sexta-feira, 2 de julho de 2021

Mito no lixo


Não tem que ter mito, gente em missão divina. Tem que ter uma pessoa que seja menor do que o projeto e que cumpra o projeto
Santos Cruz, general ex-ministro da Secretaria de Governo

Suspeitos de corrupção agora têm patente

O número de militares envolvidos neste episódio da corrupção na compra de vacinas chama atenção. São coronéis e tenentes- coronéis envolvidos nesta negociação suspeita. Militares levados por Pazuello para supostamente moralizar o Ministério da Saúde.

Elcio Franco, coronel e segundo no comando do Ministério da Saúde na época de Pazuello, foi citado por Luiz Paulo Dominguetti , que é cabo da PM, em seu depoimento à CPI. O tenente-coronel Marcelo Blanco, que também era do departamento de logística e participou do jantar em que se tratou da propina. Com outro coronel, ele era do Ministério, foi exonerado e abriu uma empresa de representação de medicamentos recentemente. Os fatos mostram que o coronel Blanco permanece com poderes no Ministério. O seu sócio, também coronel, deve ser o quarto elemento presente naquela mesa.


Mudaram os personagens: agora eles têm patente. E isso aumenta a mancha nas Forças Armadas, e nas corporações militares que a adesão ao Governo Bolsonaro está produzindo.

O mais importante no depoimento do cabo Dominguetti foi a confirmação da propina pedida pelo ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias. Isso confirma o depoimento do servidor Luis Ricardo Miranda, que apontou Dias como um dos supostos autores da pressão atípica que sofreu para assinar o contrato de vacina Covaxin.

A operação de ontem foi claramente para tentar tirar a acusação do Palácio do Planalto, desmoralizando o deputado Luís Miranda com uma gravação. Mas não teve sucesso.

A tentativa de fazer de Domingueti um cavalo de tróia não deu certo e a bomba continua na sala do presidente. Isto porque há muita ligação com Dias, principal investigado da corrupção. Ele foi indicado pelo presidente para cargo na Anvisa e impediram que ele fosse exonerado.

Mesmo assim, em sua live de quinta-feira, Bolsonaro acusou Luís Miranda falando do áudio. O presidente só não mostrou o recuo do PM, dizendo que foi induzido ao erro.

Se eles quisessem fazer algo sério, quando aparecesse um intermediário para vender Astrazeneca, teriam que chamar a Fiocruz para participar desta reunião. A Fiocruz é a fabricante no Brasil da vacina e, em fevereiro, estava com dificuldade de ter insumos, mas já tinha um acordo, inclusive de transferência de tecnologia. Essa história é muito estranha e é importante que a CPI continue investigando e esclareça.

A CPI, contudo, não pode abandonar as outras trilhas de investigação. Ontem circulou um vídeo de Ricardo Barros admitindo com todas as letras que o presidente apostava na tese da imunidade de rebanho. Esta estratégia de como tratar a política pública de saúde é criminosa e levou a muitas mortes a mais. A comissão tem que apurar a corrupção e deixar claro que o presidente da república optou por uma estratégia como gestor e governante que levou ao aumento das mortes no Brasil.

Brasil em cash

 


Tirar máscara de criança (ou a tirania do egoísmo)

Na quinta-feira passada, numa aglomeração eleitoreira que promoveu no Rio Grande do Norte, o presidente da República segurou um garotinho no colo e, num gesto obsceno, abaixou-lhe a máscara. A cena estarrece pelo que tem de imoral e abusivo. A mão do poder, com a displicência de um aceno, expõe um inocente ao contágio. Nota-se um quê de pouco-caso. O chefe de Estado parece à vontade para desnudar o rosto infantil, sem sinal de respeito, sem a menor cerimônia; simplesmente puxa para baixo peça que cobre a boca e o nariz da criança.

O menino, que, vestindo uma camisa amarela, saiu por aí para acabar num abraço genocida do governante, representa o Brasil inteiro. O vídeo é o atestado definitivo da miséria ética em que a Nação se deixou encarcerar. Aquilo somos nós. O País foi sujeitado pelo egoísmo autoritário – o egoísmo de quem manda. O único valor moral que esse autoritarismo reconhece é uma noção bastante primária de “liberdade”: a liberdade dos outros não existe, só o que importa é a “minha” liberdade. Os outros serão livres apenas para concordar comigo e, caso se atrevam a discordar, serão declarados “inimigos”: maus brasileiros, impatriotas, mesmo que não tenham mais do que 6 ou 7 anos de idade.


Essa fórmula de moralidade é bruta, estulta, opaca, rasa e inculta. Trata-se de um código de conduta prepotente e xucro, segundo o qual “eu sou livre para não usar máscara e qualquer pessoa que use máscara na minha frente está atentando contra a minha liberdade”. Eis por que o presidente da República recebe como um desaforo a presença de qualquer pessoa que vista uma máscara na frente dele, mesmo quando essa pessoa é uma criança frágil.

Estamos, é claro, falando da liberdade dos que não admitem a liberdade do outro – ou da liberdade daqueles que se armam para acabar com a liberdade de todos. Estamos falando da extrema direita antidemocrática, essa que no Brasil responde pelo nome de bolsonarismo, que sequestrou a palavra liberdade dos dicionários. Na cabeça desse pessoal, só eles têm o direito de falar em liberdade, pois só eles defendem a liberdade. “Eu sou livre para não usar máscara”, grita um. “Eu sou livre para não tomar a vacina”, secunda o bajulador. Não lhes ocorre que a questão possa ter outras dimensões. Eles não dispõem de aparato cognitivo para tanto. Basta ver e ouvir o presidente da República, que não alcança nenhuma outra dimensão além da encerrada no individualismo mais torpe.

Não ocorre a nenhum deles que a liberdade do brucutu que repudia a máscara não pode valer mais que o direito do outro de não ser contaminado. Eles não enxergam o sentido do respeito pela outra pessoa. Não conseguem compreender. Não percebem que, se quisermos viver em sociedade, a liberdade de um indivíduo – digamos, a liberdade de ser estúpido – não pode ser posta acima da liberdade que os outros têm de se proteger contra a pandemia. Não entendem que a liberdade individual não inclui o direito de oferecer água envenenada para os semelhantes, assim como não inclui o direito de sair por aí aspergindo coronavírus sobre o rosto de crianças indefesas.

No fundo, eles não divisam o sentido da palavra liberdade além da fumaça da pólvora. Não obstante, são eles que nos governam, arrancando de nós o pouco que temos de proteção. Que façam isso em nome da liberdade é apenas mais um capítulo da nossa tragédia imerecida.

Segundo esse jeito de pensar – que, melhor dizendo, é um jeito de não pensar, pois, se pensasse, não teria o jeito hostil que tem –, a liberdade de um começa onde termina a liberdade do outro, e isso é tudo. Segundo esse credo (cruz, credo), só é livre quem agride e confronta a liberdade do outro – e estamos conversados. Nisso consiste o primarismo atroz desse tal jeito de (não) pensar, segundo o qual o exercício da liberdade é uma guerra sangrenta de hordas contra hordas.

No entanto, se quisermos ter democracia, precisamos pensar além disso, ou não seremos capazes de compreender que a minha liberdade começa não onde a liberdade do outro termina, mas justamente onde a liberdade do outro também começa (salve, Cornelius Castoriadis). Eu só sou livre de verdade, livre além das minhas estreitezas individualistas, se o outro também for livre, na mesmíssima medida em que eu só sou saudável se este outro, ao meu lado, ou aquele outro, distante de mim, forem, eles também, saudáveis. Eu só sou livre, no fim das contas, se o mundo for livre junto comigo. A mísera dimensão individualista não dá conta da grandeza da liberdade. Aliás, o individualismo não dá conta nem mesmo de entender que, contra essa pandemia, não existe imunização individual; a imunização individual só tem valor porque realiza a imunização coletiva, que é o único patamar sanitário realmente seguro.

Se quisermos ter democracia, precisamos saber que uma sociedade não é um rebanho de engorda num pasto aberto à custa de desmatamento. Só sou livre se me libertar da ignorância. Eu só sou livre se souber que, como autoridade pública, não tenho o direito de remover uma só peça dos trajes de uma criança.

Só imbecil nega a incompetência

Acredito que falhamos. Temos um grande número de pessoas que morreram, e isso é terrível. É algo que todos nós sofremos juntos. O povo sueco tem sofrido enormemente, em condições difíceis
Carl XVI Gustaf , rei da Suécia , que tem até agora 14.630 mortos por covid 19

Não fica um, meu irmão

Foi o general Augusto Heleno quem aplicou ao Centrão a trilha sonora celebrizada pelo Exporta Samba na convenção que escolheu Jair Bolsonaro candidato a presidente da República pelo PSL. “Se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”, cantou o general, todo animadinho, ao microfone. A plateia veio abaixo. Eu estava lá para fazer uma reportagem e vi, mas não seria preciso ter testemunhado para citar a cena de memória. Está no YouTube para quem quiser conferir.

É uma lembrança do tempo em que os bolsonaristas se sentiam no direito de gritar “eu vim de graça” num centro de convenções lotado, promovendo a arauto da verdade e da ética um grupo de militares que louvava a ditadura e hostilizava a imprensa, as minorias e os adversários.

No meio do povo, muitos dos que entrevistei se diziam arrependidos de ter votado em Lula e Dilma, sentindo-se traídos pelos escândalos de corrupção dos governos petistas. Achavam, então, que votando em Bolsonaro acertariam a mão.

Esses arrependidos estavam entre os que mais aplaudiam Heleno quando ele disse: “O Centrão é a materialização da impunidade. O primeiro ato do presidente que for eleito carimbado de Centrão vai ser uma anistia ampla, geral e irrestrita”.

E eis que chegamos a 2021 no seguinte cenário: o maior líder do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), é presidente da Câmara dos Deputados com o apoio empenhado de Bolsonaro, que liberou bilhões em emendas parlamentares para elegê-lo. Há poucos dias, Lira comandou na Câmara a votação de mudanças que restringem o alcance da Lei de Improbidade Administrativa ao ponto de ela ter sido apelidada de “lei da impunidade”.


Outro chefe desse conglomerado político-fisiológico, o deputado federal Ricardo Barros (PP-PR) — que já apoiou Fernando Henrique, Lula, Dilma Rousseff, foi ministro de Michel Temer e agora é líder de Jair Bolsonaro — está enredado até o último fio de cabelo nas denúncias de cobrança e oferta de propina nas negociações para compra de vacina pelo governo.

Jair Bolsonaro foi avisado há três meses da pressão mais do que suspeita que os apadrinhados de Barros e os coronéis do Ministério da Saúde faziam sobre o servidor público Luis Ricardo Miranda. Quem estourou tudo não foi nenhum oposicionista, e sim o bolsonarista inveterado, irmão do servidor e também deputado Luis Miranda (DEM-DF).

E o presidente que combateria a corrupção? Mandou apurar o caso? Chamou Ricardo Barros à fala? Demitiu seus apadrinhados? Nada disso. Mesmo deixando claro que sabia que aquilo tudo era “rolo” de seu líder na Câmara, Bolsonaro o presenteou com um mimo: a nomeação da mulher, Cida Borghetti, para um cargo no conselho de Itaipu.

Mas não acabou aí. Nesta semana, vieram à tona novas denúncias. Nelas, fica ainda mais claro que o grupo de Barros na Saúde não era composto apenas de seus apadrinhados, como o diretor de logística Roberto Dias, mas também de vários militares, fardados e ex-fardados, como Eduardo Pazuello e Jair Bolsonaro.

Segundo um intermediário que ofereceu ao governo 400 milhões de doses de AstraZeneca contou à repórter Constança Rezende, da Folha de S.Paulo, no mesmo encontro em que Dias cobrou propina de US$ 1 por vacina estava um tenente-coronel chamado Marcelo Blanco, anotando números e fazendo contas.

Os Mirandas já haviam comprometido em seus relatos outro tenente-coronel, Alex Lial Marinho, também nomeado por Pazuello para o ministério. Elcio Franco, ex-secretário executivo, se apressou a negar que houvesse qualquer irregularidade e a jogar a sujeira para debaixo do tapete.

Quanto mais a CPI avança, mais fica claro que o Centrão formou um consórcio com os militares na Saúde, agindo como se não houvesse amanhã enquanto milhares de pessoas sucumbiam à Covid-19 em hospitais Brasil afora.

O general Heleno é hoje ministro no Palácio do Planalto. O que será que pensa disso tudo? No fim de maio, ele desdisse na Câmara dos Deputados tudo o que falara lá atrás sobre o Centrão: “Naquela época era uma situação. A evolução de opinião faz parte da vida do ser humano. Isso aí faz parte do show, do show político”.

No show político de Jair Bolsonaro, é normal aceitar cheque de acusado de rachadinha, acobertar ministro investigado por autorizar exportação de madeira ilegal, fechar os olhos para denúncias de corrupção em compra de vacinas, preocupar-se mais em perseguir quem aponta o malfeito do que quem o pratica.

No show político do governo Bolsonaro, a morte de quase 520 mil brasileiros é mero efeito colateral. No show político de Jair Bolsonaro, nenhuma trilha sonora cai tão bem quanto a do general Heleno de 2018.

Não fica um, meu irmão.

Ação contra Bolsonaro avança em Haia, e indígenas querem denunciá-lo por genocídio e por ecocídio

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) apresentará em julho uma denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro por genocídio e ecocídio perante o Tribunal Penal Internacional (TPI). “A APIB reuniu e analisou todos os atos praticados por Bolsonaro contra os povos originários desde o início de seu Governo e consideramos que existem elementos concretos para deflagrar uma investigação por parte do TPI”, afirma ao EL PAÍS Luiz Eloy Terena, advogado e coordenador jurídico da APIB. Na última quarta-feira, 23 de junho, uma comissão internacional de 12 juristas impulsionados pela sociedade civil tipificou o ecocídio como um crime contra o conjunto da humanidade, mas sobretudo contra o planeta e pretende incorporá-lo ao TPI.


Terena argumenta que Bolsonaro descumpre a Constituição de 1988, que garante a proteção dessas comunidades e o direito aos seus territórios. “Ele não só inviabiliza a demarcação de nossas terras como também a proteção das comunidades com áreas já garantidas por lei, ao incentivar a presença de grileiros, madeireiros e garimpeiros ilegais.” O especialista acrescenta que o direito ao território e a política de proteção ambiental são aspectos fundamentais para formalizar a denúncia por ecocídio, um crime no qual o Brasil se enquadra, segundo ele: “Não há como falar de proteção aos povos indígenas sem garantir o território. É isso que inviabiliza a sobrevivência física e cultural dos nossos povos. E não são apenas os indígenas os sujeitos de direito, mas os rios, os lagos, a fauna e a flora de nossos territórios e, na nossa cosmovisão, até os espíritos encantados que habitam esses espaços”, explica.

A denúncia da APIB se somará a outra feita em 2019 pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) e pela Comissão Arns, formada por ex-ministros de vários governos e intelectuais brasileiros para atuar em defesa dos direitos humanos, que relataram à instituição estabelecida em Haia, nos Países Baixos, indícios de crimes contra a humanidade e incitação ao genocídio de povos indígenas praticados por Bolsonaro. Na ocasião, o avanço do desmatamento e os incêndios na Amazônia foram centrais para a elaboração do caso. Em dezembro de 2020, a Procuradoria do TPI informou que essa denúncia está formalmente sob avaliação preliminar de jurisdição, sendo a primeira vez que um caso desse tipo contra um presidente brasileiro avança no órgão e não é arquivada. “O cenário atual já é histórico e inédito. Na hipótese de a investigação ser aberta, seria uma revolução, porque não estamos falando de responsabilidade do Estado, mas da responsabilização de indivíduos, que podem sofrer condenação pela prática desses crimes”, comenta Eloísa Machado, advogada do CADHu.

O TPI permite que denúncias já apresentadas sejam atualizadas ao longo do processo, e é isso que o CADHu e a Comissão Arns pretendem fazer, anexando fatos referentes à “negligência na gestão da pandemia de covid-19″, doença que ameaça até os indígenas isolados, e os recentes ataques de garimpeiros a comunidades dos povos Yanomami e Munduruku, que, segundo ambas entidades, são apoiados pelo Governo Federal. “É juridicamente confortável falar em crimes contra a humanidade e genocídio da comunidade indígena quando temos esse cenário”, ressalta Eloísa Machado. De acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, 728 indígenas faleceram por covid-19, sem considerar os casos e óbitos entre os indígenas que vivem em zonas urbanas. Já a APIB registra 1.126 óbitos entre os povos originários.

Ainda que o processo continue avançando e que Bolsonaro tenha um julgamento e venha a ser condenado por crimes previstos no Estatuto de Roma (que institui a Corte Internacional de Justiça), isso dificilmente seria concluído durante o exercício de seu mandato na Presidência: pelo histórico do TPI, a responsabilização de chefes ou ex-chefes de Estado nessa jurisdição costuma demorar cerca de uma década. Prisão por até 30 anos, o confisco de bens e reparações, como pedidos de desculpa e indenizações estão entre as possíveis penas na hipótese de condenação.

Em julho do ano passado, uma coalizão de mais de 60 sindicatos e movimentos sociais ―a maioria deles de profissionais de saúde, sob a liderança da Rede Sindical UniSaúde― levou outra denúncia ao Tribunal de Haia, pedindo a condenação do presidente brasileiro por genocídio.

Para além do TPI, as denúncias contra Jair Bolsonaro ganham, cada vez mais, a atenção da comunidade internacional. Alice Wairimu Nderitu, assessora do secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas) para a prevenção de genocídio, citou o Brasil pela primeira vez ao falar do assunto na segunda-feira, em uma reunião do Conselho de Direitos Humanos da organização, em Genebra. “Na região das Américas, estou particularmente preocupada com a situação dos povos indígenas. No Brasil, Equador e outros países, peço aos governos que protejam as comunidades em risco e garantam a responsabilização pelos crimes cometidos”, disse Nderitu. Essa foi a primeira vez que o país foi citado na ONU atrelando-o a genocídio.

“Nunca vivemos uma situação como esta, de chegar ao triste ponto de precisar denunciar um presidente brasileiro à Justiça internacional. Sabemos que o processo no TPI é longo, mas nosso objetivo justamente era trazer o olhar da comunidade internacional para o que está acontecendo aqui”, comenta Juliana Vieira dos Santos, advogada da Comissão Arns. Ela acredita que o Governo Bolsonaro sistematizou uma “política anti-indigenista” no país.

Denúncias como as apresentadas contra Bolsonaro podem ser levadas à Justiça internacional quando se considera que as autoridades jurídicas do próprio país não têm capacidade de apurar ou julgar tais irregularidades. Para o TPI, as organizações denunciantes alegaram que “não há sinalização de responsabilização por parte dos tribunais nacionais”. A advogada Juliana Vieira dos Santos, no entanto, é mais enfática: “Acionar a jurisdição internacional porque as autoridades competentes no país não quiseram fazer seu papel. O próprio Supremo [Tribunal Federal] não tem conseguido proteger as populações indígenas, porque se tem toda a máquina do Executivo se movimentando contra elas.”

Santos lembra que qualquer denúncia contra um presidente da República deve ser encaminhada pela Procuradoria Geral da República —atualmente nas mãos de Augusto Aras, alinhado com Bolsonaro. “Há essa armadilha do presidencialismo de coalizão que contamina outras instituições. É por isso que o Congresso não consegue abrir um processo de impeachment, por exemplo”, continua a advogada.

É por isso que ela e outros denunciantes consideram que o TPI tem um desafio à frente caso decida levar adiante o caso de genocídio contra Bolsonaro: terá que voltar seu olhar para um país de renda média, com uma Constituição em vigor e sem um conflito deflagrado, quando está acostumado a investigar situações em países pobres e em guerra ou sob regimes ditatoriais. “O TPI é acusado de ser seletivo e de não investigar países grandes ou poderosos, mas essa é uma oportunidade de mostrar que não é assim”, diz Eloísa Machado. Como precedente, ela cita a decisão em 2020 de investigar a atuação de tropas dos Estados Unidos no Afeganistão. “No caso do Brasil, o ataque sistemático aos povos indígenas tem chamado a atenção”, conclui ela, esperançosa.

O governo Bolsonaro matou nosso porteiro

Adriano, 49 anos, contava os dias para se vacinar. No dia tão aguardado, semana passada, acordou mal e tomou injeção contra dor. O teste deu positivo para Covid. Foi internado e estava consciente, com máscara de oxigênio. Intubado na segunda, morreu na terça, com trombose pulmonar. O coração parou e os médicos não conseguiram reanimar o chefe dos porteiros que vivia rindo e morava com a família no prédio do Leblon desde a virada do século.

Se Adriano fosse inglês, francês, português, italiano, espanhol, alemão, americano, provavelmente estaria vivo e não teria deixado uma família repentinamente órfã, sem teto e sem chão. Em todos os países que investiram a tempo na compra de vacinas de diversos fabricantes, os cidadãos de 49 anos já foram há muito imunizados com as duas doses ou com a dose única da Janssen. O Brasil não é pobre. Tem o segundo Congresso mais caro do mundo. 

Mas Bolsonaro sempre foi contra vacinas. Contra máscaras. Contra a vida. Faz propaganda de remédios ineficazes. Propaga o vírus. Desinforma. Fez uma bagunça colossal no Ministério da Saúde. Menospreza o luto. Mesmo beneficiado por observar antes a catástrofe no mundo, o Brasil de Bolsonaro não se preparou para evitar a carnificina. Ao contrário.

A omissão fez o total de mortos explodir em 2021. É aterrador, leia e releia: em 2020, morreram 195 mil brasileiros de Covid. Nos primeiros seis meses deste ano, até ontem, morreram mais 323 mil. Esse número deveria ser suficiente para aprovar o impeachment do presidente. A cada um minuto e meio, dois brasileiros ainda morrem de Covid.

O governo Bolsonaro matou nosso porteiro-chefe. Adriano perdeu a corrida contra o tempo. No dia em que se vacinaria, começou a última semana de sua vida. Paraibano, casado com Rosa, pai de Yasmin, 25 anos, e de Pedro, 16, tricolor doente, José Adriano da Silva sabia mais servir do que chefiar. Era prestativo demais da conta. 

>Era de Araçagi, uma cidade no Agreste com 18 mil habitantes. O nome, tupi, vem do Rio dos Araçás, fruto típico da região. A mãe de Adriano morreu no ano passado de Covid. O pai, vivo, está inconsolável, não escondia que Adriano era o preferido dos oito filhos, o que mais lhe dava carinho, o que mais o ajudou na vida, enviando dinheiro todo mês.

A história de Adriano é bem brasileira e era bem-sucedida. Veio para o Rio tentar a vida, foi zelador, faxineiro e subiu a chefe dos porteiros. Aqui conheceu a piauiense Rosa, trazida de Teresina por uma família para trabalhar como babá. O casal tinha pouco mais de 20 anos quando nasceu Yasmin. Moravam no playground. Adriano gostava do Fluminense, de churrasco, cerveja no botequim com os amigos, televisão, missa. Parecia feliz. Tinha diabetes, mas nem sabia. 

Rosa e os filhos estão com Covid branda. Ela sabe que não pode chorar muito, tem pressão alta, precisa ser forte. O filho adolescente diz que ela não pode morrer, porque só sobrou a mãe. Rosa quer voltar para a Paraíba porque “aqui em casa tem lembrança forte demais do Adriano”. Ele não volta mais, repete Rosa. O prédio está de luto.

Na terra da família Bolsonaro, do general Pazuello, da médica Nise Yamaguchi, do empresário Wizard, do deputado Ricardo Barros, do diretor Roberto Dias e de tantos outros que colocaram seus interesses à frente da vida, Adriano não é ninguém. Apenas mais um morto numa pandemia que poderia ser muito menos cruel. Não fossem cruéis e inescrupulosos nossos governantes e os congressistas que os apoiam.