quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Brasil expedicionário

 


Economia carregará o peso da pandemia por anos, diz FMI

O futuro não será brilhante para a economia global depois que a devastadora covid-19 deixar de ser uma ameaça relevante. Apesar da recuperação a curto prazo, esperada depois de estímulos fiscais e monetários formidáveis, a pandemia deixará marcas que demorarão a cicatrizar - o aumento da pobreza e da desigualdade, dívidas muito elevadas e destruição de capital humano são as mais evidentes. As projeções para o quinquênio, até 2025, feitas antes e depois do vírus, mostram um “severo revés no ritmo projetado de melhoria do nível de vida médio em todos os grupos de países”, aponta o Panorama Econômico Mundial divulgado pelo Fundo Monetário Internacional.

Mesmo o panorama do curto prazo é recheado de dúvidas. Para o FMI, o quarto trimestre mostra desaceleração do impulso ao crescimento, forte o suficiente no terceiro trimestre para que a instituição revisse a expansão global em 2020 para 4,4%, uma melhoria de 0,8 ponto percentual. No cenário de base, a projeção para 2021 é de 5,2%. Até agora, a produção industrial em vários países não voltou aos níveis pré-pandemia. A reação dos serviços, ao contrário de outras crises, é muito pior. “A escala da ruptura indica que, sem vacina e terapias efetivas, esse setor terá um caminho particularmente difícil para voltar a qualquer aparência de normalidade”, registra o Panorama.

O terceiro trimestre mostrou uma recuperação forte da atividade global como resposta a estímulos nunca vistos. Os países avançados gastaram 9% do PIB em medidas fiscais e 11% do PIB em apoio à liquidez, em média. O esforço dos emergentes foi, em geral, menor, com 3,5% e 2%, respectivamente. As despesas do Brasil foram superiores às deste grupo, perto de 9% do PIB%.

O cenário principal do Fundo contempla a descoberta de uma vacina ao longo de 2021, quando ainda estarão vigorando medidas de distanciamento social e lockdowns, e progressiva imunização que poderá garantir baixos níveis de contágio ao fim de 2022. Nesse ambiente, a recuperação só será vigorosa em relação à recessão de 2020. O crescimento previsto para EUA em 2021 (3,1%), Europa (5,2%) e América Latina (3,6%) será insuficiente para voltar ao nível anterior - -4,3%, -8,3% -8,1% respectivamente. O PIB brasileiro recuará 5,8% este ano e aumentará 2,8% no ano que vem, uma das reações mais fracas entre países relevantes.

O estado de saúde da economia global poderá ser melhor se o apoio fiscal for elevado, houver melhoria significativa da produtividade, ou se uma vacina se tornar efetiva antes do previsto. Os riscos de piora são mais numerosos, como a ressurgência do vírus, uma retirada abrupta dos estímulos, um aperto das condições financeiras motivada, por exemplo, por crises de dívida, aperto de liquidez decorrente de falências em série, tensões geopolíticas, incertezas sobre políticas comerciais e mesmo revoltas sociais.

Mas os países carregarão por muito tempo o peso da destruição provocada pelo coronavírus. Os países avançados, estima o FMI, terão seu potencial de expansão 3,5% menor do que o previsto antes da pandemia, com recuo ainda maior para os emergentes (-5,5%). Até 2025, o crescimento dos países desenvolvidos se estabilizará em torno de 1,7%, e o de emergentes, em 4,7% (5,6% na média 2000-2019).

As perdas para o Brasil são pesadas. Seu PIB per capita declinou 6,4% e só 2,2% dele será recuperado em 2021. O desemprego deve aumentar de 13,4% para 14,1%. O hiato do produto, de altos 5%, na média 2020-2021, cairá apenas à metade na média de 2022-2023.

Para países emergentes muito endividados, como o Brasil, que não é citado, o FMI deixou de lado seu receituário ortodoxo. O Fundo recomenda que gastos públicos ajudem a elevar o potencial de crescimento e a proteção aos vulneráveis. “A dívida adicional para financiá-los provavelmente se pagará por si mesma ao longo do caminho” com a recuperação da economia e aumento de impostos. E, em ressalva importante, indica que “mesmo que regras fiscais restrinjam essas ações, a suspensão temporária delas pode ser assegurada” se combinada ao compromisso de sua restauração a médio prazo. Há como arrumar recursos para essas finalidades, sugere o FMI, “reduzindo desperdícios com subsídios mal calibrados”. Se necessário, o aumento de impostos deve ser concentrado nas altas rendas, ganhos de capital e taxação sobre as empresas. Para fazer tudo isso, será preciso apresentar um plano crível de consolidação fiscal para quando a crise acabar.

A sociedade fora do jogo

À parte expor um ponto de vista e alguma escala de valores, o mexerico que envolve a indicação do novo ministro do Supremo rouba a cena. A reconstituição do tribunal superior pela reprogramação pessoal de seus membros é o desfecho ameaçador do efeito cumulativo de funcionar como Corte individual.

É difícil analisar a grandeza de uma indicação se não é considerado pequeno elevar-se artificialmente ao alto. Um indicado mata-borrão, escolhido para absorver interesses, e não pelo mérito, pode, sim, um dia virar ministro. Assim, a crítica não se aplica ao magistrado pelo fato de ser do Piauí, terra querida, filha do sol do Equador, mas a alguém disposto a ser peça na charada de decisões combinadas.

Como não temos unidade sobre as exigências do espírito, não há um eixo comum para ver as coisas. O que parece transparente pode ser indecente e o opaco, brilhante. Poder é devoção e o fervor de agradar, uma profundeza da vida política. A atual indicação para o Supremo parece nudez escondida na cegueira.

Ninguém sabe ao certo de onde o presidente tira a energia para formar seus ossos. Seu apetite não muda com as circunstâncias. O que temos visto são as circunstâncias se ajustarem ao seu apetite. Farejadores de ocasião se aproximam e por um tempo andam na mesma direção.


Liberado pelo costume de considerar o País um rio sem margem, o presidente vai formulando sua visão das coisas sem temor. Como um líder tradicional, nadador que imagina jamais se afogar, está à vontade em seu jogo sem sutileza, como no velho aforismo prussiano: confia em mim, sai da toca, disse o galo à minhoca.

Mas quando ninguém mascara mais sua verdadeira intenção, estamos diante de decisões alienadas da natureza das instituições e dos interesses da sociedade. A sucessão no Supremo não é glória jurídica, militar, evangélica, liberal. Seus arredores são outros, estão no território da vacina para estagnar a aflição de poderosos socialmente inseguros. A indicação não é aurora, é decomposição tardia de outrora. O ministro, denominador comum do crepúsculo de uma era.

Por isso um currículo são as boas relações que o indicado estabelece com altos poderes em suas conduta e sentenças. O de papel, placas com telefones atenciosos nos canteiros de Brasília oferecem teses customizadas. Sem etiqueta pública o relacionamento é como mescalina, ou tubaína, um alucinógeno natural que mascara a dupla notório saber e reputação ilibada, essa, sim, perigosa substância de que é feita a autoridade.

Se o governo federal não liga para o fato de que o Brasil é um desafio econômico que interessa a todos, é desnecessário imaginar que se dê conta de que é primordialmente um desafio espiritual. Se o País se afogar, a razão só virá de outro mar, como ocorre com nossas crises políticas.

Não adianta resmungar se quem não sabe plantar tem força para atrapalhar a colheita. Qualquer ministro que chegou ao Supremo por mérito deve se sentir esmagado pela realidade, cujo sofrimento maior é saber da fragilidade de uma Corte improvisadora, ajustada ao poder de cada um.

Os ajustes que estão sendo feitos, com tal desenvoltura corporal e vocabular, como não incluem até agora o autoexame de nenhum dos três Poderes, revelam que os interesses atendidos são suficientes e a sociedade está definitivamente fora do jogo.

Não há medida ou parâmetro. Todas as conveniências pessoais concordam entre si e os membros dessa monarquia em movimento usufruem o tempo da República com tal leveza que é difícil dizer quais segredos incentivam coreografia tão sincronizada à luz do dia.

Nem é verdade que todos sejam súditos da lei. Alguns usam a razão do outro e a arranjam como consequência que facilita as coisas. O que acontece entre as elites dos três Poderes é resultado das afeições entre os mandantes. O arranjo, uma disciplina. Mais uma vez os condescendentes com a ação do presidente não se culpam, pois tudo combina com o preconceito que se tem dele.

O presidente que se equilibrava entre forças antagônicas sentiu o pêndulo a seu favor. E no trapézio em que balançava sua credibilidade recebeu de mão beijada a chance de alterar a matriz de sua má institucionalidade. A renúncia antecipada do mais velho cumpriu o papel pedagógico de realçar as tendências políticas em conflito. E logo o presidente é informado de que pode vestir como luva o episódio e assim justificar a nomeação prematura do mais novo. Se é assim que funciona, assim fique. O pão nosso de cada dia assado no tempo de fervura do Supremo.

Nem sempre toda a culpa é de presidente. Quem o assombrou com a solução para aliviar sua dor de cabeça pessoal conhece bem o ritmo da investigação legal. E provavelmente a ideia de estancar a autodestruição geral transformou tapinha nas costas em mercado de favores.

Dois amigos foram imediatamente descartados e um terceiro inesperado amigo se tornou o maior amigo. Lembra verso de poeta suíço sobre coalizões políticas oportunistas. Embora tosco, encaixa-se dolorosamente bem: quando inimigos brigam, o cheiro não é o melhor. Mas se se reconciliam, ah, o fedor é bem pior!

Paulo Delgado

O esgoto salva!

Não temos uma quantidade imensa de moradores de rua com problema de covid. Talvez eles sejam mais resistentes que a gente porque convivem o tempo todo nas ruas, não têm como tomar banho todos os dias
Celso Russomanno (Republicanos), candidato à Prefeitura de São Paulo

O custo do negacionismo

Em artigo recente para o Jama, o prestigiado Journal of the American Medical Association, os igualmente prestigiados economistas David Cutler e Larry Summers apresentaram os custos do negacionismo pandêmico aqui nos Estados Unidos. Partindo de evidências apresentadas em vários artigos científicos recentes sobre a covid-19, além de cálculos do Congressional Budget Office para a queda estimada do PIB associada à pandemia na próxima década, e de estudos atuariais e demográficos, os autores concluíram que a conta pode chegar a US$ 16 trilhões até outubro de 2021. Vou repetir: o custo do negacionismo nos EUA poderá chegar a cerca de 90% do PIB supondo que a epidemia seja controlada em meados de 2021. A hipótese de que a crise de saúde pública estaria resolvida daqui a um ano é, como ressaltam os próprios autores, muito otimista. Caso isso não ocorra, o custo poderá ser maior.

Cutler e Summers levam em conta não só os dados econômicos, como os aumentos inéditos de pedidos de seguro-desemprego a cada mês, mas também o custo de tantas vidas perdidas, seja diretamente pela infecção com o SARS-CoV-2, seja indiretamente pelas mortes excedentes provenientes de outras doenças já que tantos recursos estão sendo inevitavelmente destinados a atender os atingidos pela epidemia. Nós não temos contas semelhantes feitas para o Brasil, mas precisamos urgentemente fazê-las, sobretudo para ter alguma noção do montante de recursos que teremos de destinar ao SUS, além das medidas que precisam ser adotadas para alterar a preocupante trajetória brasileira. Nossa população está envelhecendo, o que significa que a carga de doenças associadas à idade – diabetes, câncer, hipertensão, cardiopatias, entre outras – vai subir nos próximos anos. Além disso, a obesidade já é um problema urgente que não só afeta a carga de doenças associadas ao envelhecimento como fator de comorbidade, mas influencia o número de pacientes com casos graves ou severos de covid-19 e as possíveis sequelas. Não faltam estudos para mostrar que a obesidade é um fator de risco considerável.

No artigo citado, os autores utilizam evidências demonstradas em pesquisas científicas para calcular o número de pessoas que poderão apresentar graves sequelas até o fim do ano que vem como parte dos custos calculados. Contas semelhantes podem ser feitas para o Brasil. Supondo que o número de casos graves ou severos é cerca de 7 vezes maior do que o de óbitos e que cerca de 30% dos que sobrevivem aos quadros mais preocupantes de covid-19 apresentam alguma sequela séria, o Brasil poderia ter até cerca de 350 mil pessoas nessa situação até o final de 2021. São 350 mil pessoas a mais a depender muito provavelmente do SUS em um período de tempo muito curto. Esse cálculo pressupõe, como o dos autores, hipótese demasiado otimista em relação ao controle da epidemia – portanto, não é uma cifra exata, mas algo para dar uma ideia da ordem de magnitude dos problemas que iremos enfrentar apenas no próximo ano.

Caso queiramos aplicar as contas dos autores ao Brasil, é possível fazê-lo somente de forma muito parcial. Eles partem de uma vasta literatura acadêmica que calcula o “valor estatístico das vidas”, definido como o quanto que os indivíduos estariam dispostos a pagar para reduzir seu risco de vida em determinadas situações. O montante pode chegar a US$ 7 milhões de dólares para cada vida estatística, ou cerca de R$ 40 milhões a depender da taxa de câmbio que se utilize. Já contamos com mais de 150 mil óbitos, muitos dos quais prematuros. Caso o número de óbitos entre hoje e outubro do ano que vem chegue ao nível mais otimista que se pode conjecturar hoje, isto é, que nos próximos doze meses registremos a metade dos óbitos que temos até agora no Brasil, teremos 225 mil mortes, muitas delas prematuras. O custo econômico dessa catástrofe seria de R$ 9 bilhões. Caso o número de óbitos dobre até o fim do ano que vem, o custo econômico atrelado apenas às mortes prematuras seria de R$ 12 bilhões. Não estão contabilizados nessas cifras os diversos outros custos calculados pelos autores com maior precisão.

O negacionismo pandêmico tem um custo para lá de elevado. Se o governo e parte da população brasileira não conseguem se sensibilizar com a absurda perda de vidas, em boa parte evitável com a adoção dos protocolos de segurança e de mudanças no padrão de comportamento, quem sabe se sensibilizem com as perdas econômicas que haverão de perdurar por muitos anos. Não é improvável que ultrapassemos 90% do PIB do Brasil nesse quesito.

A vertigem da democracia

Existem duas formas de falar em democracia. A primeira é lembrar os poetas que deixaram páginas belíssimas sobre o governo do povo, para o povo e pelo povo.

A segunda é optar pelos realistas, que nos dão uma visão mais desencantada sobre o fenômeno. O cientista político David Stasavage pertence ao segundo grupo, e o seu mais recente livro, “The Decline and Rise of Democracy: A Global History from Antiquity to Today” (Princeton, 406 págs.), é um dos livros do ano.

Li a obra de um fôlego só, assombrado pela inteligência do homem. Tese: se você pensa que a democracia nasceu na Grécia, foi refinada em Roma, desapareceu na Idade Média, reemergiu na Itália renascentista e foi reinventada pelos “pais fundadores” dos Estados Unidos, você está enganado.

Formas de “democracia primordial” (“early democracy”) encontram-se em variadas regiões, em variadas civilizações, e sempre pelo mesmo motivo: quem governa precisa de ajuda para governar. Precisa de dinheiro —e não é possível cobrar impostos sem o consentimento daqueles que estão dispostos a contribuir. Precisa de soldados —e não é possível ter exércitos sem o consentimento daqueles que estão dispostos a lutar.

A história da democracia é a história de uma troca: se o líder quer o meu dinheiro ou a minha coragem, eu tenho uma palavra a dizer sobre os destinos da comunidade.




Isso foi válido na Atenas do século 5 a.C.. Mas também nas 13 colônias americanas do século 18 ou nos países europeus durante e depois da Primeira Guerra Mundial.

Mesmo o voto feminino se explica por um estado de necessidade: se os homens lutavam no front, era preciso que as mulheres ocupassem os postos de trabalho dos machos para salvar a economia. Com essa emancipação econômica, chegou a emancipação política.

Claro que nem todas as civilizações optaram pela via democrática. Muitas optaram pela via autocrática —e pelos motivos inversos: o poder central não precisava do consentimento dos súditos para nada. Com aparelhos burocráticos e repressivos mais avançados, era possível governar sem perder tempo com consultas ou negociações. O Big Brother observava e sabia tudo.

Essa, aliás, é a grande diferença entre a China e a Europa: a primeira, tecnologicamente mais refinada, conseguiu mapear os solos e as populações com assinalável precocidade histórica; a segunda, pelo menos até a era moderna, sempre se caracterizou por Estados fracos ou insuficientemente burocratizados, obrigando os seus líderes à negociação.

Como afirma David Stasavage com deliciosa ironia, foi o relativo atraso da Europa medieval que deu uma chance à democracia no Ocidente. Primeiro, ao permitir que ela sobrevivesse na sua forma primordial, feita de consulta e consentimento permanentes.

E, depois, ao permitir também a evolução da democracia primordial para a democracia moderna, nascida nos Estados Unidos. Qual a diferença?

Na democracia moderna, a consulta e a deliberação diretas foram substituidas pela representação política, até por motivos de extensão geográfica: votamos, elegemos os nossos representantes e são eles que decidem em nosso nome.

De certa forma, é nesse estágio que ainda nos encontramos. E se hoje sentimos que a democracia está em crise, isso se explica pelos dois elementos divergentes da democracia moderna: por um lado, a participação política é mais ampla do que na democracia primordial; por outro, essa participação é também mais episódica e pouco convincente. Alguém acredita mesmo que o seu voto é assim tão decisivo?

Sentimos que o poder está mais distante. Mas não só: sentimos também que o poder está mais poderoso —como se o líder, agora auxiliado pela mais avançada burocracia e tecnologia, já não precisasse de nós para nada. Exatamente como se fosse um autocrata.

O que isso gera é desconfiança e ressentimento —a mistura explosiva que o populismo explora. Curioso: o combustível do populismo político é real, e não ilusório, mesmo que as soluções populistas sejam ilusórias, e não reais.

Como resolver o impasse?

Concordo com David Stasavage: temperando as virtudes da democracia moderna com as virtudes da democracia antiga. Descentralizando, devolvendo poder aos cidadãos, limitando o poder de quem governa.

Se isso não acontecer, a história da democracia terá o mesmo fim que a história da autocracia. A única diferença é que demoramos mais tempo para lá chegar.

Pensamento do Dia

 


Governo faz por merecer a pecha de racista e algoz da natureza

Quando alguém o acusa de ser racista, o presidente Jair Bolsonaro responde que não é e nunca foi, e apresenta a sombra que carrega a tiracolo para onde quer que vá – Hélio Fernando Barbosa Lopes, conhecido como Hélio Negão, o deputado federal mais votado no Rio nas eleições de 2018. Hélio não fala, só faz rir.

Quando alguém o acusa de ser inimigo do meio ambiente, a reação de Bolsonaro costuma ser mais forte. Como não pode negar a progressiva destruição da natureza brasileira, joga a culpa nos seus antecessores e ataca seus críticos, principalmente Ongs e governos europeus que, segundo ele, cobiçam as riquezas da Amazônia.

A acreditar-se no que Bolsonaro diz, ao seu redor, como responsáveis pela implantação de políticas de Estado em setores tão sensíveis do governo, não deveriam estar executivos ineptos do tipo Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares, e Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente.

O mais recente feito de Camargo foi excluir o nome da ex-ministra Marina Silva da lista de personalidades negras da Fundação que dirige. O motivo: ela “não tem contribuição relevante para a população negra do Brasil. Disputar eleições não é mérito. O ambientalismo dela vem sendo questionado”.

Vem sendo questionado por quem? Ora, por ele, Camargo, e talvez por seu patrão. Marina foi empregada doméstica. Só conseguiu se alfabetizar aos 16 anos. Formou-se em História, foi vereadora, deputada estadual e duas vezes senadora, ministra do Meio Ambiente e disputou a eleição para presidente três vezes.

Ela participava de uma live, junto com o Papa Francisco e outros debatedores, quando soube ontem que Camargo tirara seu nome dos anais da Fundação responsável pela promoção da cultura afro-brasileira e o enfrentamento do racismo. E foi à base de insultos raivosos que ele o fez, atingindo outros negros: "
Marina Silva autodeclara-se negra por conveniência política. Não é um caso isolado. Jean Willys, Talíria Petrone, David Miranda (branco) e Preta Gil também são pretos por conveniência. Posar de ‘vítima’ e de ‘oprimido’ rende dividendos eleitorais e, em alguns casos, financeiros".

Bolsonaro teria alguma coisa a dizer em defesa de Camargo? Se nada disser, dê-se de barato que concorda com o que ele diz e faz. Como deve concordar com o que diz e faz Salles. Inexiste ministro mais reprovado do que ele. Mesmo dentro do governo, cobra-se a sua degola, mas Salles não sai. Seu padrinho não deixa.
Ricardo Noblat

'Nova' decência

Tenha sempre amigos bem desonestos, assim você passará por decente, apesar de pequenas desonestidades
Millôr Fernandes

Carta da Amazônia: 'destruímos o que não entendemos'

Aos senhores presidentes dos nove países da Amazônia e a todos os líderes mundiais que dividem a responsabilidade pelo saque de nossa floresta: Meu nome é Nemonte Nenquimo. Sou uma mulher waorani, mãe e líder do meu povo, e a Amazônia é minha casa. 

Escrevo esta carta porque os incêndios continuam queimando nossa floresta. Porque as empresas estão despejando petróleo em nossos rios. Porque os mineiros estão roubando ouro (como têm feito durante os últimos 500 anos), deixando para trás crateras e toxinas. Porque os invasores e extrativistas de terras estão derrubando mata virgem para que seu gado possa pastar, suas plantações possam crescer e o homem branco possa comer. 

Porque nossos anciãos estão morrendo de coronavírus e, enquanto isso, vocês planejam seus próximos movimentos para explorar nossas terras e estimular uma economia que nunca nos beneficiou. Porque, como povos indígenas, estamos lutando para proteger o que amamos: nossa forma de vida, nossos rios, os animais, nossas florestas, a vida na Terra. 


E é hora de que nos ouçam. Em cada uma das centenas de línguas diferentes da Amazônia, temos uma palavra para vocês, os estranhos. No meu idioma, o waotededo, essa palavra é “cowori”. E não tem por que ser um insulto, mas vocês a transformaram nisso. Para nós, essa palavra (e, de uma forma terrível, sua sociedade), significa: o homem branco que sabe muito pouco para o poder que exerce e o dano que causa. 

Provavelmente vocês não estejam acostumados que uma mulher indígena os chame de ignorantes, e menos ainda num cenário como este. Mas para os povos indígenas uma coisa é clara: quanto menos você sabe sobre algo, menos valor isso tem para você ― e, portanto, mais fácil será de destruir. Com “fácil”, quero dizer sem culpa, sem remorso, sem se sentir estúpido e, inclusive, com todo direito. E isso é exatamente o que vocês estão fazendo conosco como povos indígenas, com nossos territórios de floresta tropical e com o clima do nosso planeta. 

Levamos milhares de anos para conhecer a floresta da Amazônia. Entender suas formas, seus segredos, aprender a sobreviver e a prosperar com ela. Mas meu povo, o waorani, só conhece vocês há 70 anos (fomos “contatados” na década de cinquenta pelos missionários evangélicos americanos). Mas aprendemos rápido, e vocês não são tão complexos quanto a floresta. 

Quando vocês dizem que as empresas petroleiras têm maravilhosas e inovadoras tecnologias que podem extrair petróleo debaixo de nossas terras como os colibris sugam o néctar de uma flor, sabemos que estão mentindo porque vivemos rio abaixo dos derramamentos. Quando dizem que a Amazônia não está queimando, não precisamos de imagens de satélite para provar que estão errados: estamos inalando a fumaça das árvores frutíferas que nossos antepassados semearam há séculos. Quando vocês dizem que estão buscando urgentemente soluções climáticas, mas continuam construindo uma economia mundial baseada no extrativismo e na poluição, sabemos que estão mentindo porque somos os mais próximos da terra e os primeiros a escutar seu choro. 

Nunca tive a oportunidade de ir à universidade e me tornar médica, advogada, política ou cientista. Meus “pikenani” (autoridades tradicionais, anciãos sábios) são meus mestres. A floresta é minha professora. E aprendi o suficiente (e falo de mãos dadas com meus irmãos e irmãs indígenas do mundo todo) para saber que vocês perderam o rumo, que têm um problema (embora ainda não o entendam completamente) e que seu problema é uma ameaça para toda forma de vida na Terra. 

Vocês formaram sua civilização sobre a nossa, e vejam agora onde estamos: pandemia global, crise climática, extinção de espécies e, guiando isso tudo, uma pobreza espiritual generalizada. Em todos esses anos vocês nos expulsaram, expulsaram e expulsaram das nossas terras e não tiveram a coragem, a curiosidade ou o respeito suficientes para nos conhecer. Para entender como vemos, pensamos e sentimos, e o que sabemos sobre a vida nesta terra. Também não posso ensinar a vocês agora com esta carta. Mas o que posso contar tem a ver com milhares e milhares de anos de amor por esta floresta, por este lugar. 

Amor no sentido mais profundo da palavra: respeito. Esta floresta nos ensinou a caminhar com rapidez, e, como a escutamos, como aprendemos com ela e a defendemos, ela nos deu tudo: água, ar limpo, alimentos, remédios, felicidade, espiritualidade. E vocês estão tirando tudo isso de nós. Não apenas de nós, mas também de todas as pessoas do planeta e das gerações futuras. 

É madrugada na Amazônia, justo antes do amanhecer: um momento que consideramos propício para compartilhar nossos sonhos e nossos pensamentos mais profundos. De modo que aproveito para dizer a todos vocês: “A Terra não espera que a salvem, espera que a respeitem. E nós, como povos indígenas, esperamos o mesmo.”
Nemonte Nenquimo, cofundadora da organização sem fins lucrativos dirigida pelos indígenas Ceibo Alliance, primeira presidente da organização waorani da província de Pastaza (Equador), eleita pela revista Time uma das 100 pessoas mais influentes de 2020

Mortos pela Covid na conta de Bolsonaro

O dia em que Jair Bolsonaro for levado a responder por seus atos —não se trata de se, mas quando—, o processo relativo ao seu anticombate à Covid-19 terá fartos elementos no livro "Um Paciente Chamado Brasil", do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Nele, entre relatos comprováveis por documentos e testemunhas, fica claro que, em fevereiro, Bolsonaro já sabia o que era preciso fazer para amenizar a disseminação do vírus e não quis fazer —ou fez o contrário.

No livro, com a reprodução até dos diálogos, Mandetta detalha a quem, quando, como e onde foram dados os alertas. Não foi só Bolsonaro quem ignorou a prevenção e sabotou medidas diante dos primeiros contágios e mortes. Por cumplicidade ideológica, ambições políticas ou vaidade pessoal, os paisanos e generais que o cercam deram-lhe o apoio que queria. Eles também terão seus lugares no banco dos réus.



No dia 27 de março, em reunião oficial, Mandetta comunicou ao general Braga Netto, chefe da Casa Civil, que, se a população fosse instruída a adotar medidas de distanciamento social e padrões rígidos de higiene e proteção, o Brasil teria de 60 mil a 80 mil mortos. Se não, eles chegariam a 180 mil. Bolsonaro, informado disso, preferiu acreditar em seu ex-ministro da Saúde, o sabujo Osmar Terra, que "calculou" 3.500 mortes.

Para Bolsonaro, as vítimas se limitariam a idosos, que "morreriam de qualquer jeito". Os outros seriam salvos pela cloroquina. E a quarentena era impensável, porque "poria a economia em risco" e, logo, seu governo. Foi apoiado por Paulo Guedes, ministro da Economia, e que, segundo Mandetta, só enxerga a si próprio. Guedes igualmente esquentará o banquinho no tribunal.

A 16 de abril, quando Mandetta foi demitido, o Brasil tinha 2.000 mortos por Covid. Hoje, passa dos 150 mil. Os 180 mil que Mandetta anteviu estão a caminho. E Bolsonaro diz que não são de sua conta.

Senadores dispensam para o STF qualidades que exigiriam de uma doméstica

"A verdade vos libertará", diz o Evangelho de João no versículo preferido de Jair Bolsonaro. Tomado pelo currículo, Kassio Marques, o escolhido do presidente da República para ocupar uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal é super-qualificado. Possui formação acadêmica superior e títulos obtidos em universidades europeias. O único problema é que o candidato mente um pouco.

Os títulos do doutor não ficam em pé. E sua dissertação de mestrado inclui a cópia de generosos trechos de texto escrito por um amigo. Aproveitaram-se até os erros de português. Mesmo conhecendo a verdade, Bolsonaro avaliou que não seria o caso de se libertar da indicação. E os senadores, que têm a atribuição constitucional de aprovar o nome, acorrentam-se gostosamente ao candidato.


Relator do processo de preenchimento da vaga suprema, o senador amazonense Eduardo Braga, do MDB, apresentou seu parecer. Nele, anotou que as inconsistências curriculares do candidato pesariam "muito pouco no exame dos requisitos constitucionais" exigidos para o emprego vitalício de ministro da Suprema Corte.

O senador escreveu: "Mirar abstratamente o curriculum do indicado significa retirar a dimensão humana dos conhecimentos que ele adquiriu, das reflexões que produziu e da prudência que exercitou ao longo de sua trajetória."

Mais do que um simples relator, Eduardo Braga é matéria-prima para o futuro ministro. Corre no Supremo inquérito em que o senador é acusado de receber ilegalmente R$ 6 milhões da JBS. É nesse ambiente que se forma no Senado uma maioria suprapartidária a favor da aprovação do indicado de Bolsonaro. Até anti-bolsonaristas do PT e do PDT se equipam para dizer sim.

Uma empregada doméstica que se candidatasse a uma vaga na casa dos senadores com alguma referência falsa decerto seria refugada. Mas para o emprego de ministro do Supremo, a verdade vale menos do que a conveniência. Bolsonaro conseguiu piorar o Supremo.