segunda-feira, 14 de abril de 2025

Pensamento do Dia

 


Beira o abismo

Não seria o momento de uma frente discutir caminhos para evitar uma volta ao passado? Não seria a hora de descortinar o futuro diante de tantos desafios como mudanças climáticas, inteligência artificial, crise alimentar? Não entendo a acomodação diante do abismo.

Fernando Gabeira

O que está em risco nos EUA não é (apenas) a democracia, é o liberalismo

Visões subjetivas sobre como o mundo funciona — ou deveria funcionar — compõem o sistema de crenças de um país. Nos Estados Unidos, essa estrutura sempre foi alicerçada no liberalismo, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando o país se consolidou como seu principal expoente no mundo ocidental e propagador desses valores no cenário global.

Liberdade individual, competição, livre mercado, governo limitado, igualdade perante a lei e democracia foram os pilares que moldaram a ordem institucional americana. Essa crença liberal ajudou a sustentar um ciclo virtuoso de desenvolvimento econômico e estabilidade política, traduzido na ideia do “sonho americano”: esforço individual, trabalho duro e meritocracia como caminhos legítimos para o sucesso e a prosperidade. Enquanto essa crença foi dominante, os EUA operaram quase em “piloto automático”, com ajustes de rota marginais.


Contudo, quando os resultados políticos e econômicos frustram as expectativas da população — especialmente dos principais atores políticos e agentes econômicos —, a crença dominante torna-se maleável e suscetível a mudanças, especialmente diante de choques.

Abrem-se brechas, ou janelas de oportunidade, para a contestação do sistema de crenças vigente — e, por consequência, das instituições que o sustentam. Mudança de crenças, portanto, é a chave para se entender mudanças institucionais.

O retorno de Donald Trump à presidência não pode, portanto, ser interpretado como um acidente — algo esdrúxulo, escatológico ou estranho ao ambiente político americano. A defesa de valores antagônicos ao liberalismo — como nacionalismo, protecionismo, segurança, estranhamento com a diferença, muros, tarifas, barreiras comerciais, preconceito contra imigrantes — sinaliza um estágio explícito de competição entre crenças e valores sobre como o mundo deveria funcionar.

Mudanças estruturais costumam ser inquietantes e até assustadoras, pois ainda não está claro o que irá prevalecer: quais crenças e instituições permanecerão e quais se tornarão dominantes. Portanto, ainda é cedo para afirmar com certeza se os EUA estão atravessando uma transição estrutural de valores. Mas os sinais de desalinhamento entre expectativas e resultados produzidos pelas suas instituições são cada vez mais evidentes.

Mais do que a democracia em seu sentido minimalista — o regime em que partidos perdem eleições competitivas — o que hoje parece realmente em risco, com o novo governo Trump, é a própria base liberal que historicamente definiu o ethos americano e do mundo ocidental.
Carlos Pereira

‘Nunca vi um pobre’

Quando penso que já vi e ouvi de tudo um pouco, a vida insiste em surpreender. Fiquei estarrecida com o relato sobre a euforia e empolgação de um jovem da elite paulistana diante da miséria. "Nunca vi um pobre", disse o estudante de uma renomada instituição privada de ensino superior ao participar de uma ação institucional voltada a prestar serviços públicos à população carente e em situação de rua em São Paulo.

Tamanha falta de discernimento e compreensão da realidade brasileira me deixou chocada. Como pode um universitário "bem-nascido, bem-criado, de boa família" e que vive na maior cidade de um dos países mais desiguais do mundo nunca ter visto um pobre?


Não pode. Afinal, a miséria é explícita no Brasil. E, francamente, não deveria empolgar ninguém, mas causar constrangimento e desconforto generalizado (no mínimo). Em Sampa, para "ver um pobre" basta dar uma volta em qualquer quarteirão da avenida Paulista, cartão postal da cidade.

Nem a vida confortável e luxuosa numa mansão (nos Jardins, no Morumbi, na Vila Olímpia ou em qualquer outro bairro nobre) é capaz de "blindar" a elite do contato com a pobreza. Não dá para ignorar que são os pobres que trabalham como babás, empregadas domésticas, cozinheiras, motoristas, jardineiros, porteiros e toda sorte de "eiros" a serviço de quem tem dinheiro de sobra. Pobres e predominantemente negros —é bom que se diga.

Pelas ruas deste país, é impossível deixar de avistar um pobre miserável perambulando, dormindo ao relento, jogado no chão, pedindo esmola ou comida, vendendo alguma quinquilharia ou ‘chapado’ para tolerar a rudeza de um cotidiano privado de esperança.

É desalentador e vergonhoso constatar que a sociedade brasileira continua a formar futuros "líderes" incapazes de sequer enxergar a realidade nacional —que dirá promover a transformação social necessária para fazer deste um país mais justo e menos desigual.

O fim da globalização como a conhecemos

“A inveja do mundo”. Era assim que Simon Rabinovitch e Henry Curr, editores da publicação inglesa The Economist, descreveram o estado da economia dos Estados Unidos em outubro do ano passado. Na série de sete artigos, os jornalistas tecem loas à pujança econômica estadunidense. Afinal, a economia crescia quase 3% em 2024. No agregado, o PIB do país nunca tinha sido tão alto, deixando para trás a retração da pandemia. O trabalhador norte-americano seguia sendo o mais produtivo do mundo e a concentração crescente de riqueza, argumentavam, era apenas o preço a ser pago por uma economia vigorosa.

O crescimento foi possível tendo em vista a revolução energética do petróleo de xisto, cuja extração foi permitida por tecnologia nova, o fracking. Os combustíveis fósseis extraídos por fraturação hidráulica de rochas profundas trouxeram aos Estados Unidos a soberania energética que permitiu o deslanche econômico. A soberania do dólar e de Wall Street nas finanças internacionais permanecia inconteste frente ao yuan e ao mercado acionário chineses. Apenas obstáculos internos poderiam atravancar a situação econômica norte-americana. Apesar de encontrarem problemas no plano econômico de Kamala Harris, Rabinovitch e Curr viam mais defeitos no de Trump.


Para o dissabor dos editores do Economist, cujos textos foram tirados do ar, o resultado da eleição de novembro daquele ano implicou um cavalo de pau na política econômica de Washington. À frente de uma coalizão eleitoral que incluía amplas parcelas da população do Cinturão da Ferrugem, área cujo setor industrial foi dizimado com o processo de globalização e acirramento da competição comercial nos anos 1990, Donald J. Trump foi alçado pela segunda vez à presidência.

Os empresários e plutocratas que compareceram à posse de Trump na Rotunda do Capitólio em fevereiro deste ano não pareciam estar contentes com a situação econômica deixada por Biden. Talvez na esperança de serem poupados de medidas econômicas nefastas, puseram-se a bajular Trump com doações recordes ao fundo que financiara a cerimônia de posse. Custava US$ 1 milhão sentar-se à frente até mesmo dos membros do gabinete que seriam logo empossados, preço prontamente pago por figuras como Elon Musk, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg.

Se Musk já colhia os resultados negativos de imiscuir-se nos mais altos níveis da política do país com o boicote à Tesla, agora foi a vez não só de Bezos, Zuckerberg e diversos outros, mas de todo o mercado pagar o preço de alçar Trump a uma nova presidência. O anúncio de um tarifaço global sem precedentes nos últimos cem anos, a que o governo Trump batizou “Dia da Libertação”, levou o mercado financeiro ao colapso. O S&P500, índice composto de quinhentos ativos negociados nas bolsas de Nova York (NYSE e NASDAQ), perdeu US$ 2 trilhões em capitalização em 20 minutos, principalmente concentrados nos setores têxteis e de tecnologia, dependentes de cadeias de valor internacionais.

Michael Feroli, do JP Morgan, estima que as tarifas podem sobretaxar os consumidores norte-americanos em quase US$ 400 bilhões, acelerando significativamente a inflação e reduzindo a renda disponível, o que aumenta a chance de uma recessão. O Federal Reserve de Atlanta já projetava antes do anúncio das tarifas crescimento negativo da ordem de -3,7% no primeiro trimestre de 2025.

O que chama a atenção, no entanto, é a quase absoluta ausência de quesitos técnicos nas tarifas anunciadas. Os agentes econômicos levaram um tempo para processar qual teria sido o critério que a equipe econômica de Trump havia escolhido para atribuir as alíquotas a cada país.

Para começar, a lista de jurisdições tarifadas inclui peculiaridades geográficas dignas de jogos de curiosidade. O primeiro-ministro Anthony Albanese ficou surpreso porque territórios australianos como as ilhas Norfolk (população: 2188 habitantes), ilhas dos Cocos (ou Keeling) (população 630) e ilha do Natal (1692 habitantes) receberam alíquotas diferentes do território continental da Austrália, que se encontra na faixa tarifária mais baixa de 10%. Era como se Fernando de Noronha tivesse uma alíquota tarifária diferente do resto do Brasil.

Mais surpreendentemente ainda, as ilhas Heard e McDonald, também território australiano no inóspito Oceano Antártico e, portanto, não habitadas, receberam menção independente e tarifa de 10%. É desconhecida a reação dos pinguins que habitam a região e o impacto econômico da medida…

As tarifas também pareciam alheias a qualquer caráter geopolítico, até então aliados de Washington como Israel (17%), Japão (24%), Taiwan (24%) e Coreia do Sul (25%), receberam tarifas maiores que o Irã (10%) e Venezuela (15%), não só rivais, mas objetos de sanções da Casa Branca. Foi notada a ausência da Rússia e da Coreia do Norte da lista dos tarifados, enquanto a Ucrânia recebeu uma alíquota de 10%. Os únicos outros poupados dessa rodada de taxação foram os sócios do USMCA, acordo que sucedeu o Nafta, Canadá e México.

Ao desenrolar da noite confusa que sucedeu o anúncio, internautas curiosos conseguiram decifrar o enigma e revelaram o algoritmo por trás do plano de Trump. Os territórios economicamente irrelevantes na lista devem sua presença ali ao fato de que contam com um código de domínio na internet (como o .br que encerra sites brasileiros, ou o .uk dos britânicos). Descarta-se assim a possibilidade de que a lista foi previamente organizada por um departamento técnico, como o Tesouro ou Comércio, mas por assim dizer “agentes” mais afeitos ao mundo digital. A não soberania, status autônomo, ou até mesmo presença de população permanente não é requisito para ostentar as duas letrinhas. Mesmo a Antártida conta com o código (.aq) e é possível registrar um site com esse código apesar da ausência de governo organizado no território. Não se sabe porque o governo Trump decidiu não tributar o continente gelado.

O anúncio do governo associava as alíquotas atribuídas a cada país a uma proporcionalidade, atenuada pela magnanimidade de Trump, do nível de tarifas e outras barreiras não tarifárias impostas às importações de produtos Made in USA. Os números simplesmente não batiam. Singapura, campeã em abertura comercial, recebeu os mesmos 10% do que o Brasil, que tem mercado sabidamente mais fechado aos produtos estrangeiros.

Tuiteiros (usuários do X?) começaram a levantar a hipótese de que as tarifas não tinham nada a ver com a abertura ou fechamento dos mercados às importações norte-americanas, mas sim alguma relação rudimentar com o déficit que os Estados Unidos apresentavam com cada país. Para aqueles com o quais os norte-americanos apresentavam superávit, tarifa mínima de 10%. De hipótese esdrúxula, a possibilidade sustentada por engenharia reversa, a alegação foi posteriormente confirmada pelo escritório do Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR), agência responsável pela negociação de acordos comerciais. Para dar ar científico à coisa foi publicada uma fórmula assim como citados alguns artigos. A única diferença para o que havia sido desvendado pelas redes eram dois fatores (representados pelas letras gregas ε e φ) cujos valores multiplicados anulam-se mutuamente (uma conta pueril de 4 × 0,25).

Um usuário do Twitter/X desenvolveu a fórmula utilizada pelo USTR para chegar às alíquotas de tarifas para cada país, demonstrando que as tarifas eram proporcionais ao déficit comercial sobre as importações. 

O rumor agora não era apenas que a abordagem do tarifaço era “crua” e que “carecia de lógica econômica abrangente”, focando apenas nos déficits comerciais de bens sem considerar o panorama econômico completo, como avaliou o economista George Saravelos, do Deutsche Bank. Todo o débâcle econômico parecia ter sido gerado por um plano criado de forma pouco sofisticada utilizando inteligência artificial. O ChatGPT e outras IAs retornam fórmulas muito parecidas quando perguntadas algo como “Qual seria uma maneira fácil de calcular as tarifas que deveriam ser impostas a outros países para que os Estados Unidos estejam em igualdade de condições quando se trata de déficit comercial? Defina o mínimo em 10%”. Caso não acredite, confira por si mesmo.

O tarifaço anunciado no “Dia da Libertação” não só surpreendeu pela forma improvisada, quase amadora, com que foi desenhado – mas também pelo grau de desconexão entre os seus objetivos declarados e os efeitos mais prováveis. A ideia de aumentar a produção industrial dos Estados Unidos e reduzir o déficit comercial em US$ 600 bilhões pode até funcionar no PowerPoint, mas na realidade das cadeias globais de valor, das interdependências logísticas e das estruturas produtivas transnacionais, ela parece deslocada no tempo.

Mais do que isso: ela ecoa uma estratégia que quase um século atrás teve consequências desastrosas. A Smoot–Hawley Tariff Act, sancionada em 1930 por Herbert Hoover, aumentou drasticamente as tarifas de importação norte-americanas em plena crise. O resultado foi um colapso do comércio internacional e a intensificação da Grande Depressão. A história, como se sabe, não se repete – mas às vezes rima. A diferença agora é o mundo em que se insere o novo protecionismo americano. Se nos anos 1930 os Estados Unidos ainda hesitavam em assumir o papel de hegemon global, hoje parecem, deliberadamente, abdicar dele. Desde 1945, os Estados Unidos foram os principais arquitetos – e garantidores – da ordem liberal internacional. Aceitaram os custos disso: abriram mercados, financiaram reconstruções, toleraram déficits bilaterais com aliados estratégicos, como Japão e Alemanha. Não por benevolência, mas porque entenderam que estabilidade global e liderança andavam juntas.

Essa lógica começou a ruir nos anos 2000. A OMC estagnou, a Rodada Doha fracassou, e os Estados Unidos passaram a mirar países como China, Índia e Brasil, exigindo que deixassem de ser tratados como “em desenvolvimento”. A crise de 2008 marcou um novo momento: do G7 ao G20, da unipolaridade à multipolaridade emergente. O comércio seguiu, mas com mais fricção. E agora, com Trump de volta, o que se vê é menos um ajuste e mais uma tentativa de desmontar as engrenagens do sistema.

A reação internacional à nova cruzada tarifária revela os limites da política de força bruta. Sem critério técnico, sem lógica estratégica clara, e com uma execução que parece ter saído de um prompt mal calibrado de IA, o plano gerou mais perplexidade do que temor.

A China, alvo preferencial da retórica trumpista, já não é mais a mesma de 2017. Aprendeu a jogar com as regras do sistema – e agora desenvolve ferramentas próprias para responder. Um novo kit de “coerção econômica”, nos moldes norte-americanos e europeus, foi anunciado por Pequim. Já no campo político, a China começa a costurar encontros com Coreia do Sul e Japão, dois parceiros estratégicos dos Estados Unidos, mas que se viram repentinamente tarifados com alíquotas de 24% e 25%, respectivamente. A simples imagem desses três países sentados à mesma mesa, como aconteceu recentemente em Seul, já é uma rachadura no bloco ocidental.

A Índia, que vinha se aproximando de Washington, também acusou o golpe. É um dos poucos países emergentes com crescimento sólido e ambições globais. Não aceitará ser tratada como ameaça econômica e, ao mesmo tempo, como aliada militar. Nova Délhi já iniciou conversas com a União Europeia e com os Brics sobre alternativas comerciais. E o Vietnã, outro país que Washington cortejava com afinco, se viu atingido em cheio. Sua indústria leve, centrada em manufaturas para exportação, é especialmente vulnerável a esse tipo de tarifação. Há sinais de reaproximação com a China, inclusive em temas sensíveis, como tecnologia e energia. Um realinhamento silencioso, mas significativo.

Entre os que escaparam do tarifaço com a alíquota mínima de 10%, o Brasil talvez tenha sido o maior beneficiado. A capitalização da bolsa disparou, o real se valorizou e as exportadoras brasileiras comemoraram. A primeira reação do governo foi de contenção: conseguiu a aprovação pelo Congresso o direito de retaliar nos setores em que se sentir vulnerabilizado. Ainda assim, dado o contexto geral, é provável que o governo busque estabelecer novas negociações com os norte-americanos e manter o objetivo de diversificar a pauta exportadora. A estratégia parece ser ocupar o espaço deixado por parceiros tradicionais dos Estados Unidos. A reabertura do diálogo com a União Europeia, inclusive no âmbito do acordo Mercosul-UE, provavelmente ganhará novo impulso.

No entanto, a bonança pode ser enganosa. Isso porque as tarifas desorganizam o comércio internacional, tornam as relações bilaterais mais imprevisíveis e expõem o Brasil a pressões por alinhamento político. Já se fala nos bastidores de Washington sobre condicionar a manutenção da alíquota reduzida à adoção de compromissos diplomáticos – o que colocaria Brasília em uma posição delicada, entre a neutralidade pragmática e a barganha geopolítica.

Nesse sentido, o Brasil se alinha à linha adotada pelo México de Claudia Sheinbaum: explorar oportunidades sem comprometer a estabilidade. Mas enquanto o México conta com a blindagem do USMCA, o Brasil precisa navegar com mais astúcia – e entender que sua posição vantajosa pode não durar. A questão é se o país conseguirá transformar esse momento em alavanca para maior protagonismo internacional ou se apenas assistirá à crise norte-americana como espectador privilegiado.

É tentador decretar o fim da globalização. Mas talvez o que esteja em curso não seja o seu colapso – e sim uma mutação. A crise deflagrada pelas tarifas de Trump não é exatamente um ponto fora da curva. Ela está mais para um ponto de inflexão dentro de um processo mais longo, iniciado há pelo menos uma década e meia. A verdade é que o ordenamento liberal construído no pós-1945 já vinha se esgarçando. Seu apogeu talvez tenha sido nos anos 1990, com a consolidação da OMC, a expansão dos tratados bilaterais e regionais, e a promessa de um mercado global cada vez mais integrado, onde normas, instituições e previsibilidade compensariam as assimetrias. Os Estados Unidos lideravam esse processo, com ganhos tangíveis: exportavam produtos, mas também regras, modelos de governança, contratos e valores.

A crise de 2008 abalou as fundações desse sistema. O colapso do Lehman Brothers, a quebra de bancos na Europa e a resposta coordenada do G20 expuseram tanto o poder de articulação dos Estados Unidos, quanto os limites da sua capacidade de manter a estabilidade por meios exclusivamente liberais. Foi ali, no epicentro de Wall Street, que a globalização revelou sua face mais assimétrica. Por isso, para muitos países emergentes, 2008 foi menos uma crise e mais uma revelação: o sistema era instável e enviesado, e mesmo os que o desenharam não conseguiam controlá-lo. Foi nesse contexto que começaram a germinar os primeiros sinais de multipolaridade sistêmica: a criação dos Brics, o fortalecimento do G20, a ascensão da China como investidora alternativa do mundo em desenvolvimento.

Desde então, o que se viu foi uma crescente dissonância entre os discursos em defesa da ordem e as práticas de seus principais fiadores. A OMC estagnou. A Rodada Doha fracassou. Os acordos plurilaterais perderam tração. E os Estados Unidos – que sempre alternaram protecionismo seletivo com retórica liberal – passaram a agir cada vez mais de forma unilateral, impondo sanções, abandonando tratados e esvaziando instituições.

A volta de Trump à Casa Branca apenas leva essa tendência ao extremo. O tarifaço não é só uma política econômica. É uma declaração de abandono das regras que sustentavam a hegemonia americana, não por falta de poder, mas por escolha. Em vez de liderar com instituições, os Estados Unidos ensaiam liderar pelo choque. E isso tem consequências. No mundo do pós-Guerra Fria, a hegemonia norte-americana não se baseava apenas em tanques e dólares. Ela dependia da percepção de legitimidade. As instituições – FMI, Banco Mundial, OMC, ONU – funcionavam como extensões do poder norte-americano, mas revestidas de uma capa de multilateralismo. Quando Washington desrespeita ou ignora essas mesmas regras, sinaliza que a ordem é apenas um instrumento, não um fim. E com isso, abre espaço para alternativas.

A China, hoje, não busca necessariamente destruir o sistema – mas moldá-lo à sua imagem. Lança bancos paralelos (como o AIIB e o Novo Banco de Desenvolvimento – do BRICS), consolida sua moeda como instrumento de trocas regionais, e oferece infraestrutura e crédito a países que já não veem no Ocidente sua única opção. A Índia, o Vietnã, a Indonésia e mesmo países africanos também emergem como polos de estabilidade relativa, com peso demográfico, crescimento econômico e capacidade de articulação regional. E para fechar a história, Japão e Coreia do Sul se encontram em Seul com representantes chineses para buscar alternativas para a abertura comercial conjunta.

O mundo pós-2025 pode não ter um hegemon claro. Mas terá centros de poder, interesses cruzados e coalizões flexíveis. A fragmentação da ordem liberal não significa o retorno ao caos — mas sim um novo tipo de ordenamento, mais contingente, mais regionalizado, menos hierárquico. A globalização não acabou. Mas deixou de ser dirigida por um só maestro.

O mundo em colapso

A imagem já foi usada em textos anteriores. Trata-se da imagem do relógio do Juízo Final. Que está se aproximando meia noite. Para quem desconhece a história. Em 1947, a artista norte-americana, Martyl Langsdorf, esposa do físico Alexander Goldsmith Jr, do projeto Manhattan (fabricação da bomba atômica), desenhou um relógio para a capa do Bulletin of the Atomic Scientists, da Universidade de Chicago.

O relógio faz uma analogia com a raça humana, mostrando que a Humanidade está a segundos da meia noite, hora em que o planeta será devastado por uma guerra nuclear. Todos os anos, a imagem é redesenhada no boletim dos cientistas atômicos, onde se anuncia o apocalipse. Pois bem, nesses primeiros meses de 2025, a meia noite da catástrofe chegará em 90 segundos.

E quem sugere essa proximidade são os dirigentes das grandes potências que têm se referido em suas falas sobre a possibilidade de usar armas de destruição do planeta para defender seus territórios.


Vejamos. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia ultrapassa os limites do bom senso. Fala-se em cessar fogo, mas o que se vê, a cada semana, é a expansão do poder destrutivo dos dois países. A Rússia promete agir contra o que chama de militarização da União Europeia, após os líderes do bloco concordarem em aumentar gastos com defesa.

Na Faixa de Gaza, a guerra entre Israel e os palestinos não dá sinais de arrefecer.

Guerras se multiplicam nos quadrantes do planeta. Além da guerra entre Rússia e Ucrânia e entre Israel e Palestinos, vivem situações de conflitos os seguintes países: Síria, Iêmen, Sudão, República Democrática do Congo, Etiópia, Afeganistão, Líbia e Mianmar.

Um estudo realizado pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês) mostra que, no ano passado, houve um grande aumento no sofrimento humano e na intensidade das guerras e conflitos globais. Mais de 200 mil pessoas foram mortas em 134 guerras e outros conflitos armados, representando um aumento de 37% em relação ao número de vítimas registradas no período dos 12 meses imediatamente anteriores, quando o confronto na Ucrânia já estava em seu segundo ano.

O mundo vive um dos ciclos mais tensos de sua história, a ponto de se indagar se não estamos voltando aos tempos da Guerra Fria, período de tensão geopolítica entre a União Soviética e os Estados Unidos e seus respectivos aliados, o Bloco Oriental e o Bloco Ocidental, após a Segunda Guerra Mundial.

O Papa Francisco diz que o mundo está a viver um momento de “autodestruição” com conflitos por todos os lados. Na encíclica “Laudate Deum”, de 2023, afirmava: urge “desarmar as palavras, para desarmar as mentes e desarmar a Terra”. E fazia o alerta: o mundo está “entrando em colapso e talvez se aproximando de um ponto de ruptura“. O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, também alerta: a “Guerra Fria voltou”.

As tensões se acirram. Nas últimas semanas, a “guerra comercial” deflagrada pelo senhor do topete laranja, paira como ameaça sobre as já combalidas economias do planeta. A trégua de 90 dias dada pelo presidente czar americano, ao suspender o tarifaço que impôs a mais de 60 países e blocos comerciais (com exceção da China), é um alívio passageiro. O mundo pós-tarifaço do mandachuva do Império Norte já não é o mesmo.

A paisagem é tão cheia conflitos que até a interpretação do professor Samuel Huntington em seu livro “Choque de Civilizações”, escrito há 40 anos, parece atual para descrever o caos que o mundo vivencia: “quebra da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente, onda global de criminalidade, máfias transnacionais e cartéis de drogas, declínio na confiança e na solidariedade social, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver.”

A violência se expande em todas as áreas. No Irã, os aiatolás se voltam contra as mulheres. Que vão às ruas para protestar contra o Estado religioso. Em diversas regiões do planeta, o trabalho escravo aumenta seus espaços. Aqui, em nossas plagas, o trabalho infantil desafia as forças da lei. A floresta amazônica é usada como um grande corredor para exportação de drogas. A Nação yanomami continua sendo invadida por garimpeiros.

A sensação é a de que o País navega nas ondas da impunidade. Habitamos um território da desobediência explícita, o que justifica o chiste sobre nossa sociedade: Há quatro tipos de sociedade no planeta: 1. a inglesa, liberal, onde tudo é permitido, exceto o que é proibido; 2. a alemã, rígida, onde tudo é proibido, exceto o que for permitido; 3. a ditatorial (Coréia do Norte), fechada, onde tudo é proibido mesmo o que for permitido; e 4. a brasileira, onde tudo é permitido mesmo o que for proibido.

Nada mais surpreende. O PCC constrói seu cofre de Tio Patinhas, onde esconde cerca de R$ 10 bilhões. Seus negócios se espalham pelo mundo. E onde estão seus comandantes? Em celas de segurança máxima, onde estão trancafiados.

Resumo desse relato: guerras armadas, conflitos, disputas, mortandade, guerra comercial, carteis de droga, Estados fracassados, Nova Guerra Fria, trabalho escravo, trabalho infantil, destruição do meio ambiente, violência contra povos originários, violência contra a mulher – são sinais de que o mundo está em colapso. O relógio do Juízo Final marca, hoje, 90 segundos para Meia Noite, o final dos tempos.