sábado, 28 de outubro de 2023

O regresso do antissemitismo

“Se compreender é impossível, conhecer é imperativo, porque o que aconteceu pode acontecer outra vez.” As palavras de Primo Levi, sobrevivente do Holocausto e autor de um dos livros obrigatórios sobre o século XX (Se Isto é um Homem), têm ecoado na minha cabeça nos últimos dias. “Nunca mais”, repetiu-se. Sim, o que aconteceu pode acontecer outra vez. Mas parece que conhecer não basta.

Para os israelitas, os atentados de 7 de outubro são uma segunda Shoá, a palavra hebraica para massacre que recorda o genocídio nazi de cerca de seis milhões de judeus. A carnificina e também as reações de apoio aos palestinianos contra a resposta do governo de Benjamin Netanyahu (excessiva e em violação de várias leis da guerra e do Direito Internacional Humanitário) mudaram drasticamente a forma como os habitantes de Israel, mas também muitos judeus não israelitas – ingleses, norte-americanos, europeus – olham hoje para si próprios e recordam as histórias dos seus antepassados. Muitos, que arquivaram as histórias da Inquisição, da Segunda Guerra Mundial e do Babi Yar num passado que lhes parecia longínquo, dizem que, pela primeira vez, passaram a sentir medo das suas origens e da sua fé. Algo que nunca imaginariam que fosse possível.

Chegam-nos notícias de ataques contra estabelecimentos e casas de judeus fora de Israel, lemos declarações de gente que defende que o Hamas faz resistência e exerce o direito à autodeterminação e que todos os meios são legítimos, vimos fotos de cartazes ofensivos em manifestações, como aquele da rapariga sorridente que pedia uma limpeza no mundo com a estrela de David azul enfiada num caixote de lixo.

Li, com consternação, a carta aberta assinada por historiadores como Simon Schama e Simon Sebag Montefiore, em que se assumem “de coração partido e enojados com a chocante falta de empatia de grande parte da autoproclamada esquerda global” e recordam que as vítimas em Israel também eram civis, que merecem o mesmo respeito que os palestinianos. Impressionou-me a descrição de Sergey Ponomarev, editor sénior da The Atlantic, quando a sua filha de 14 anos lhe perguntou se, para sua segurança, devia tirar o colar oferecido pelos avós, num artigo com o título A Esquerda Abandonou-me. Aquilo a que assistimos hoje é um recrudescer do mais puro antissemitismo, que vem desde os tempos greco-romanos pré-cristãos, em que o monoteísmo era fator de segregação.


Este antissemitismo, que começou por ser teológico e depressa se tornou político e que assumiu ao longo dos tempos formas altamente violentas, nunca desapareceu – muito pelo contrário. Anda, muitas vezes, de mãos dadas com o antissionismo. Está plenamente enraizado, mesmo nas democracias desenvolvidas, em algumas franjas da sociedade – que vão dos conspiracionistas aos radicais anti-imperialistas e antiamericanos, que veem Israel (e, no mesmo saco, os israelitas e os judeus) como uma força do mal. Há uma confusão frequente entre o povo e os seus dirigentes, a crença e a nacionalidade, os antepassados e os cidadãos contemporâneos.

Há dias, foram divulgados os dados do FBI sobre crimes de ódio contra judeus nos EUA: aumentaram em 2022 mais de 37%, atingindo o maior número em quase três décadas. Os judeus representam cerca de 2% da população americana e, no entanto, os incidentes relatados representaram quase 10% de todos os crimes de ódio. Um estudo da Universidade de Chicago mostrou que há uma relação clara entre antissemitismo, violência política e teorias da conspiração antidemocráticas, como a tese do Protocolo dos Sábios de Sião, que defende que os judeus têm um plano para controlar o mundo ocidental, e a tese da grande substituição, que propala que imigrantes e minorias estão a ser intencionalmente introduzidos num país para substituir a população nativa. As redes sociais e alguns populistas exacerbam estas tendências – veja-se como o húngaro Viktor Orbán fez do judeu Soros um inimigo público. Sim, extrema-direita e extrema-esquerda, nisto como noutras coisas, tocam-se.

Tudo isto é triste. E tudo isto parece o fado dos judeus, que volta sempre para os atormentar. Palestinianos e israelitas merecem, de igual forma, a nossa empatia. Os dois povos são vítimas de muitas camadas de História, de tensões geopolíticas globais, de crimes e más opções dos seus dirigentes. Compreender isto será essencial daqui para a frente, enquanto este conflito sangrento continuar a desenrolar-se diante dos nossos olhos.

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