terça-feira, 8 de novembro de 2016

O amanhã não pode ser apenas inverno

A escavação que fazemos da vida é para trás. Seja sobre o indivíduo, seja sobre a sociedade, seja sobre o mundo. Vamos arrancando as camadas de acontecimentos, alguns com uma daquelas escovinhas de arqueólogo, cuidando para não apagar um pedaço no processo, outros arrancando lascas. E tentando dar sentidos, seja para um trauma de infância, seja para o holocausto judeu, seja para o impeachment de uma presidente ou o suicídio de outro. Sentidos que se ressignificam constantemente a partir de novos indícios, interpretações e também circunstâncias. Compreendemos o presente a partir da investigação viva – e polifônica – do passado. Como chegamos até aqui, seja uma pessoa, um país, uma organização, um partido ou um grupo terrorista, implica uma obviedade: a análise do percurso. Mas penso que, para compreender o mal-estar deste momento, e não só no Brasil, é preciso olhar também para outro lugar: é preciso compreender que o futuro nos constitui tanto quanto o passado.

Não o futuro que efetivamente será, aquele que em seguida vira pretérito sujeito a interpretações múltiplas. Mas a ideia de futuro, esta que nos move no presente. E, por nos mover, influencia de modo decisivo o que somos neste momento. Nosso presente é tão impactado pelo futuro que somos capazes de imaginar quanto pelo passado que tentamos compreender. Em parte, é o futuro que alinhava o mal-estar sentido hoje por tantos em tantos lugares. Precisamos muito de uma paleontologia dos fósseis do amanhã. Ou de uma psicanálise dos traumas futuros.


Como imaginar, por exemplo, que a Belle Époque se tornou o que foi sem o futuro que seus protagonistas eram capazes de imaginar? O futuro que se desenhou no concreto, pelo menos na Europa, foi a Primeira Guerra Mundial (1914-18) e sua matança pavorosa. Mas havia um outro futuro, cheio de otimismo e potência, um que se imaginou no presente. E que criou realidades no presente, influenciando fortemente aquele momento e fazendo dele o que foi.

Ou, por outro ângulo, como teria sido possível a ascensão de Adolf Hitler na Alemanha dos anos 30, e tudo o que aconteceu depois, sem que uma parcela significativa dos alemães médios tivesse passado a acreditar num futuro com ainda mais perdas, humilhações e medos do que já tinham sofrido após a derrota na guerra? Os culpados, aqueles que são responsabilizados pelas dificuldades do presente, não vêm apenas do passado e de fatos concretos. Mas do futuro e de nenhum fato para além da construção de uma ideia na qual se passa acreditar como fato. Encarnou-se um inimigo nos judeus muito mais por um futuro forjado numa construção complexa do que por um passado real. E o que de fato aconteceu no futuro todos conhecemos hoje como Holocausto.

O suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, e sua carta-testamento podem ser lidos pelo passado, mas também podem ser lidos pelo futuro que o então presidente acreditou poder impactar com esse gesto radical. Vargas matou-se também por acreditar que estaria mais presente no futuro não estando do que se estivesse.

O quanto de nossas decisões individuais no presente não são tomadas em nome de um futuro sobre o qual temos muito pouco controle mas acreditamos que será tal qual imaginado – ou temido – por nós? O que não acontecerá, mas é vivido por cada um como se de fato acontecesse, acontece em certa medida. Ou, dito de outro modo, para aquele que acredita numa ideia de futuro, este futuro ideado é real no único momento que pode ser: no presente. E o conforma.

É difícil dimensionar o impacto de uma ideia de futuro sobre o mal-estar disseminado deste momento. Mas me arrisco à hipótese de que o futuro nunca teve uma repercussão tão profunda como neste presente expandido. Talvez a frase que melhor expresse isso na ficção é a da série de TV Game of Thrones(HBO), baseada nos livros de George R. R. Martin: “The winter is coming”. O inverno está chegando...

O futuro de hoje é uma distopia. O que será de fato ninguém pode dizer que sabe. Mas sabemos que uma ideia distópica de futuro move esse presente. No Brasil, esta ideia se impõe depois de um período de crença de que o Brasil tinha superado um patamar simbólico, uma espécie de ranço histórico, e que seguiria avançando. A melhor síntese é o discurso de Lula, em 2009, no dia em que o Brasil foi escolhido para sediar os jogos olímpicos. Como já escrevi neste espaço, aquele é um discurso sobre o eterno país do futuro que finalmente havia chegado ao presente – e este presente era grandioso. Insisto na importância desse discurso porque ele é precioso para compreender o futuro que efetivamente chegou.

Lula consumou, naquele momento, uma alquimia: a ideia de futuro que movia o presente se tornou, em seu discurso, o próprio presente. Esse futuro do presente deveria ter se mostrado em toda a sua glória apenas alguns anos mais tarde: na Copa de 2014 e na Olimpíada de 2016. Mas o futuro do futuro, como se viu, foi bem outro.
Leia mais o artigo de Eliane Brum

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