sábado, 28 de outubro de 2023

Homo sapiens sapiens: Gaza, o fracasso da espécie

Não posso deixar de me espantar. O que ouço e vejo é a razão da irracionalidade. O Egito abre um corredor humanitário em sua fronteira com Gaza para que entrem 20 caminhões com alimentos, água e medicamentos na Palestina, cuja população está bloqueada por decisão de Israel. A comunidade internacional, Nações Unidas, União Europeia, OTAN, demonstra satisfação. Os meios de comunicação comentam tal ato como um triunfo humanitário. Aplaudem e pedem mais trailers autorizados.

Enquanto isso, Israel convida para que a zona norte de Gaza seja abandonada, prolongando seus bombardeios. É o mundo de cabeça para baixo. Membros da espécie humana praticam o extermínio de seus semelhantes, com a anuência de outros seres humanos. Suas razões, sejam quais forem, demonstram o desprezo pela vida. A esta altura, alguém deve estar se perguntando, se já não fez isto, como chegamos até aqui?

Em vez de promover a paz, líderes mundiais estimulam a guerra, exigindo que suas regras sejam respeitadas. É preciso matar sem exagerar. Com argumentos canalhas, clamam que Israel tem o direito de se defender, concedendo uma licença para cometer o genocídio do povo palestino.

O que se diz de Israel serve para o genocídio dos povos originários e para as mais de 30 guerras ativas que sacodem o planeta. Não importa se você é um conservador, liberal, progressista ou da autodenominada esquerda democrática, todos confluem: é preciso salvar o capitalismo a qualquer preço, mesmo que isso signifique o fim da nossa espécie.

Para não cair em duplas ou triplas morais, falo do humano que nos faz humanos. Os milhares de migrantes mortos no Mediterrâneo deveriam ser um exemplo suficiente da desumanização que nos afeta.


Não se conhece espécie social que pratique a guerra, a competitividade, a exploração, estimule o ódio, a inveja e a desigualdade como parte de sua organização social. Também não há evidências de espécies cuja existência resulte no colapso de seu nicho ecológico. As crises de extinção são alheias à vontade dos seres vivos que habitam o planeta.

Agora, se nos atermos ao Homo sapiens sapiens, essa máxima não se aplica. Um ser que sabe que sabe, reflete e tem consciência de seus atos, acaba se esquivando de suas responsabilidades. O humano, a relação ética que une a natureza biológica e social, é negado em prol de justificar seus holocaustos. Refiro-me aos fatos.

Nos últimos 100 anos, o ser humano provocou duas guerras mundiais, lançou bombas atômicas sobre a população civil, desenvolveu armas químicas e biológicas com o objetivo de impor uma vontade, seja a favor de uma raça, de um deus ou uma razão cultural. Aviões, drones, submarinos, porta-aviões, tanques de guerra. Tecnologias de morte criadas para gerar terror, medo e submissão.

Os cidadãos do mundo protestam, levantam a voz, saem às ruas, pedem o fim das guerras, desnudando as vergonhas de seus dirigentes. No entanto, nada muda. Ouvidos surdos. A desumanização avança em ritmo acelerado. O verdadeiro vencedor do processo de desumanização é o complexo financeiro-industrial-militar. Na página digital Estrategias de Inversión, a jornalista Raquel Jiménez publica o atual artigo "As empresas armamentistas, as grandes beneficiadas do conflito entre Israel e Hamas na bolsa".

Desde a escalada do conflito palestino-israelense, dirá, quatro empresas estadunidenses viram subir os seus valores na bolsa e aumentar seus lucros. A Lockheed Martin recebeu mais de 5,7 bilhões de dólares em contratos com Israel. As ações da Raytheon Technologies sobem desde o dia 7 de outubro, 5,5%. A General Dynamics obtém um lucro de 9,3% e a Northrop Grumman, a quinta maior fabricante de armas do mundo, tem uma rentabilidade de 15,5%, em 10 dias.

Junto a isso, deve-se somar os altos retornos da companhia francesa Dassaut Aviation, com 8,3%; a britânica BAE Systems, a segunda maior contratista militar do mundo, com lucros de 9,6%, e as alemãs MTU Aero Engines e Rheinmetall AG, cujas ações demonstram uma alta de 4 e 15%, desde o dia 7 de outubro. Sem nos esquecer do grupo italiano Leonardo, que está com lucros anuais máximos.

A espécie humana fracassou. O que nos torna humanos, o reconhecimento do outro, a empatia diante do sofrimento, enclausurou-se em nome dos poderosos. Primo Levi, em sua Trilogia de Auschwitz, define a desumanização. É assim que o povo palestino deve se sentir hoje:

“Pela primeira vez, então, percebemos que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem. Em um instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível: uma condição humana mais miserável não existe, não dá para imaginar. Não temos nada nosso. (…) Vão nos tirar até o nome: e se quisermos mantê-lo, teremos que encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome, algo nosso, algo do que somos, permaneça (…). Na história e na vida, parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa: a quem já tem, será dado, de quem não tem, será tirado”. 

Esse algo é a dignidade. Por isso, luta-se.

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