sábado, 28 de outubro de 2023

Crianças não declaram guerra

Nas duas primeiras semanas de guerra no Oriente Médio, 20 jornalistas foram mortos. Merecem nosso reconhecimento por terem dado a vida fornecendo a matéria-prima para que possamos saber do que se passa no front e tentar entender o futuro deste conflito. Temos mais perguntas do que certezas. Creio que será assim por muito tempo. Não adianta colar nos aparelhos de tevê, ler os principais jornais do mundo, comprar livros – tudo o que conseguimos é uma visão parcial. Mesmo os especialistas que não vivem a realidade cotidiana da região têm dificuldades para interpretá-la fielmente.

Meus avôs vieram do Líbano, no princípio do século passado. Já tinham memória de conflitos religiosos. Minha avó tinha uma cruz tatuada no braço e nem sempre a vida foi fácil para os cristãos libaneses. Uma região de antigos conflitos.


No momento em que Israel se prepara para uma invasão de Gaza, tento me lembrar de outras guerras urbanas. Será como Faluja ou mesmo Mossul, no Iraque, onde o combate ao Isis superou as expectativas em mortos. Em Faluja, morreu tanta gente que os cemitérios não deram vazão e as pessoas eram enterradas nos jardins das casas. Mossul, além de superar tudo, ainda tinha uma enorme barragem com potencial de inundar o país.

Não creio que os exemplos anteriores possam ser avaliados mecanicamente. Gaza tem uma rede de túneis especialmente construída pelo Hamas. Neste momento, as informações indicam que de 15% a 30% das edificações já foram destruídas. A existência desses túneis pode resultar numa destruição que não deixará pedra sobre pedra.

Será o fim do Hamas? Naturalmente, o processo de destruição será explorado e a própria juventude árabe estará mais aberta a organizações violentas. Além do mais, alguns dirigentes do Hamas nem vivem em Gaza, preferem Doha, no Catar, um pequeno país com uma altíssima renda per capita anual, em torno de US$ 60 mil.

Em caso de vitória de Israel e ampla destruição do Hamas, quem governa a região? A Autoridade Palestina teria condição de fazê-lo, enfraquecida pela corrupção e pela falta de consultas eleitorais? O Hamas também não faz eleições desde 2006.

Há dois grandes temas que precisam ser avaliados antes e depois da invasão: a morte de civis e a morte de crianças.

Quando se diz que o Hamas não representa a Palestina, muitos não acreditam nisso em Israel.

Alguns artigos do Jerusalem Post questionam essa afirmativa. Acham que existe uma forte cumplicidade entre palestinos e o Hamas. Ainda que isso fosse verdadeiro, o problema é que 30% dos habitantes de Gaza são crianças e adolescentes. Eles não têm condições de questionar ou muito menos derrubar um governo indesejado.

Numa guerra assimétrica em que a propaganda tem um peso maior que as manobras militares, Israel corre um grande risco com as mortes entre os civis. Além disso, há as crianças. O Brasil fez o que pôde na ONU para atenuar a intensidade do conflito. Não conseguiu. Mas, na voz do presidente Lula, manifestou preocupação com as crianças. Para conseguir alguma coisa, talvez o País tenha de se concentrar num tema: as crianças merecem um enfoque especial.

Para começar, há aquelas que dependem de eletricidade nas incubadoras e podem morrer sem ela. Inúmeras atividades hospitalares dependem da gasolina, que não entra. É necessário abrir um corredor também para o combustível. O Hamas pode sequestrá-lo para fins bélicos? Se o fizer, matará as crianças e terá também de responder por isso. Será uma manobra desesperada e o combustível para tocar hospitais é mínimo, se encarado como suprimento bélico.

Há crianças raptadas pelo Hamas e crianças presas por Israel na Palestina. Surgiu um movimento para que fossem trocadas, e isso pode ser um caminho para que as crianças sejam afastadas do clima de hostilidade.

Mas creio que não bastará. Crianças precisam brincar. E não se brinca com bombas. Inclusive, no passado, uma das mais importantes campanhas contra bombas de fragmentação aconteceu porque ameaçavam as crianças, que as confundiam com brinquedos.

O que é possível fazer na Palestina – na Cisjordânia e em Gaza

– é criar alguns espaços que as crianças possam frequentar com seus pais, espaços protegidos por acordo internacional, com anuência das partes.

A guerra rouba vidas, rouba, em muitos casos, o direito de ir e vir, arrasa com recursos econômicos. Por que a guerra teria também de acabar com a infância de quase 1 milhão de crianças? Por que condená-las à amargura na vida adulta e a alimentar uma predisposição ao ódio e à luta violenta?

Quando o Brasil deixar de ter a responsabilidade de dirigir o Conselho de Segurança da ONU, o que podemos fazer, dentro dos nossos limites, é exatamente uma campanha por todas as crianças que vivem em área de guerra.

Para ter alguma credibilidade, seria interessante também proibir a exportação de bombas de fragmentação – algo que tentei, por meio de projeto de lei, e fracassei diante do argumento de preservar empregos. E, naturalmente, atacar os problemas internos que fazem, por exemplo, as crianças de grande parte do Rio de Janeiro vítimas dos confrontos em áreas dominadas pelo tráfico e pela milícia.

Se não dá para fazer tudo, por que não tentar apenas preservar as novas gerações?

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