sábado, 28 de outubro de 2023
A vitória dos néscios
Não nos deve surpreender que, a maior parte das vezes, os imbecis triunfem mais no mundo do que os grandes talentos. Enquanto estes têm por vezes de lutar contra si próprios e, como se isso não bastasse, contra todos os medíocres que detestam toda e qualquer forma de superioridade, o imbecil, onde quer que vá, encontra-se entre os seus pares, entre companheiros e irmãos e é, por espírito de corpo instintivo, ajudado e protegido. O estúpido só profere pensamentos vulgares de forma comum, pelo que é imediatamente entendido e aprovado por todos, ao passo que o gênio tem o vício terrível de se contrapor às opiniões dominantes e querer subverter, juntamente com o pensamento, a vida da maioria dos outros.
Isto explica por que as obras escritas e realizadas pelos imbecis são tão abundante e solicitamente louvadas - os juízes são, quase na totalidade, do mesmo nível e dos mesmos gostos, pelo que aprovam com entusiasmo as ideias e paixões medíocres, expressas por alguém um pouco menos medíocre do que eles.
Este favor quase universal que acolhe os frutos da imbecilidade instruída e temerária aumenta a sua já copiosa felicidade. A obra do grande, ao invés, só pode ser entendida e admirada pelos seus pares, que são, em todas as gerações, muito poucos, e apenas com o tempo esses poucos conseguem impô-la à apreciação idiota e ovina da maioria. A maior vitória dos néscios consiste em obrigar, com certa frequência, os sábios a atuar e falar deles, quer para levar uma vida mais calma, quer para a salvar nos dias da epidemia aguda da loucura universal.
Giovanni Papini, "Relatório sobre os homens"
Isto explica por que as obras escritas e realizadas pelos imbecis são tão abundante e solicitamente louvadas - os juízes são, quase na totalidade, do mesmo nível e dos mesmos gostos, pelo que aprovam com entusiasmo as ideias e paixões medíocres, expressas por alguém um pouco menos medíocre do que eles.
Este favor quase universal que acolhe os frutos da imbecilidade instruída e temerária aumenta a sua já copiosa felicidade. A obra do grande, ao invés, só pode ser entendida e admirada pelos seus pares, que são, em todas as gerações, muito poucos, e apenas com o tempo esses poucos conseguem impô-la à apreciação idiota e ovina da maioria. A maior vitória dos néscios consiste em obrigar, com certa frequência, os sábios a atuar e falar deles, quer para levar uma vida mais calma, quer para a salvar nos dias da epidemia aguda da loucura universal.
Giovanni Papini, "Relatório sobre os homens"
Homo sapiens sapiens: Gaza, o fracasso da espécie
Não posso deixar de me espantar. O que ouço e vejo é a razão da irracionalidade. O Egito abre um corredor humanitário em sua fronteira com Gaza para que entrem 20 caminhões com alimentos, água e medicamentos na Palestina, cuja população está bloqueada por decisão de Israel. A comunidade internacional, Nações Unidas, União Europeia, OTAN, demonstra satisfação. Os meios de comunicação comentam tal ato como um triunfo humanitário. Aplaudem e pedem mais trailers autorizados.
Enquanto isso, Israel convida para que a zona norte de Gaza seja abandonada, prolongando seus bombardeios. É o mundo de cabeça para baixo. Membros da espécie humana praticam o extermínio de seus semelhantes, com a anuência de outros seres humanos. Suas razões, sejam quais forem, demonstram o desprezo pela vida. A esta altura, alguém deve estar se perguntando, se já não fez isto, como chegamos até aqui?
Em vez de promover a paz, líderes mundiais estimulam a guerra, exigindo que suas regras sejam respeitadas. É preciso matar sem exagerar. Com argumentos canalhas, clamam que Israel tem o direito de se defender, concedendo uma licença para cometer o genocídio do povo palestino.
O que se diz de Israel serve para o genocídio dos povos originários e para as mais de 30 guerras ativas que sacodem o planeta. Não importa se você é um conservador, liberal, progressista ou da autodenominada esquerda democrática, todos confluem: é preciso salvar o capitalismo a qualquer preço, mesmo que isso signifique o fim da nossa espécie.
Para não cair em duplas ou triplas morais, falo do humano que nos faz humanos. Os milhares de migrantes mortos no Mediterrâneo deveriam ser um exemplo suficiente da desumanização que nos afeta.
Não se conhece espécie social que pratique a guerra, a competitividade, a exploração, estimule o ódio, a inveja e a desigualdade como parte de sua organização social. Também não há evidências de espécies cuja existência resulte no colapso de seu nicho ecológico. As crises de extinção são alheias à vontade dos seres vivos que habitam o planeta.
Agora, se nos atermos ao Homo sapiens sapiens, essa máxima não se aplica. Um ser que sabe que sabe, reflete e tem consciência de seus atos, acaba se esquivando de suas responsabilidades. O humano, a relação ética que une a natureza biológica e social, é negado em prol de justificar seus holocaustos. Refiro-me aos fatos.
Nos últimos 100 anos, o ser humano provocou duas guerras mundiais, lançou bombas atômicas sobre a população civil, desenvolveu armas químicas e biológicas com o objetivo de impor uma vontade, seja a favor de uma raça, de um deus ou uma razão cultural. Aviões, drones, submarinos, porta-aviões, tanques de guerra. Tecnologias de morte criadas para gerar terror, medo e submissão.
Os cidadãos do mundo protestam, levantam a voz, saem às ruas, pedem o fim das guerras, desnudando as vergonhas de seus dirigentes. No entanto, nada muda. Ouvidos surdos. A desumanização avança em ritmo acelerado. O verdadeiro vencedor do processo de desumanização é o complexo financeiro-industrial-militar. Na página digital Estrategias de Inversión, a jornalista Raquel Jiménez publica o atual artigo "As empresas armamentistas, as grandes beneficiadas do conflito entre Israel e Hamas na bolsa".
Desde a escalada do conflito palestino-israelense, dirá, quatro empresas estadunidenses viram subir os seus valores na bolsa e aumentar seus lucros. A Lockheed Martin recebeu mais de 5,7 bilhões de dólares em contratos com Israel. As ações da Raytheon Technologies sobem desde o dia 7 de outubro, 5,5%. A General Dynamics obtém um lucro de 9,3% e a Northrop Grumman, a quinta maior fabricante de armas do mundo, tem uma rentabilidade de 15,5%, em 10 dias.
Junto a isso, deve-se somar os altos retornos da companhia francesa Dassaut Aviation, com 8,3%; a britânica BAE Systems, a segunda maior contratista militar do mundo, com lucros de 9,6%, e as alemãs MTU Aero Engines e Rheinmetall AG, cujas ações demonstram uma alta de 4 e 15%, desde o dia 7 de outubro. Sem nos esquecer do grupo italiano Leonardo, que está com lucros anuais máximos.
A espécie humana fracassou. O que nos torna humanos, o reconhecimento do outro, a empatia diante do sofrimento, enclausurou-se em nome dos poderosos. Primo Levi, em sua Trilogia de Auschwitz, define a desumanização. É assim que o povo palestino deve se sentir hoje:
“Pela primeira vez, então, percebemos que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem. Em um instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível: uma condição humana mais miserável não existe, não dá para imaginar. Não temos nada nosso. (…) Vão nos tirar até o nome: e se quisermos mantê-lo, teremos que encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome, algo nosso, algo do que somos, permaneça (…). Na história e na vida, parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa: a quem já tem, será dado, de quem não tem, será tirado”.
Enquanto isso, Israel convida para que a zona norte de Gaza seja abandonada, prolongando seus bombardeios. É o mundo de cabeça para baixo. Membros da espécie humana praticam o extermínio de seus semelhantes, com a anuência de outros seres humanos. Suas razões, sejam quais forem, demonstram o desprezo pela vida. A esta altura, alguém deve estar se perguntando, se já não fez isto, como chegamos até aqui?
Em vez de promover a paz, líderes mundiais estimulam a guerra, exigindo que suas regras sejam respeitadas. É preciso matar sem exagerar. Com argumentos canalhas, clamam que Israel tem o direito de se defender, concedendo uma licença para cometer o genocídio do povo palestino.
O que se diz de Israel serve para o genocídio dos povos originários e para as mais de 30 guerras ativas que sacodem o planeta. Não importa se você é um conservador, liberal, progressista ou da autodenominada esquerda democrática, todos confluem: é preciso salvar o capitalismo a qualquer preço, mesmo que isso signifique o fim da nossa espécie.
Para não cair em duplas ou triplas morais, falo do humano que nos faz humanos. Os milhares de migrantes mortos no Mediterrâneo deveriam ser um exemplo suficiente da desumanização que nos afeta.
Não se conhece espécie social que pratique a guerra, a competitividade, a exploração, estimule o ódio, a inveja e a desigualdade como parte de sua organização social. Também não há evidências de espécies cuja existência resulte no colapso de seu nicho ecológico. As crises de extinção são alheias à vontade dos seres vivos que habitam o planeta.
Agora, se nos atermos ao Homo sapiens sapiens, essa máxima não se aplica. Um ser que sabe que sabe, reflete e tem consciência de seus atos, acaba se esquivando de suas responsabilidades. O humano, a relação ética que une a natureza biológica e social, é negado em prol de justificar seus holocaustos. Refiro-me aos fatos.
Nos últimos 100 anos, o ser humano provocou duas guerras mundiais, lançou bombas atômicas sobre a população civil, desenvolveu armas químicas e biológicas com o objetivo de impor uma vontade, seja a favor de uma raça, de um deus ou uma razão cultural. Aviões, drones, submarinos, porta-aviões, tanques de guerra. Tecnologias de morte criadas para gerar terror, medo e submissão.
Os cidadãos do mundo protestam, levantam a voz, saem às ruas, pedem o fim das guerras, desnudando as vergonhas de seus dirigentes. No entanto, nada muda. Ouvidos surdos. A desumanização avança em ritmo acelerado. O verdadeiro vencedor do processo de desumanização é o complexo financeiro-industrial-militar. Na página digital Estrategias de Inversión, a jornalista Raquel Jiménez publica o atual artigo "As empresas armamentistas, as grandes beneficiadas do conflito entre Israel e Hamas na bolsa".
Desde a escalada do conflito palestino-israelense, dirá, quatro empresas estadunidenses viram subir os seus valores na bolsa e aumentar seus lucros. A Lockheed Martin recebeu mais de 5,7 bilhões de dólares em contratos com Israel. As ações da Raytheon Technologies sobem desde o dia 7 de outubro, 5,5%. A General Dynamics obtém um lucro de 9,3% e a Northrop Grumman, a quinta maior fabricante de armas do mundo, tem uma rentabilidade de 15,5%, em 10 dias.
Junto a isso, deve-se somar os altos retornos da companhia francesa Dassaut Aviation, com 8,3%; a britânica BAE Systems, a segunda maior contratista militar do mundo, com lucros de 9,6%, e as alemãs MTU Aero Engines e Rheinmetall AG, cujas ações demonstram uma alta de 4 e 15%, desde o dia 7 de outubro. Sem nos esquecer do grupo italiano Leonardo, que está com lucros anuais máximos.
A espécie humana fracassou. O que nos torna humanos, o reconhecimento do outro, a empatia diante do sofrimento, enclausurou-se em nome dos poderosos. Primo Levi, em sua Trilogia de Auschwitz, define a desumanização. É assim que o povo palestino deve se sentir hoje:
“Pela primeira vez, então, percebemos que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem. Em um instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível: uma condição humana mais miserável não existe, não dá para imaginar. Não temos nada nosso. (…) Vão nos tirar até o nome: e se quisermos mantê-lo, teremos que encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome, algo nosso, algo do que somos, permaneça (…). Na história e na vida, parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa: a quem já tem, será dado, de quem não tem, será tirado”.
Esse algo é a dignidade. Por isso, luta-se.
Crianças não declaram guerra
Nas duas primeiras semanas de guerra no Oriente Médio, 20 jornalistas foram mortos. Merecem nosso reconhecimento por terem dado a vida fornecendo a matéria-prima para que possamos saber do que se passa no front e tentar entender o futuro deste conflito. Temos mais perguntas do que certezas. Creio que será assim por muito tempo. Não adianta colar nos aparelhos de tevê, ler os principais jornais do mundo, comprar livros – tudo o que conseguimos é uma visão parcial. Mesmo os especialistas que não vivem a realidade cotidiana da região têm dificuldades para interpretá-la fielmente.
Meus avôs vieram do Líbano, no princípio do século passado. Já tinham memória de conflitos religiosos. Minha avó tinha uma cruz tatuada no braço e nem sempre a vida foi fácil para os cristãos libaneses. Uma região de antigos conflitos.
No momento em que Israel se prepara para uma invasão de Gaza, tento me lembrar de outras guerras urbanas. Será como Faluja ou mesmo Mossul, no Iraque, onde o combate ao Isis superou as expectativas em mortos. Em Faluja, morreu tanta gente que os cemitérios não deram vazão e as pessoas eram enterradas nos jardins das casas. Mossul, além de superar tudo, ainda tinha uma enorme barragem com potencial de inundar o país.
Não creio que os exemplos anteriores possam ser avaliados mecanicamente. Gaza tem uma rede de túneis especialmente construída pelo Hamas. Neste momento, as informações indicam que de 15% a 30% das edificações já foram destruídas. A existência desses túneis pode resultar numa destruição que não deixará pedra sobre pedra.
Será o fim do Hamas? Naturalmente, o processo de destruição será explorado e a própria juventude árabe estará mais aberta a organizações violentas. Além do mais, alguns dirigentes do Hamas nem vivem em Gaza, preferem Doha, no Catar, um pequeno país com uma altíssima renda per capita anual, em torno de US$ 60 mil.
Em caso de vitória de Israel e ampla destruição do Hamas, quem governa a região? A Autoridade Palestina teria condição de fazê-lo, enfraquecida pela corrupção e pela falta de consultas eleitorais? O Hamas também não faz eleições desde 2006.
Há dois grandes temas que precisam ser avaliados antes e depois da invasão: a morte de civis e a morte de crianças.
Quando se diz que o Hamas não representa a Palestina, muitos não acreditam nisso em Israel.
Alguns artigos do Jerusalem Post questionam essa afirmativa. Acham que existe uma forte cumplicidade entre palestinos e o Hamas. Ainda que isso fosse verdadeiro, o problema é que 30% dos habitantes de Gaza são crianças e adolescentes. Eles não têm condições de questionar ou muito menos derrubar um governo indesejado.
Numa guerra assimétrica em que a propaganda tem um peso maior que as manobras militares, Israel corre um grande risco com as mortes entre os civis. Além disso, há as crianças. O Brasil fez o que pôde na ONU para atenuar a intensidade do conflito. Não conseguiu. Mas, na voz do presidente Lula, manifestou preocupação com as crianças. Para conseguir alguma coisa, talvez o País tenha de se concentrar num tema: as crianças merecem um enfoque especial.
Para começar, há aquelas que dependem de eletricidade nas incubadoras e podem morrer sem ela. Inúmeras atividades hospitalares dependem da gasolina, que não entra. É necessário abrir um corredor também para o combustível. O Hamas pode sequestrá-lo para fins bélicos? Se o fizer, matará as crianças e terá também de responder por isso. Será uma manobra desesperada e o combustível para tocar hospitais é mínimo, se encarado como suprimento bélico.
Há crianças raptadas pelo Hamas e crianças presas por Israel na Palestina. Surgiu um movimento para que fossem trocadas, e isso pode ser um caminho para que as crianças sejam afastadas do clima de hostilidade.
Mas creio que não bastará. Crianças precisam brincar. E não se brinca com bombas. Inclusive, no passado, uma das mais importantes campanhas contra bombas de fragmentação aconteceu porque ameaçavam as crianças, que as confundiam com brinquedos.
O que é possível fazer na Palestina – na Cisjordânia e em Gaza
– é criar alguns espaços que as crianças possam frequentar com seus pais, espaços protegidos por acordo internacional, com anuência das partes.
A guerra rouba vidas, rouba, em muitos casos, o direito de ir e vir, arrasa com recursos econômicos. Por que a guerra teria também de acabar com a infância de quase 1 milhão de crianças? Por que condená-las à amargura na vida adulta e a alimentar uma predisposição ao ódio e à luta violenta?
Quando o Brasil deixar de ter a responsabilidade de dirigir o Conselho de Segurança da ONU, o que podemos fazer, dentro dos nossos limites, é exatamente uma campanha por todas as crianças que vivem em área de guerra.
Para ter alguma credibilidade, seria interessante também proibir a exportação de bombas de fragmentação – algo que tentei, por meio de projeto de lei, e fracassei diante do argumento de preservar empregos. E, naturalmente, atacar os problemas internos que fazem, por exemplo, as crianças de grande parte do Rio de Janeiro vítimas dos confrontos em áreas dominadas pelo tráfico e pela milícia.
Se não dá para fazer tudo, por que não tentar apenas preservar as novas gerações?
Meus avôs vieram do Líbano, no princípio do século passado. Já tinham memória de conflitos religiosos. Minha avó tinha uma cruz tatuada no braço e nem sempre a vida foi fácil para os cristãos libaneses. Uma região de antigos conflitos.
No momento em que Israel se prepara para uma invasão de Gaza, tento me lembrar de outras guerras urbanas. Será como Faluja ou mesmo Mossul, no Iraque, onde o combate ao Isis superou as expectativas em mortos. Em Faluja, morreu tanta gente que os cemitérios não deram vazão e as pessoas eram enterradas nos jardins das casas. Mossul, além de superar tudo, ainda tinha uma enorme barragem com potencial de inundar o país.
Não creio que os exemplos anteriores possam ser avaliados mecanicamente. Gaza tem uma rede de túneis especialmente construída pelo Hamas. Neste momento, as informações indicam que de 15% a 30% das edificações já foram destruídas. A existência desses túneis pode resultar numa destruição que não deixará pedra sobre pedra.
Será o fim do Hamas? Naturalmente, o processo de destruição será explorado e a própria juventude árabe estará mais aberta a organizações violentas. Além do mais, alguns dirigentes do Hamas nem vivem em Gaza, preferem Doha, no Catar, um pequeno país com uma altíssima renda per capita anual, em torno de US$ 60 mil.
Em caso de vitória de Israel e ampla destruição do Hamas, quem governa a região? A Autoridade Palestina teria condição de fazê-lo, enfraquecida pela corrupção e pela falta de consultas eleitorais? O Hamas também não faz eleições desde 2006.
Há dois grandes temas que precisam ser avaliados antes e depois da invasão: a morte de civis e a morte de crianças.
Quando se diz que o Hamas não representa a Palestina, muitos não acreditam nisso em Israel.
Alguns artigos do Jerusalem Post questionam essa afirmativa. Acham que existe uma forte cumplicidade entre palestinos e o Hamas. Ainda que isso fosse verdadeiro, o problema é que 30% dos habitantes de Gaza são crianças e adolescentes. Eles não têm condições de questionar ou muito menos derrubar um governo indesejado.
Numa guerra assimétrica em que a propaganda tem um peso maior que as manobras militares, Israel corre um grande risco com as mortes entre os civis. Além disso, há as crianças. O Brasil fez o que pôde na ONU para atenuar a intensidade do conflito. Não conseguiu. Mas, na voz do presidente Lula, manifestou preocupação com as crianças. Para conseguir alguma coisa, talvez o País tenha de se concentrar num tema: as crianças merecem um enfoque especial.
Para começar, há aquelas que dependem de eletricidade nas incubadoras e podem morrer sem ela. Inúmeras atividades hospitalares dependem da gasolina, que não entra. É necessário abrir um corredor também para o combustível. O Hamas pode sequestrá-lo para fins bélicos? Se o fizer, matará as crianças e terá também de responder por isso. Será uma manobra desesperada e o combustível para tocar hospitais é mínimo, se encarado como suprimento bélico.
Há crianças raptadas pelo Hamas e crianças presas por Israel na Palestina. Surgiu um movimento para que fossem trocadas, e isso pode ser um caminho para que as crianças sejam afastadas do clima de hostilidade.
Mas creio que não bastará. Crianças precisam brincar. E não se brinca com bombas. Inclusive, no passado, uma das mais importantes campanhas contra bombas de fragmentação aconteceu porque ameaçavam as crianças, que as confundiam com brinquedos.
O que é possível fazer na Palestina – na Cisjordânia e em Gaza
– é criar alguns espaços que as crianças possam frequentar com seus pais, espaços protegidos por acordo internacional, com anuência das partes.
A guerra rouba vidas, rouba, em muitos casos, o direito de ir e vir, arrasa com recursos econômicos. Por que a guerra teria também de acabar com a infância de quase 1 milhão de crianças? Por que condená-las à amargura na vida adulta e a alimentar uma predisposição ao ódio e à luta violenta?
Quando o Brasil deixar de ter a responsabilidade de dirigir o Conselho de Segurança da ONU, o que podemos fazer, dentro dos nossos limites, é exatamente uma campanha por todas as crianças que vivem em área de guerra.
Para ter alguma credibilidade, seria interessante também proibir a exportação de bombas de fragmentação – algo que tentei, por meio de projeto de lei, e fracassei diante do argumento de preservar empregos. E, naturalmente, atacar os problemas internos que fazem, por exemplo, as crianças de grande parte do Rio de Janeiro vítimas dos confrontos em áreas dominadas pelo tráfico e pela milícia.
Se não dá para fazer tudo, por que não tentar apenas preservar as novas gerações?
O regresso do antissemitismo
“Se compreender é impossível, conhecer é imperativo, porque o que aconteceu pode acontecer outra vez.” As palavras de Primo Levi, sobrevivente do Holocausto e autor de um dos livros obrigatórios sobre o século XX (Se Isto é um Homem), têm ecoado na minha cabeça nos últimos dias. “Nunca mais”, repetiu-se. Sim, o que aconteceu pode acontecer outra vez. Mas parece que conhecer não basta.
Para os israelitas, os atentados de 7 de outubro são uma segunda Shoá, a palavra hebraica para massacre que recorda o genocídio nazi de cerca de seis milhões de judeus. A carnificina e também as reações de apoio aos palestinianos contra a resposta do governo de Benjamin Netanyahu (excessiva e em violação de várias leis da guerra e do Direito Internacional Humanitário) mudaram drasticamente a forma como os habitantes de Israel, mas também muitos judeus não israelitas – ingleses, norte-americanos, europeus – olham hoje para si próprios e recordam as histórias dos seus antepassados. Muitos, que arquivaram as histórias da Inquisição, da Segunda Guerra Mundial e do Babi Yar num passado que lhes parecia longínquo, dizem que, pela primeira vez, passaram a sentir medo das suas origens e da sua fé. Algo que nunca imaginariam que fosse possível.
Chegam-nos notícias de ataques contra estabelecimentos e casas de judeus fora de Israel, lemos declarações de gente que defende que o Hamas faz resistência e exerce o direito à autodeterminação e que todos os meios são legítimos, vimos fotos de cartazes ofensivos em manifestações, como aquele da rapariga sorridente que pedia uma limpeza no mundo com a estrela de David azul enfiada num caixote de lixo.
Li, com consternação, a carta aberta assinada por historiadores como Simon Schama e Simon Sebag Montefiore, em que se assumem “de coração partido e enojados com a chocante falta de empatia de grande parte da autoproclamada esquerda global” e recordam que as vítimas em Israel também eram civis, que merecem o mesmo respeito que os palestinianos. Impressionou-me a descrição de Sergey Ponomarev, editor sénior da The Atlantic, quando a sua filha de 14 anos lhe perguntou se, para sua segurança, devia tirar o colar oferecido pelos avós, num artigo com o título A Esquerda Abandonou-me. Aquilo a que assistimos hoje é um recrudescer do mais puro antissemitismo, que vem desde os tempos greco-romanos pré-cristãos, em que o monoteísmo era fator de segregação.
Este antissemitismo, que começou por ser teológico e depressa se tornou político e que assumiu ao longo dos tempos formas altamente violentas, nunca desapareceu – muito pelo contrário. Anda, muitas vezes, de mãos dadas com o antissionismo. Está plenamente enraizado, mesmo nas democracias desenvolvidas, em algumas franjas da sociedade – que vão dos conspiracionistas aos radicais anti-imperialistas e antiamericanos, que veem Israel (e, no mesmo saco, os israelitas e os judeus) como uma força do mal. Há uma confusão frequente entre o povo e os seus dirigentes, a crença e a nacionalidade, os antepassados e os cidadãos contemporâneos.
Há dias, foram divulgados os dados do FBI sobre crimes de ódio contra judeus nos EUA: aumentaram em 2022 mais de 37%, atingindo o maior número em quase três décadas. Os judeus representam cerca de 2% da população americana e, no entanto, os incidentes relatados representaram quase 10% de todos os crimes de ódio. Um estudo da Universidade de Chicago mostrou que há uma relação clara entre antissemitismo, violência política e teorias da conspiração antidemocráticas, como a tese do Protocolo dos Sábios de Sião, que defende que os judeus têm um plano para controlar o mundo ocidental, e a tese da grande substituição, que propala que imigrantes e minorias estão a ser intencionalmente introduzidos num país para substituir a população nativa. As redes sociais e alguns populistas exacerbam estas tendências – veja-se como o húngaro Viktor Orbán fez do judeu Soros um inimigo público. Sim, extrema-direita e extrema-esquerda, nisto como noutras coisas, tocam-se.
Tudo isto é triste. E tudo isto parece o fado dos judeus, que volta sempre para os atormentar. Palestinianos e israelitas merecem, de igual forma, a nossa empatia. Os dois povos são vítimas de muitas camadas de História, de tensões geopolíticas globais, de crimes e más opções dos seus dirigentes. Compreender isto será essencial daqui para a frente, enquanto este conflito sangrento continuar a desenrolar-se diante dos nossos olhos.
Para os israelitas, os atentados de 7 de outubro são uma segunda Shoá, a palavra hebraica para massacre que recorda o genocídio nazi de cerca de seis milhões de judeus. A carnificina e também as reações de apoio aos palestinianos contra a resposta do governo de Benjamin Netanyahu (excessiva e em violação de várias leis da guerra e do Direito Internacional Humanitário) mudaram drasticamente a forma como os habitantes de Israel, mas também muitos judeus não israelitas – ingleses, norte-americanos, europeus – olham hoje para si próprios e recordam as histórias dos seus antepassados. Muitos, que arquivaram as histórias da Inquisição, da Segunda Guerra Mundial e do Babi Yar num passado que lhes parecia longínquo, dizem que, pela primeira vez, passaram a sentir medo das suas origens e da sua fé. Algo que nunca imaginariam que fosse possível.
Chegam-nos notícias de ataques contra estabelecimentos e casas de judeus fora de Israel, lemos declarações de gente que defende que o Hamas faz resistência e exerce o direito à autodeterminação e que todos os meios são legítimos, vimos fotos de cartazes ofensivos em manifestações, como aquele da rapariga sorridente que pedia uma limpeza no mundo com a estrela de David azul enfiada num caixote de lixo.
Li, com consternação, a carta aberta assinada por historiadores como Simon Schama e Simon Sebag Montefiore, em que se assumem “de coração partido e enojados com a chocante falta de empatia de grande parte da autoproclamada esquerda global” e recordam que as vítimas em Israel também eram civis, que merecem o mesmo respeito que os palestinianos. Impressionou-me a descrição de Sergey Ponomarev, editor sénior da The Atlantic, quando a sua filha de 14 anos lhe perguntou se, para sua segurança, devia tirar o colar oferecido pelos avós, num artigo com o título A Esquerda Abandonou-me. Aquilo a que assistimos hoje é um recrudescer do mais puro antissemitismo, que vem desde os tempos greco-romanos pré-cristãos, em que o monoteísmo era fator de segregação.
Este antissemitismo, que começou por ser teológico e depressa se tornou político e que assumiu ao longo dos tempos formas altamente violentas, nunca desapareceu – muito pelo contrário. Anda, muitas vezes, de mãos dadas com o antissionismo. Está plenamente enraizado, mesmo nas democracias desenvolvidas, em algumas franjas da sociedade – que vão dos conspiracionistas aos radicais anti-imperialistas e antiamericanos, que veem Israel (e, no mesmo saco, os israelitas e os judeus) como uma força do mal. Há uma confusão frequente entre o povo e os seus dirigentes, a crença e a nacionalidade, os antepassados e os cidadãos contemporâneos.
Há dias, foram divulgados os dados do FBI sobre crimes de ódio contra judeus nos EUA: aumentaram em 2022 mais de 37%, atingindo o maior número em quase três décadas. Os judeus representam cerca de 2% da população americana e, no entanto, os incidentes relatados representaram quase 10% de todos os crimes de ódio. Um estudo da Universidade de Chicago mostrou que há uma relação clara entre antissemitismo, violência política e teorias da conspiração antidemocráticas, como a tese do Protocolo dos Sábios de Sião, que defende que os judeus têm um plano para controlar o mundo ocidental, e a tese da grande substituição, que propala que imigrantes e minorias estão a ser intencionalmente introduzidos num país para substituir a população nativa. As redes sociais e alguns populistas exacerbam estas tendências – veja-se como o húngaro Viktor Orbán fez do judeu Soros um inimigo público. Sim, extrema-direita e extrema-esquerda, nisto como noutras coisas, tocam-se.
Tudo isto é triste. E tudo isto parece o fado dos judeus, que volta sempre para os atormentar. Palestinianos e israelitas merecem, de igual forma, a nossa empatia. Os dois povos são vítimas de muitas camadas de História, de tensões geopolíticas globais, de crimes e más opções dos seus dirigentes. Compreender isto será essencial daqui para a frente, enquanto este conflito sangrento continuar a desenrolar-se diante dos nossos olhos.
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