terça-feira, 8 de novembro de 2016

A República vem aí

A Praça dos Três Poderes conspira abertamente contra a Lava-Jato. Teme que a República seja abalada. Apurar até o fim as acusações de corrupção colocaria em risco a estabilidade política. Sim, para os donos do poder — e não é uma simples imagem linguística — a punição dos grandes empresários, de políticos e seus asseclas não faz bem à democracia. Para eles, tudo tem de continuar como está. A Lava-Jato teria ido longe demais.

No Congresso, as principais lideranças preparam a aprovação de um projeto de lei anistiando o caixa dois. Argumentam que todos os partidos políticos tiveram de se adequar à realidade, a da violação da lei. Seria o único meio de fazer uma campanha eleitoral. Não receberam o dinheiro para usufruto pessoal — o caixa três. Não. Todos os recursos foram aplicados nas campanhas. Segundo eles, as contribuições ilícitas seriam lícitas. Neste curioso jogo de palavras não há propina, desvio de recursos públicos ou sobrepreço no pagamento de obras ou mercadorias por parte do poder público ou de suas empresas ou bancos. Mas, simplesmente, a inexistência de registro contábil de recebimento de apoio financeiro.

Se for aprovada a anistia do caixa dois, o Congresso vai concluir sua recente obra de legalizar a ilegalidade, que inclui a Lei de Leniência e a da repatriação de capitais. É o elogio ao crime, que, no Brasil, compensa. E, pior, com o objetivo de salvar dezenas de políticos de processos-crimes, acabará desmoralizando a ação da Justiça, impedindo o devido saneamento da vida pública.


Nesta conspiração antirrepublicana, que preserva o status quo, o grande capital especulativo e espoliador joga importante papel. Foi parceiro durante 13 anos do PT. Nada fez pelo impeachment. Silenciou quando das revelações dos escândalos. Participou do saque. Obteve lucros fabulosos. Glorificou Lula durante anos. E, agora, tenta esconder seus interesses — nada republicanos — sob a alcunha de “mercado.” É uma enorme hipocrisia dar ao grande capital, ao “mercado”, o protagonismo neste momento tão crucial da vida brasileira.

A elite político-econômica tem nas cortes superiores de Brasília aliados poderosos. A maioria dos ministros deseja limitar a ação da Lava-Jato. Creem que ela foi longe demais. Invocam preceitos jurídicos como cortina de fumaça. São tão farsantes como as lideranças políticas do Congresso. A única diferença é o uso da toga. Desejam deixar tudo como está. Afinal, são partícipes entusiastas desta República bufa.

Nos últimos dias, o desespero da Praça dos Três Poderes aumentou de intensidade. A proximidade da delação premiada de 75 diretores, altos funcionários e dos proprietários da Odebrecht intensificou as articulações. Temem que sejam atingidos em larga escala — como serão. Tudo indica que o Brasil não será o mesmo após as homologações das delações. Devem atingir todo o espectro político de Brasília. E com efeitos incalculáveis.

Daí a operação para conter seus efeitos. Buscam edificar às pressas um arcabouço legal. É uma luta de desesperados. A Lava-Jato não vai interromper sua ação. Necessitam desmoralizá-la. Tentaram. Não conseguiram. Resta a chicana jurídica, o apoio das Cortes nada superiores de Brasília e a busca de apoio na sociedade apontando o perigo de colocar em risco a recuperação econômica.

É difícil encontrar outro momento na história republicana brasileira tão propício como o que vivemos para enfrentar — e vencer — a estrutura corrupta que tomou conta do país. A Constituição de 1988 concedeu os instrumentos para o exercício da cidadania. E que nestes últimos anos estão sendo exercidos. Quando os direitos eram somente para inglês ver, não havia problema algum. Tudo mudou quando foram exercidos na sua plenitude.

As grandes mobilizações dos últimos dois anos, a presença ativa das redes sociais, a auto-organização da sociedade civil e a vitoriosa luta pelo impeachment de Dilma Rousseff deixaram os donos de poder em situação difícil. Não podem mais decidir entre quatro paredes como gerir e dominar o nosso país, como fizeram durante décadas.1

O novo Brasil que está nascendo encontra na República carcomida o seu maior adversário. É necessário destruí-la para poder edificar o pleno estado democrático de direito. Esta é a contradição principal — e antagônica. Não há qualquer possibilidade de encontrar uma conciliação entre democracia e corrupção. O velho jeitinho congressual-jurídico não conta mais com a complacência popular.

A corrupção está de tal forma entranhada na estrutura republicana que impossibilita o sistema de se autorreformar. Afinal, a corrupção é um sistema que contempla múltiplos interesses. Se fosse apenas um negócio entre corruptor e corrupto, poderia ser de fácil solução. E aí mora o nó górdio a ser desatado. Ao enfrentá-la, os moralizadores da República vão ter de travar combates com poderosos inimigos espalhados tanto na estrutura de Estado, como fora dela. A socialização da corrupção deu a ela um enorme poder de resistência.

Coincidentemente, o ápice da Lava-Jato deve ocorrer próximo à data magna da República, o 15 de novembro. Nunca estivemos tão perto de proclamá-la. Afinal, o marechal Deodoro da Fonseca simplesmente anunciou, naquela sexta-feira, logo pela manhã, a mudança do regime. A hora é agora. E é possível. Se perdermos esta oportunidade, dificilmente teremos outro momento tão propício para colocar em prática o sonho dos republicanos históricos como Silva Jardim e Saldanha Marinho.

Marco Antonio Villa

Uma noite de samba sem licitação no Planalto

Tenho uma tese: o poder faz mal à inteligência crítica, especialmente à de assessores. Vamos lá. Fôssemos do primeiro ou de segundo escalões de Michel Temer, e alguém sugerisse contratar artistas por R$ 596,8 mil para comemorar o, como é mesmo?, “centenário do samba”, a primeira reação seria a óbvia, a ululante, a escandalosamente evidente: “Melhor não, né, pessoal? Na era da austeridade, não fica bem! Se o governo quer homenagear o centenário do samba, basta ao presidente que fale alguma coisa ou emita uma nota. Ou que o faça o Ministério da Cultura”.

Mas não. Haverá cantoria, num evento fechado, na noite desta segunda, no Palácio do Planalto. Artistas foram contratados com dispensa de licitação. Todos eles são ligados à empresa Treco Produções Artísticas Ltda. No evento, 36 personalidades serão agraciadas com a Ordem do Mérito Cultural — na verdade, essa é a razão original do evento; o samba é o tema.

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Não vou atacar de moralista babaca. O Ministério da Cultura dispõe de verba para coisas assim. Cada pasta tem seu nicho de atuação. O governo pode dizer, inclusive, que está economizando. No ano passado, no governo Dilma, evento semelhante custou R$ 1,1 milhão, com show de Caetano Veloso. E ainda houve proselitismo contra o impeachment.

Desta feita, vão se apresentar Neguinho da Beija Flor, Márcio Gomes, Áurea Martins e André Lara. A cantora Fafá de Belém foi contratada para cantar o Hino Nacional.

Reitero: faz-se agora, com menos dinheiro, o que se fazia antes. Mas é evidente que se está entregando à imprensa um prato cheio de ironias, não? E ela tem de fazer o seu trabalho, é claro!

Ainda que eu não seja do tipo que converte todo gasto em número de bolsas famílias ou unidades do Minha Casa Minha Vida, é evidente que esse show seria dispensável. Que se concedam as tais medalhas em cerimônia compatível com tempos de crise. Que se aproveite para homenagear o samba com o recato daquela que pisava nos astros distraída. E não com a sem-cerimônia de quem pisa nos astros desastrado.

Ah, sim: Hino Nacional sem Vanusa não vale!

O amanhã não pode ser apenas inverno

A escavação que fazemos da vida é para trás. Seja sobre o indivíduo, seja sobre a sociedade, seja sobre o mundo. Vamos arrancando as camadas de acontecimentos, alguns com uma daquelas escovinhas de arqueólogo, cuidando para não apagar um pedaço no processo, outros arrancando lascas. E tentando dar sentidos, seja para um trauma de infância, seja para o holocausto judeu, seja para o impeachment de uma presidente ou o suicídio de outro. Sentidos que se ressignificam constantemente a partir de novos indícios, interpretações e também circunstâncias. Compreendemos o presente a partir da investigação viva – e polifônica – do passado. Como chegamos até aqui, seja uma pessoa, um país, uma organização, um partido ou um grupo terrorista, implica uma obviedade: a análise do percurso. Mas penso que, para compreender o mal-estar deste momento, e não só no Brasil, é preciso olhar também para outro lugar: é preciso compreender que o futuro nos constitui tanto quanto o passado.

Não o futuro que efetivamente será, aquele que em seguida vira pretérito sujeito a interpretações múltiplas. Mas a ideia de futuro, esta que nos move no presente. E, por nos mover, influencia de modo decisivo o que somos neste momento. Nosso presente é tão impactado pelo futuro que somos capazes de imaginar quanto pelo passado que tentamos compreender. Em parte, é o futuro que alinhava o mal-estar sentido hoje por tantos em tantos lugares. Precisamos muito de uma paleontologia dos fósseis do amanhã. Ou de uma psicanálise dos traumas futuros.


Como imaginar, por exemplo, que a Belle Époque se tornou o que foi sem o futuro que seus protagonistas eram capazes de imaginar? O futuro que se desenhou no concreto, pelo menos na Europa, foi a Primeira Guerra Mundial (1914-18) e sua matança pavorosa. Mas havia um outro futuro, cheio de otimismo e potência, um que se imaginou no presente. E que criou realidades no presente, influenciando fortemente aquele momento e fazendo dele o que foi.

Ou, por outro ângulo, como teria sido possível a ascensão de Adolf Hitler na Alemanha dos anos 30, e tudo o que aconteceu depois, sem que uma parcela significativa dos alemães médios tivesse passado a acreditar num futuro com ainda mais perdas, humilhações e medos do que já tinham sofrido após a derrota na guerra? Os culpados, aqueles que são responsabilizados pelas dificuldades do presente, não vêm apenas do passado e de fatos concretos. Mas do futuro e de nenhum fato para além da construção de uma ideia na qual se passa acreditar como fato. Encarnou-se um inimigo nos judeus muito mais por um futuro forjado numa construção complexa do que por um passado real. E o que de fato aconteceu no futuro todos conhecemos hoje como Holocausto.

O suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, e sua carta-testamento podem ser lidos pelo passado, mas também podem ser lidos pelo futuro que o então presidente acreditou poder impactar com esse gesto radical. Vargas matou-se também por acreditar que estaria mais presente no futuro não estando do que se estivesse.

O quanto de nossas decisões individuais no presente não são tomadas em nome de um futuro sobre o qual temos muito pouco controle mas acreditamos que será tal qual imaginado – ou temido – por nós? O que não acontecerá, mas é vivido por cada um como se de fato acontecesse, acontece em certa medida. Ou, dito de outro modo, para aquele que acredita numa ideia de futuro, este futuro ideado é real no único momento que pode ser: no presente. E o conforma.

É difícil dimensionar o impacto de uma ideia de futuro sobre o mal-estar disseminado deste momento. Mas me arrisco à hipótese de que o futuro nunca teve uma repercussão tão profunda como neste presente expandido. Talvez a frase que melhor expresse isso na ficção é a da série de TV Game of Thrones(HBO), baseada nos livros de George R. R. Martin: “The winter is coming”. O inverno está chegando...

O futuro de hoje é uma distopia. O que será de fato ninguém pode dizer que sabe. Mas sabemos que uma ideia distópica de futuro move esse presente. No Brasil, esta ideia se impõe depois de um período de crença de que o Brasil tinha superado um patamar simbólico, uma espécie de ranço histórico, e que seguiria avançando. A melhor síntese é o discurso de Lula, em 2009, no dia em que o Brasil foi escolhido para sediar os jogos olímpicos. Como já escrevi neste espaço, aquele é um discurso sobre o eterno país do futuro que finalmente havia chegado ao presente – e este presente era grandioso. Insisto na importância desse discurso porque ele é precioso para compreender o futuro que efetivamente chegou.

Lula consumou, naquele momento, uma alquimia: a ideia de futuro que movia o presente se tornou, em seu discurso, o próprio presente. Esse futuro do presente deveria ter se mostrado em toda a sua glória apenas alguns anos mais tarde: na Copa de 2014 e na Olimpíada de 2016. Mas o futuro do futuro, como se viu, foi bem outro.
Leia mais o artigo de Eliane Brum
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Estado de anarquia

Governantes não sofrem de estresse, eles provocam nos governados. No Rio, como em outros 11 estados, a má gerência pública ameaça o humor e os bolsos de 16,4 milhões de habitantes.

Para tapar parte do buraco cavado nas contas estaduais durante décadas, o governo decidiu aumentar o principal imposto local (ICMS), que é cobrado em cascata da fabricação até o consumo de produtos e serviços.

Por isso, viver no Rio vai custar mais na energia, na gasolina, na cerveja, no chope, na telefonia e na internet. Exemplo: se o estado arrecadava R$ 57 numa conta de luz de R$ 200, a partir de janeiro tomará R$ 64 do consumidor.

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Os chefes do Executivo, Legislativo e Judiciário fluminenses são incapazes de garantir que em 2017 não haverá novos aumentos na carga tributária. Mostram-se impotentes, também, para assegurar pagamento dos 470,4 mil inscritos na folha de pessoal. Ano passado eles custaram R$ 1.914,27 a cada habitante — 12,5% acima da média per capita nacional.

O Estado do Rio tem mais servidores inativos (246,7 mil) do que em atividade (223,6 mil). Sua folha salarial espelha a devastação administrativa executada por sucessivos governos, por interesses políticos e corporativos.

Há aposentadorias de até R$ 75,5 mil no antigo Departamento de Estradas de Rodagem e de R$ 53,4 mil na Fazenda estadual — mostram dados da Secretaria de Planejamento.

Entre servidores ativos, existem remunerações de até R$ 48,7 mil na Defensoria Pública; de R$ 47,2 mil na Fazenda; de R$ 41,9 mil no Detran; de R$ 39 mil na Procuradoria-Geral, e, de R$ 38,2 mil no Corpo de Bombeiros.

Em setembro, o sistema de pagamentos do funcionalismo registrou nada menos que 312 tipos de vantagens, gratificações, auxílios, adicionais e abonos à margem da remuneração convencional. Contam-se, por exemplo, 188 variedades de gratificações e 42 auxílios.

Premia-se por “assiduidade” quem comparece ao trabalho. Gratifica-se por “produtividade”, “desempenho”, “aproveitamento”, “responsabilidade técnica”, “qualificação”, “habilitação”, “titulação” e “conhecimento”. Paga-se por “produção”, “resultados” e até por “quebra de caixa” — aparentemente, quando o saldo é positivo. Tem até uma gratificação “extraordinária de Natal”.

Cargos de confiança no governo, na Assembleia ou no Tribunal de Justiça têm adicionais por anuênios, triênios e quinquênios, além de “verba de representação”. Participantes de conselhos ganham “gratificação de órgão de deliberação coletiva”, “jeton” e “honorários”.

Em paralelo, pagam-se adicionais por “titularidade”, por “atribuição” e até por ocupação de cargo de “difícil provimento”. Existem também “retribuições”, como a de “licenciamento de veículos” e a de “exame de direção”.

O estado perdeu o controle das suas contas. Não sabe sequer o valor das renúncias fiscais que concedeu nas últimas três décadas — o TCE estima entre R$ 47 bilhões e R$ 185 bilhões. Há casos de incentivos a só um beneficiário, alguns por tempo indeterminado, e vários decididos sem o aval da Fazenda.

O orçamento estadual é um clássico de conta feita para indicar como será aplicado o dinheiro que já foi gasto. Numa insólita rubrica da folha de pessoal prevê até um bálsamo para dificuldades financeiras: “Adiantamento funeral”.

José Casado

A lei para quase todos

Foro privilegiado, ou foro por prerrogativa de função? Cláusula de barreira ou cláusula de performance? As palavras, principalmente em política, costumam expressar posições bem definidas.

O que chamamos foro privilegiado nem sempre foi visto assim. No passado era pior. As pessoas tinham direitos a partir de sua origem, de sua classe social, algo que as acompanhava até à morte. Nesse sentido, ao limitar o foro especial ao exercício de uma função, houve um avanço indiscutível. Perdido o cargo, retorna-se ao destino comum.

Deputados e senadores só podem ser processados pelo Supremo Tribunal. Em princípio, não é uma coisa boa se você fez algo errado. Os juízes do Supremo são mais competentes e, portanto, mais capazes de desarmar todas as tramas da defesa. Além disso, ao ser condenado pelo Supremo, não há para onde correr, não há chances de recursos a uma instância superior, como na vida aqui embaixo, onde os condenados se veem às voltas com juízes de primeira instância.


Por que os parlamentares se apegam tanto ao foro especial? Por que desqualificam os outros juízes, considerados por Renan Calheiros juizecos de primeira instância? Por que preferem o que deveriam temer?

A resposta está no tempo, isso que nem sempre sabemos definir, mas sabemos muito bem o que é. Os processos no Supremo levam anos para ser julgados, o tempo corre a favor dos acusados.

Segundo os últimos números, cerca de 224 parlamentares são objeto de investigação ou ações no Supremo. De 1988 para cá, 500 foram investigados e apenas 16, condenados.

Os números atuais são um recorde. Alguns parlamentares respondem a mais de um processo. Há os recordistas, como o senador Lindberg Farias (PT-RJ)ou o ex-deputado Paulo Cesar Quartiero, hoje vice governador (de Roraima), com 13 inquéritos cada um.

Nada tenho pessoalmente contra Quartiero. Desenvolvi mesmo uma visão crítica sobre a delimitação da área indígena Raposa-Serra do Sol. Mas andei por lá em algumas ocasiões, inclusive num momento em que Quartiero destruiu suas instalações de beneficiamento do arroz que produzia, revoltado com a perda de suas terras.

Como fiz algumas fotos, a Justiça me chamou para depor. Fui lá, no dia e hora e marcados, e contei o que vi. E disse que tinha as fotos. Por precaução salvei algumas e as mantive na mesa do computador.

Nunca mais fui chamado. De vez em quando, olhava as fotos e pensava comigo mesmo: vou mantê-las aí, pode ser que se interessem, que queiram ao voltar ao tema. Com o tempo retirei-as da minha vista. Nunca mais soube de nada a respeito desse assunto e, na verdade, perdi o interesse.

Claro que quero voltar a Uiramutã e pernoitar numa pensão de R$ 20 por noite, rever todas as belezas daquela região de Roraima, na fronteira com a Venezuela e a Guiana. Mas o destino da Raposa-Serra do Sol, tão discutido no passado, não é mais pauta de reportagem. Teria de fazer uma grande ginástica narrativa para que as pessoas se interessassem pelo que, de fato, aconteceu depois da delimitação da área indígena.

Tudo o que é sólido se desmancha no ar. A frase de Marx, adaptada por Marshall Berman para o continente americano, tem plena validade para o Brasil. Estou falando de um dos 500 casos que, por coincidência, se entrelaçaram com a minha trajetória pessoal.

Um dos inquéritos mais antigos de Renan Calheiros é o que envolvia sua amante mantida por empreiteira. O caso revelou uma riqueza pessoal insuspeitada e também se dissolveu no ar. Todas as etapas foram cumpridas no tempo. Acabou em pizza, o que em termos amorosos quer dizer: em poses para uma revista masculina.

A passagem do foro privilegiado para o comum não significa necessariamente uma solução perfeita para o problema. Lembro-me de que o deputado Bonifácio de Andrada muitas vezes enfatizou, em conversas sobre o tema, como é perigoso ser perseguido por um juiz no interior, sobretudo no momento eleitoral, em que as paixões políticas se acendem.

Atualmente, fala-se numa espécie de Corte dedicada exclusivamente aos parlamentares e outros detentores de foro especial. Não me parece a melhor saída. No entanto, a pior de todas é continuar empurrando com a barriga, enquanto os processos dormem no Supremo.

Aquele célebre momento em que Dilma nomeou Lula para protegê-lo de Sergio Moro deveria ser um ponto de inflexão. Na verdade, o mensageiro acabou ofuscando nossa memória da mensagem. Quem não se lembra do Bessias? Depois que Dilma caiu, todos queriam saber do Bessias, por onde andava, se estava recebendo seu salário, que futuro teria o Bessias num país sem Dilma na Presidência... Se, de repente, começarmos a chamá-lo de Messias, sua mensagem pode ter um significado mais amplo. Seu tropeço anunciaria um novo tempo, sem truques e artimanhas.

Ex-governantes sofrem crueldades, assim como repórteres investigativos. Uma delas é a dispersão de processos, o que os obriga a correr de um lado para o outro, tornando-os escravos de uma defesa de Sísifo: mal se explica aqui e já é preciso sair correndo para se explicar a alguns quilômetros de distância.

Com todas essas pedras no caminho, é preciso buscar uma saída. Dizem que uma das conquistas da Lava Jato foi demonstrar que a lei vale para todos. Mas vale mesmo?

A cadeia de Curitiba está cheia de gente sem mandato. Quem tem mandato tem polícia particular, com sofisticadas malas para desmontar grampos, assessorar bandidos no Maranhão. E ministros no Supremo para, com a rapidez de um relâmpago, livrá-lo das complicações. Mexam com os jagunços de terno preto e gravata e não faltará uma sumidade jurídica para nos esfregar a Constituição na cara.

A lei vale para todos? Felizmente, ainda não estão prendendo quem responde a essa frase com uma gargalhada.

No Brasil, discute-se tudo menos o que é importante - a insaciável dívida pública

O Brasil é realmente um país muito estranho. Está vivendo a plenitude de sua versão da democracia, que é meio diferente da praticada em outras nações. Aqui, pode-se derrubar a presidente eleita, prender ex-ministros e políticos importantes, condenar empresários bilionários, e vida que segue, como dizia o inesquecível jornalista João Saldanha. Poucos países conseguiriam enfrentar uma situação tão esculhambada e manter um clima de normalidade. Tudo é discutido abertamente por uma mídia de primeiro mundo, que apresenta produtos de qualidade, sejam jornais, revistas especializadas, programas de rádio e televisão, embora haja muita baixaria, como também ocorre nos Estados Unidos, na Inglaterra, na França etc., que ainda não atingiram o nível de civilização dos países escandinavos, onde se praticam as mais criativas versões do socialismo democrático, regime ideal para o mundo trilhar nos próximos séculos.

Aqui no Brasil tudo é discutido apaixonadamente, menos a questão mais importante, a única que realmente importa – a avassaladora escalada da dívida pública. O assunto vem sendo discutido em pé de página, jamais ocupa as grandes manchetes, não desperta maior interesse.

Embora seja um dos países com maior potencial de crescimento, o Brasil continua a ser um gigante adormecido – ou entorpecido. Até o governo Itamar Franco, a situação estava sob controle. O maior problema era a dívida externa, que nem era lá essas coisas, pois os juros eram baixos, e a dívida externa chegava a ser ridícula em comparação ao PIB nacional.

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Foi o irresponsável Fernando Henrique Cardoso que inverteu a situação. Sob pretexto de reduzir a dívida, fez privatizações a preço de banana, financiadas pelo BNDES, no fenômeno que depois o jornalista econômico Aloysio Biondi apelidaria de “privataria tucana”. FHC é um farsante, não reduziu nada, apenas transformou a dívida externa em interna e multiplicou-a adoidamente.

Depois, outro irresponsável, o presidente Lula da Silva, seguiu aumentando descontroladamente a dívida pública e incentivou artificialmente o consumo, sem que a importante questão financeira fosse discutida em termos nacionais.
Depois entrou em cena a suposta gerentona Dilma Rousseff. Com base em seu falso doutorado em Economia, a governante (ou governanta) permitiu que seu ministro Guido Mantega implantasse a “contabilidade criativa”, que consistia na maquiagem das contas públicas para apresentar resultados sempre positivos, pedalando sem parar.

Com base nesta fraude, Dilma ganhou novo mandato, mas acabaria sendo expulsa do poder. E naquela prolongada batalha do impeachment, discutia-se tudo, menos a escalada da dívida pública.

Agora, na gestão de Michel Temer, com o ex-banqueiro Henrique Meirelles comandando a equipe econômica, o esquema continua o mesmo – debate-se o teto dos gastos etc. e tal, mas a dívida interna e externa, que crescem cada vez mais, continuam em segundo plano.
O fato concreto é que o Brasil vive a maior crise econômica de sua História. Estimulada pelos tucanos e petistas, a farra do boi acabou. Mas a grande mídia ainda minimiza a dívida pública, porque o assunto é vital para os banqueiros e as elites, que se transformaram em “rentistas”. Ao invés de investirem em atividades produtivas, para gerar riquezas e abrir empregos, simplesmente deixam o dinheiro aplicado, auferindo juros sobre juros, o melhor negócio do mundo.

Os banqueiros e investidores decidiram inventar o mais abjeto modelo de econômico já criado – o capitalismo sem risco, em que o dinheiro rende por si só. É claro que isso não existe. O capitalismo é um sistema que sempre envolve risco, não há outra alternativa. O genial economista Thomas Piketty precisa escrever agora sobre o capital em versão brasileira. Seria um novo fenômeno editorial.

Bem, é esse assunto que precisamos urgentemente discutir, porque a economia nacional está derretendo. Mas quem se interessa? Temer? Meirelles? Lula? Bolsonaro? Ciro? Caiado? Alckmin? Serra? Aécio? Claro que não. Todos eles são rentistas.

Paisagem brasileira

Tropeiro de Ouro Preto, Alberto Braga

O pós-PT

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O fim da era petista decretado pelas eleições municipais de 2016 é mais do que um fato histórico. Ao quebrar o modelo das disputas políticas no País nas últimas décadas, diz tanto sobre o passado quanto sobre o futuro da política brasileira. Sua resultante tem muitos nomes: vitória da antipolítica, guinada à direita, ressurreição do PSDB, ressaca da Lava Jato. Em maior ou menor grau, todos nomeiam partes do fenômeno. Para tentar compreendê-lo no todo, convém repassar a história. 

A exuberância do consumo popular nos anos Lula produziu um inchaço do petismo. Em média, a preferência pelo PT cresceu oito pontos (um PSDB de novos simpatizantes) no período de 2002 a 2010 em comparação aos oito anos anteriores. Inchaço porque não foi um crescimento sustentável. Durante a era Dilma, a simpatia pelo partido recuou tudo o que crescera e mais um pouco: nove pontos, na média 2011-2015 da preferência partidária do Ibope.

Em 2016, ao longo da novela do impeachment coadjuvada pela recessão, o petismo perdeu mais dez pontos e voltou ao século passado. Essa fotografia da crise foi tirada após a maior derrota eleitoral do PT em sua história. Ainda não se sabe se plasmou o fim do partido como o conhecemos ou se registrou um momento de exceção. Por isso, é melhor analisar as médias.

Mesmo terraplanando os picos de euforia e depressão petista, o governo Lula inflou em 50% a preferência pelo PT. Encheu-a pelo bolso, muito mais de pragmatismo do que de ideologia. Mais gente passou a frequentar o supermercado e abrir crediário na Casas Bahia. Menos gente fez greves e promoveu invasões de terra.

Em paralelo à desmobilização da militância partidária e ao torpor sindical, as prefeituras, as câmaras, as assembleias e a Esplanada dos Ministérios se encheram de petistas. Novos e velhos, convertidos e históricos, aos milhares. A ocupação do poder institucional somada ao inchaço da preferência pelo PT mudou o comportamento do eleitorado brasileiro como um todo, inclusive o das outras forças políticas. Por reação.

Se antes de o PT ganhar eleições federais sucessivas e desalojar outros partidos já existia um antipetismo, depois disso ele ganhou dimensão muito maior, proporcional ao protagonismo do partido e de seu líder, Lula. A partir de 2004 e, em especial, de 2006, as eleições se organizaram em um eixo PT versus anti-PT. A polarização passou a ter fronteiras no mapa.

Era possível ver as forças antagônicas de luneta (nas grandes regiões, o Nordeste versus o Sul-Sudeste antipetista) e no microscópio (dentro das cidades, a periferia pobre pró-PT versus centro rico anti-PT). O engajamento cresceu de ambos os lados. Houve um aquecimento global do clima político.

Mais cabeças foram feitas. Em 2010, os “engajados convictos” eram 49% do eleitorado, segundo estudo do Ibope Inteligência. Ou seja, metade definiu seu voto logo no começo da campanha, assim que descobriu quem era a candidata do PT e quem era seu principal opositor. Em 2016, diminuiu muito o engajamento. Houve um terço a menos de cabeças-feitas, na maioria ex-petistas.

Esses 15% do eleitorado viraram um “isentão decisivo” (de 17% para 23%) ou um desinteressado por política que “só vota obrigado” (de 27% para 33%). Ambos deixaram para definir seu voto e prefeito na última hora. Os 3% restantes simplesmente não votaram, elevando os ausentes do processo eleitoral para 10%.

O desinchaço do petismo não apenas levou à derrocada do partido, como contribuiu para diminuir o engajamento médio do eleitorado como um todo. Junto com as mídias sociais, estimulou o voto volúvel e improvisado, produzindo mudanças de última hora nas corridas eleitorais. Por tabela, ajudou a viabilizar azarões, inflou os votos nulos e favoreceu aqueles que se apresentam como antipolíticos. E isso é só o começo.

José Roberto Toledo

Iluminador da História

O jornalista Carl Bernstein – famoso no mundo inteiro depois da série de reportagens, escrita com Bob Woodward, que revelou o escândalo Watergate e derrubou o presidente Richard Nixon, em 1974 – é um duro crítico dos desvios do jornalismo engajado e parcial.

“O importante é saber escutar”, diz Bernstein. “As respostas são sempre mais importantes que as perguntas que você faz. A grande surpresa no jornalismo é descobrir que quase nunca uma história corresponde àquilo que imaginávamos.”

O comentário é uma estocada nas atitudes de engajamento, arrogância e prejulgamento que corroem e desfiguram a reportagem. “Os jornalistas, hoje, trabalham com um monte de preconceitos”, sublinha. “Fazem quatro ou cinco perguntas para provocar alguma polemicazinha de nada, mas evitam iluminar a cena, fazer compreender.” Com a autoridade de quem sabe das coisas, Bernstein dá uma lição de maturidade profissional.

Evento gratuito conta com a presença de Rinaldo Gama, jornalista que já editou cadernos de cultura como o extinto "Sabático".:
O bom jornalista ilumina a cena, o repórter manipulador constrói a história. A apuração de mentira representa uma das mais graves agressões à ética e à qualidade informativa.

Matérias previamente decididas em guetos sectários buscam a cumplicidade da imparcialidade aparente.

A decisão de ouvir o outro lado não é honesta, não se fundamenta na busca da verdade, mas num artifício que transmite um simulacro de isenção, uma ficção de imparcialidade.

O assalto à verdade culmina com uma estratégia exemplar: repercussão seletiva. Convoca pretensos especialistas para declarar o que o repórter quer ouvir. Mata-se a notícia. Cria-se a versão.

A reportagem de qualidade é sempre substantiva. O adjetivo é o adorno da desinformação, o farrapo que tenta cobrir a nudez da falta da apuração. A imparcialidade (que não é neutralidade) é o melhor investimento. O consumidor compra informação. Não quer contrabando opinativo na notícia.

Autor do mais famoso livro sobre a história do jornal The New York Times, Gay Talese, vê alguns problemas da imprensa a partir da crise que atingiu um dos jornais mais influentes do mundo. Embora faça uma vibrante defesa do Times, “uma instituição que está no negócio há mais de cem anos”, Talese põe o dedo em algumas chagas que, no fundo, não são exclusividade do diário norte-americano. Elas ameaçam, de fato, a credibilidade da própria imprensa. “Não fazemos matéria direito, porque a reportagem se tornou muito tática, confiando em e-mails, telefones, gravações. Não é cara a cara. Quando eu era repórter, nunca usava o telefone. Queria ver o rosto das pessoas. Não se anda na rua, não se pega o metrô ou um ônibus, um avião, não se vê, cara a cara, a pessoa com quem se está conversando”, conclui Talese.

Reportagem com rosto humano. Com cheiro de asfalto. É isso que atrai e faz do jornalismo uma atividade perene.

Ainda há esperança?


 #despertar Nós Contra Eles? - Vês agora porque é violento? Porque te estás a separar a ti mesmo do resto da humanidade. Quando te separas a ti mesmo (por credo, nacionalidade, por tradição) isso gera violência. Então um homem que procura compreender a violência não pertence a país algum, a qualquer religião, a qualquer partido político ou sistema parcial, ele esta preocupado com o entendimento total da humanidade." ~ Jiddu Krishnamurti http://youtu.be/rQaPFSj-AM4:
O caráter demagógico e o propósito de agir sobre as massas são agora comuns a todos os partidos políticos. Para tanto precisam transformar seus princípios em grandes bobagens pintadas a fresco e penduradas nas paredes. Não se pode mudar mais nada
Friedrich Nietezsche

Institucionalizado, privilégio da FAB vira religião

Assim como um ateu é um crente que ainda não recebeu um diagnóstico de doença terminal, um opositor dos privilégios é apenas um aproveitador despudorado que ainda não entrou num jatinho da Força Aérea Brasileira.

Em 2013, ainda sob Dilma Rousseff, a FAB, com pouca força e cada vez mais brasileira, revelou-se uma espécie de Casa da Mãe Joana com asas. Na oposição, o PSDB tomou as dores do contribuinte.

Sob Michel Temer, até tucano se comporta como se tivesse nascido com asas da FAB grudadas no dorso. Em cinco meses da gestão Temer, os ministros requisitaram 781 voos da FAB. O Estadão revela que essas requisições ferem as normas em pelo menos 238 casos.

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O campeão em milhagem no programa Bolsa FAB é o ministro Alexandre Moraes (Justiça), egresso do secretariado do governador tucano de São Paulo Geraldo Alckmin. O vice-campeão é o ministro José Serra (Relações Exteriores), um grão-tucano de fina plumagem.

Na farra de 2013, o senador Aloysio Nunes Ferreira (SP), então líder do PSDB no Senado, apresentou um requerimento exigindo informações à Força Aérea. Hoje, o tucano Aloysio é líder do governo Temer na Câmara Alta. Está em silêncio. Para o governo, tudo está normal.

Dono da chave do cofre, o ministro Henrique Meirelles (Fazenda) também integra o ranking de autoridades que retiram jatos da FAB para viagens que têm como destino ou origem a cidade onde mantém domicílio. A lista inclui também ministros como Gilberto Kassab (Comunicações) e os palacianos Eliseu Padilha (Casa Civil) e Geddel Vieira Lima (Secretaria de Governo).

A FAB se recusa a informar quanto gasta no custeio da fuzarca aérea. Alega-se que ''o custo da hora de voo das aeronaves militares é informação estratégica e, por isso, protegida''. Heimmm?!?!?

Tudo é protegido em Brasília. Só o bolso do contribuinte não dispõe de blindagem. Uma vez que o privilégio é institucionalizado, a desfaçatez vira religião. Do contribuinte, espera-se que pague os impostos em dia, diga ‘amém’ e não chateie.

Imagem do Dia

Albarracín, vila medieval no norte da Espanha
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O dobro da metade, na estratégia do governo

O senador Renan Calheiros foi avisado pelo palácio do Planalto de que não deve contar com qualquer iniciativa capaz de ajudá-lo nas denúncias que correm contra ele no Poder Judiciário. Da mesma forma, porém, não deve esperar a intervenção do presidente Michel Temer no sentido de levar o Supremo Tribunal Federal a ajudá-lo na tramitação dos processos a que responde. Traduzindo: o governo não atuará nem contra nem a favor do presidente do Senado. Simplesmente, deixará que a natureza siga o seu curso.

Na mesma linha de comportamento seguirá o governo diante da eleição dos novos presidentes e das mesas do Senado e da Câmara. Quem a maioria dos partidos escolher, estará escolhido. Assim, tanto fará para Michel Temer se o sucessor de Renan Calheiros vier a ser Eunício Oliveira ou Raimundo Lyra. Vale o mesmo na Câmara dos Deputados.


É claro que o Executivo terá suas preferências, ou melhor, disporá de uma relação de parlamentares infensos a seus interesses. Mas não participará da seleção de quem vier a ser indicado pelos partidos de sua base. O ideal será evitar a ascensão de adversários, mas mesmo eles, se foram indicados de acordo com as maiorias parlamentares, o governo tentará ficar de fora.

Em suma, o objetivo é a preservação da bandeira branca, para a governabilidade. Se Michel conseguir o dobro da metade das forças que evoluem ao seu redor, melhor para conquistar espaços necessários a afastar obstáculos.

Reeleição de Dilma pode ter custado quatro vezes mais do que o declarado à Justiça

“Foi notoriamente um festival de abuso de poder econômico”, disse o ministro Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, a respeito do que a ex-presidente Dilma Rousseff pode ter gastado em campanha para se reeleger em 2014.

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Gilmar falou para brasileiros e americanos reunidos, ontem, no Brazil Institute of Wilson Center, centro de estudos sobre o Brasil sediado em Washington. Oficialmente, Dilma gastou R$ 318 milhões. Especialistas calculam que o gasto chegou RS 1,3 bilhão.

A palestra de Gilmar foi sobre o uso de caixa dois nas campanhas brasileiras – dinheiro não declarado à Justiça que empresários doam e que políticos usam para se eleger. Muitas vezes, parte desse dinheiro simplesmente é embolsada por quem o recebe.

E com frequência, trata-se de dinheiro que resulta de superfaturamento de obras públicas. Quer dizer: dinheiro público, que devolvido a partidos e a políticos serve para financiar campanhas ou simplesmente enriquecê-los.

A Justiça Eleitoral apura se dinheiro de propina da Petrobras alimentou a campanha de Dilma. Se concluir que sim, a chapa Dilma-Temer poderá ser impugnada. Para Dilma não mudará nada, mas Temer seria afastado da presidência da República.

Segundo Gilmar, só no próximo ano haverá uma decisão a respeito. “O tribunal vai ter de fazer uma avaliação dentro de um quadro de grande responsabilidade institucional, porque de fato já temos instabilidade de sobra no nosso contexto”, afirmou.

Caso Temer perdesse o cargo, caberia ao Congresso eleger o substituto dele que governaria até a eleição do próximo presidente em 2018. Mas é improvável que Temer seja afastado, a julgar pelo que se ouve em Brasília de ministros do Supremo Tribunal Federal.

O mais certo é que aconteça o que Gilmar insinuou ao observar:

- Independentemente do resultado e da posição que o tribunal venha a assumir, esse caso vai ser um caso histórico, pois vai nos permitir saber o que foi feito na campanha de 2014. E vai nos permitir dizer 'isso não se pode mais fazer'.

A fábrica de filhotes nazistas

A juventude sob Hitler não podia ser boa. De 1933 a 1945, os jovens alemães foram incorporados em massa à trituradora ideológica e militar do nazismo e muitos se tornaram autores dos crimes do regime. A cumplicidade genérica da juventude da Alemanha com seu Führer é indiscutível, mas também é verdade que esses meninos e meninas que ofereceram sua alma ao perverso ditador, seduzidos ou forçados, foram de alguma forma, e em maior ou menor grau, dependendo do caso, vítimas. Doutrinados até o indizível, coagidos, intimidados, despojados de sua infância e adolescência, arrancados de suas casas e escolas, muitas vezes entregues pelos próprios pais ao ogro da suástica, os jovens alemães foram usados pelos nazistas, que os tornaram sujeitos de um experimento social atroz, reservatório de suas ideias abomináveis e, em última instância, bucha de canhão para sua guerra com o mundo.


A principal ferramenta usada pelos nazistas para se apropriar dos jovens alemães e unificá-los em seu credo foi a Juventude Hitlerista (JH), que recebeu o nome em 1926 a partir de formações anteriores, inicialmente ligada às SA (unidades de choque do partido nazista). Na JH serviram 9 de cada 10 jovens alemães. De tipo paramilitar (com belos uniformes – de cor negra e mostarda – e insígnias próprias), era destinada a meninos com idades entre 14 e 18 anos. Para os menores, de 10 a 14 anos, havia um ramo infantil, o Deutsches Jungvolk (DJ), que desembocava naturalmente na JH e cujos membros eram chamados de pimpfe. Quanto às meninas, existia a seção feminina da JH, a Liga das Meninas Alemãs, com seu próprio ramo para as meninas. Todas usavam saia azul-marinho e uma camisa branca, muito à la mode, de acordo com o gosto nazista, e usavam tranças ou coques.

Uma das meninas mais famosas egressas da JH foi Irma Grese, a Bela Besta, a terrível guardiã de campos como Ravensbrück, Auschwitz e Bergen-Belsen. A JH tornou-se a única organização juvenil da Alemanha a partir de 1936, quando foram proibidas todas as outras. A filiação passou a ser obrigatória por lei em 1939 para todos os adolescentes com idade entre 10 e 18 anos. Da JH, que passou de 100.000 membros quando Hitler chegou ao poder (1933) para dois milhões no fim de 1933 e 5,4 milhões em dezembro de 1936, se saía para ingressar no partido (nazista), na Frente Alemã do Trabalho, nas tropas de assalto ou na SS (principal organização militar, policial e de segurança do Reich), ou no serviço da Waffen-SS (corpo de combate de elite da SS) e na Wehrmacht (Exército). No início de 1939, 98,1% dos jovens alemães pertenciam à JH. Entre os que escaparam de suas garras, com grande risco, porque havia pesadas sanções (recorria-se a Heinrich Himmler e sua polícia e à SS para fazer cumprir o serviço), figurava aquele que depois seria escritor e prêmio Nobel de Literatura, Heinrich Böll, com 16 anos em 1933. No entanto, outro autor e também prêmio Nobel, Günter Grass, fez um percurso clássico completo: pimpfe aos 10 anos, auxiliar antiaéreo aos 15 e artilheiro de carro de combate da Waffen-SS aos 17.

Nosso olhar se dirige a esses jovens frequentemente com uma perturbadora ambivalência. Ficamos espantados e indignados com imagens de jovens multidões ruidosas e entusiasmadas diante do líder, alinhadas em ordem militar, desfilando com arrebatamento marcial, cantando com endemoniada pureza diabólica (como na icônica e impressionante cena de Tomorrow Belongs To Me, do filme Cabaret); os mais fanáticos, incorporados ao combate nas divisões mecanizadas de elite ou na luta política e racial: a juventude que queima livros, persegue e maltratada –e até assassina –os opositores e os judeus nas ruas (ou nos campos de concentração), denuncia seus próprios vizinhos e até mesmo seus pais para a Gestapo. Tudo isso indica que este foi um conflito intergeracional. A outra face é a da foto (que foi capa da Life) do soldado de 15 anos, enfiado num casaco muito grande, chorando como o que é, um menino, depois de sua captura em 1945 pelos norte-americanos. Ou a dos 20 soldadinhos condecorados com a Cruz de Ferro, um deles um “pequeno herói” (como foi batizado pela propaganda) de 12 anos, recebidos no bunker da chancelaria do Reich no dia 19 de março de 1945 por um Hitler já espectral, mas ainda capaz de enviá-los para a morte mais absurda e inútil diante dos tanques russos depois de lhes dar um beliscão na bochecha. “Não voltarão a ser livres pelo resto de suas vidas”, profetizara em 1938 o grande flautista de Hamelin da Alemanha.

O historiador nascido na Alemanha, mas naturalizado canadense Michael H. Kater (Zittau, 1937), um especialista na cultura do Terceiro Reich, doutor em História e Sociologia pela Universidade de Heidelberg e professor da Universidade de York (Toronto, Canadá) acaba de publicar um livro imprescindível sobre a JH, organização sobre a qual girou especialmente o esforço dos nazistas para se aproveitar dessa geração alemã. Hitler Youth(Juventude hitleriana) é uma obra tão exaustiva quanto apaixonante e comovente que combina a investigação científica com o relato humano – explica que os acampamentos da JH, onde proliferava o sadismo, eram um mau lugar para molhar a cama. E instala em seu centro uma profunda reflexão moral.

“As organizações juvenis, como as Wandervögel, existiam na Alemanha desde a era guilhermina e o início do século”, diz Kater, “elas se voltaram mais para a direita, de acordo com o espectro político geral; na última metade da República de Weimar (1925-1932), quando Hitler estava em alta, membros de grupos de juventude nacionalista simpatizavam secreta ou abertamente com o NSDAP, o partido nazista, embora menos do que com a JH, que teve um início fraco e tardio. À medida que os padrões democráticos foram derrubados, uma estrutura com um Führer passou a ser aceitável entre a juventude alemã, e isso facilitou para que todos os grupos juvenis fossem incorporados à JH. Isso aconteceu em etapas. Aqueles que resistiram foram forçados a fazê-lo em 1935”. Uma das chaves do sucesso da Juventude Hitlerista é que ela se apresentava como excitante, moderna e progressista.

Que conceito Hitler tinha da juventude? “No começo, realmente nenhum”, responde o historiador. “Não estava interessado nos jovens porque não podiam votar. Eventualmente Hitler se convenceu de que criar jovens seguidores não era uma má ideia: um movimento milenar deveria ter uma retaguarda”.

Ante a imagem do jovem soldado da Life e a de dois meninos do bunker de Hitler, Michael H. Kater deixa claro seus sentimentos: “Pessoalmente sinto uma imensa compaixão por eles. Para mim, nesse tempo, eram obviamente meninos inocentes que tinham sido explorados por políticos fascistas criminosos”.