular, smartphone, tablet etc., e eu nunca sabia o que eles estavam querendo dizer. Um dia, numa viagem de trem que iria durar uma hora, eu disse para eles, “agora sim vocês vão ter uma hora inteirinha para me explicar a diferença entre cada uma dessas mídias” (nem sei se é assim que devo me referir a essas coisas). Pois bem, todos toparam e, assim que um deles começou a definir as características do iPhone, os outros dois disseram, “não é nada disso”. Então, eu tive que interromper a conversa e dizer para eles estudarem o assunto e se reunirem antes sozinhos para acertar as arestas, entrar em consenso e, num segundo momento, se reunirem comigo para tentar me explicar a diferença entre essas mídias. Não preciso dizer que a tal da reunião comigo, até a presente data, nunca aconteceu. 

Recebi um recado da Microsoft dizendo que o Office (do meu filho professor da rede pública estadual), que eu estava usando, iria ser suspenso (porque meu filho havia trocado de emprego). Meus amigos cibernéticos me aconselharam a usar o LibreOffice. Comecei a usá-lo, mas todos os livros que havia escrito em Word do Office desconfiguravam levemente (e eu não conseguia saber exatamente onde é que desconfiguravam). Então resolvi pôr a mão no bolso e comprar um Office da Microsoft. Tinha duas opções pelo mesmo preço, uma com validade por um ano e outra com validade para a vida, mas sem atualizações. Ganhei na loteria, comprei o eterno, porque detesto atualizações. Assim que consigo me acostumar com uma nova versão, para o “meu conforto”, sai outra de ponta e eu me perco na primeira esquina.

Vejo adultos se debatendo com o uso do celular e eles me dizem que não sabem usá-lo muito bem porque acabaram de ganhá-lo de presente do filho adulto jovem (que comprou para si um de última geração). Assim que os pais estiverem craques no uso deste “novo” celular, o filho provavelmente vai comprar o último lançamento e doar o velho celular para os pais, que vão ter que começar tudo de novo, aprender a mexer no “novo” celular… e assim caminha a humanidade.

Não domino a linguagem cibernética, embora tenha sido precursor no uso dos PC, em 1985, e tenha trabalhado com programas de estatística avançada e até de sofisticado geoprocessamento. Quando preciso, meus filhos e amigos cibernéticos, que se dispõem a me ajudar, acabam perdendo a paciência, levantam a voz e ralham comigo quando digo que não estou entendendo o que eles estão falando, “entende sim, você não está querendo é ouvir!” e me deixam na mão. Para mim, é como se estivessem falando grego (entendo grego melhor do que cibernética). O que significa “internet morta”, bots e prompts?

Quando procuro ajuda pela internet, sigo as instruções, mas nunca acho na tela o termo utilizado nas instruções. Chamo a minha filha e ela me diz, “tá aí, pai!” pois ela conhece um termo que é “sinônimo” do que deveria estar lá e não está. Depois ela pede para eu clicar o mouse em cima daquele símbolo, no meio de dúzias de símbolos, “aquele ali, pai!”, e fica nervosa porque ela conhece o símbolo e sabe onde ele está, mas não sabe explicar, e eu não conheço o símbolo, nem sei onde ele está, e fico perdido entre as dúzias de símbolos dispostos na tela.

A distância entre meu filho mais velho e o mais novo é de 28 anos. Isto quer dizer que cuidei de filhos menores por 45 anos (28+17), de 1976 a 2021, dos meus 25 aos 70 anos de idade, ou seja, a maior parte da minha vida. Todos eles foram criados assistindo The Terminator com Arnold Schwarzenegger, originalmente lançado em 1984. Preparei todos os quatro para a guerra contra as máquinas. Mas, como todos vocês já sabem, meu tiro minguou, porque as máquinas usaram outra estratégia para nos dominar.

Diferentemente de humanoides e máquinas-mecânicas-gigantes, estamos sendo dominados por mecanismos que mais se assemelham às técnicas descritas em 1984, de George Orwell. Máquinas que, de forma sub-reptícia, nos encantam e nos fisgam, facilitam o nosso trabalho e nos tornam mais produtivos (e apáticos). Ao que tudo indica, os usuários tendem a emburrecer conforme aumenta o uso da inteligência artificial. Em 1970, quando ingressei na faculdade, achávamos que o progresso e o aumento da produtividade iriam nos livrar de horas de trabalho alienante e aumentar as nossas horas dedicadas à cultura e ao lazer. Mas, ao que parece, estamos trabalhando mais e de forma cada vez mais intelectualmente insana e estressante, ao mesmo tempo em que as condições de trabalho e os direitos trabalhistas se precarizam. O brasileiro Thiago Zygband, atualmente sediado em Shang Hai, especialista em marketing digital, discorre sobre a podridão cerebral a que está sujeito.

A comunicação virtual é mediada por coisas, amplifica e prescinde da comunicação presencial. Até o século XIX, a comunicação virtual restringia-se ao desenho e à escrita. A partir do século XIX, a comunicação virtual ganhou ímpeto com o surgimento do telégrafo (1792), fotografia (1826), telefone (1876), reprodução sonora (1877), cinema (1895), rádio (1896), televisão (1926), computador (1946), internet (1969) e celular (1973). E foi assim que a comunicação virtual, até então restrita ao desenho e à escrita, ganhou a dimensão de comunicação de massas.

Vilém Flusser, em 1988, trinta e sete anos atrás, já nos alertava sobre os limites do pensamento e da comunicação desenvolvidos a partir das civilizações grega e judaica. De acordo com Flusser, poderíamos falar em um pensamento pré-histórico, anterior à escrita; um pensamento histórico unidimensional, que privilegia o alfabeto e a escrita, em detrimento das imagens; e um novo tipo de pensamento pós-histórico, estrutural, baseado em imagens sintéticas.

Antes do dilúvio, arranjei uma pretendente insistente que deixou o seguinte recado na minha secretária eletrônica, “máquina, máquina, só você que me entende, diga ao Samuel que ele está maltratando de mim”.

A destruição da democracia

Desde a crise de 2008, não paramos de falar sobre a década de 1930. É natural. A crise de 1929 levou à ascensão ao poder ou à consolidação do fascismo no Ocidente (e culminou na Segunda Guerra Mundial); A crise de 2008 levou à ascensão ao poder ou à consolidação do populismo nacional (e não sabemos como isso terminará). A história nunca se repete exatamente, mas sempre se repete com máscaras diferentes, porque nela, como na matéria, nada se cria nem se destrói (apenas se transforma), e porque as circunstâncias são sempre diferentes, mas os erros humanos são idênticos ou quase idênticos; Não me canso de lembrar Bernard Shaw: a única coisa que aprendemos com a experiência é que não aprendemos nada com a experiência. O nacional-populismo não é fascismo: é uma máscara ou uma metamorfose do fascismo; Como tal, contém algumas características do fascismo (a mais notável: o nacionalismo) e, em todo caso, é mais perigoso do que ele, porque ainda não encontramos seu antídoto: a prova é o retorno de Donald Trump ao poder. A princípio, comparar Trump a Hitler pode ter parecido exagerado ou imprudente; Não é mais o caso, especialmente se lembrarmos que em 1933, quando Hitler chegou ao poder, ninguém imaginava que ele acabaria fazendo o que fez. Pelo menos desde Cícero, sabemos que a história deve ser magistra vitae ; É por isso que é importante ter isso sempre em mente: tentar provar que Bernard Shaw está errado. Resumindo: o imprudente agora é não pensar em Hitler quando se pensa em Trump.


Em A Arte de Ser Humano, Rob Riemen traçou um paralelo entre a democracia que Hitler destruiu — a República de Weimar (1918–1933) — e a democracia que Trump está tentando destruir; O curioso é que o desenho é de antes de Trump voltar ao poder (agora o paralelismo é mais acentuado). Em Weimar, lembra Riemen, a democracia foi minada pela mentira dos Dolchstoss , a lenda da facada nas costas que, na Primeira Guerra Mundial —segundo Hitler e seus seguidores—, foi infligida ao seu país por judeus e revolucionários alemães, causando sua derrota; Nos Estados Unidos, a mentira que mina a democracia é a Grande Mentira , a grande mentira de que Trump venceu a eleição de 2020 , mas os democratas a roubaram. Em Weimar, movimentos extremistas minaram a democracia; Nos Estados Unidos, o Partido Republicano se tornou um movimento extremista. Assim como nos Estados Unidos, em Weimar a democracia foi corroída por teorias da conspiração que enfraqueceram a confiança nas instituições democráticas, começando pelo judiciário. Assim como nos Estados Unidos, a ideia de uma revolução conservadora “cujo objetivo principal era a restauração de uma ordem social uniforme na qual uma classe privilegiada dominaria” ganhou força em Weimar, especialmente entre os intelectuais. Assim como nos Estados Unidos, um movimento político baseado em mentiras, medo, ódio, xenofobia, materialismo, racismo e no culto a um demagogo que se autointitulava messias floresceu em Weimar… 


Até aqui, as semelhanças; as diferenças não são menos perceptíveis. A principal, na minha opinião, é que Weimar era uma democracia recente, com tradição e instituições frágeis, que não resistiram ao avanço de uma crise brutal; A democracia americana, por outro lado, é a mais antiga do mundo, dotada de instituições sólidas, a começar pelo judiciário. (“Entre Trump e a ditadura, só restam os juízes”, escreveu Lluís Bassets) . É por isso que acredito que a democracia americana perdurará. Ou assim espero.

De tudo isso, ouso tirar uma conclusão: que, ao contrário do que dizem os cínicos, além do medo, do ódio, da xenofobia, do materialismo, do racismo e do culto aos demagogos, a mentira, venha de onde vier, é letal para uma democracia, assim como o extremismo e a falta de lealdade às instituições, e que, cada vez que toleramos sem escândalo que um político as subestime, rotulando como legítimas as resoluções judiciais que as beneficiam e como enganosas as que as prejudicam — como fazem nossos políticos todos os dias —, estamos contribuindo para a destruição da democracia. Más vibrações.