terça-feira, 9 de outubro de 2018

Gente fora do mapa


O partido anti-Lula

Durante as próximas três semanas você vai ler, ver e ouvir um oceano de explicações perfeitas sobre o que aconteceu nas eleições deste domingo – e em todas elas, naturalmente, os cérebros da análise política nacional dirão ao público o quanto acertaram nos seus pronunciamentos durante a campanha eleitoral, embora tenha acontecido em geral o contrário de quase tudo que disseram. A mesma cantoria, com alguns retoques, deve ser feita daqui para frente para lhe instruir em relação ao desfecho do segundo turno, no próximo dia 28 de outubro. Em favor da economia de tempo, assim, pode ser útil anotar algumas realidades básicas que o primeiro turno deixou demonstradas.

1 – A grande força política que existe no Brasil de hoje se chama antipetismo. É isso que deu ao primeiro colocado, Jair Bolsonaro, 18 milhões de votos a mais que o total obtido pelo “poste” do ex-presidente Lula. Esqueça a “onda conservadora”, o avanço do “fascismo”, as ameaças de “retrocesso” – bem como toda essa discussão sobre homofobia, racismo, machismo, defesa da ditadura e mais do mesmo. Esqueça, obviamente, a força do PSL, que é nenhuma, ou o esquema político do candidato, que não existe. O que há na vida real é uma rejeição tamanho gigante contra Lula e tudo o que cheira a Lula. Quem melhor soube representar essa repulsa foi Bolsonaro. Por isso, e só por isso, ficou com o primeiro lugar.

2 – O PT, como já havia acontecido nas eleições municipais de 2016, foi triturado pela massa dos eleitores brasileiros. Seu candidato a presidente não conseguiu mais que um quarto dos votos. Os candidatos do partido a governador nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul tiveram votações ridículas. Todos os seus candidatos “ícone” ao Senado, como Dilma Rousseff em Minas Gerais, Eduardo Suplicy em São Paulo e Lindbergh Farias no Rio de Janeiro foram transformados em paçoca, deixando o PT sem um único senador nos três maiores colégios eleitorais do Brasil. Mais uma vez, o partido só tem a festejar a votação no Nordeste – e mais uma vez, ali, aparece aliado com tudo que existe de mais atrasado na política brasileira.

3 – A força política de Lula, que continua sendo descrito como um gênio incomparável no “jogo do poder”, é do exato tamanho dos resultados obtidos nas urnas pelo seu “poste”. As mais extraordinárias profecias vêm sendo repetidas, há meses, sobre a sua capacidade de “transferir votos” e a sua inteligência praticamente sobre-humana em tudo o que se refere à política. Encerrada a apuração, Lula continua exatamente onde estava – trancado num xadrez em Curitiba e com muito cartaz do “New York Times”, mas sem força para mandar em nada.

4 – Os institutos de “pesquisa de intenção de voto”, mais uma vez, fizeram previsões calamitosamente erradas. Dilma, segundo garantiam, ia ser a “senadora mais votada do Brasil”. Ficou num quarto lugar humilhante. Suplicy, uma espécie de Tiririca-2 de São Paulo, também era dado como “eleito”. Foi varrido do mapa. Os primeiros colocados para governador de Minas e Rio de Janeiro foram ignorados pelas pesquisas praticamente até a véspera da eleição. Tinham 1% dos votos, ou coisa que o valha. Deu no que deu.

5 – O tempo de televisão e rádio no horário eleitoral obrigatório, sempre tido como uma vantagem monumental — e sempre vendido a peso de ouro pelas gangues partidárias — está valendo zero em termos nacionais. Geraldo Alckmin tinha o maior espaço nos meios eletrônicos. Acabou com menos de 5% dos votos. Bolsonaro não tinha nem 1 minuto. Foi o primeiro colocado. Parece não valer mais nada, igualmente, a propaganda fabricada por gênios do “marketing eleitoral” da modalidade Duda Mendonça-João Santana – caríssima, paga com dinheiro roubado e criada numa usina central de produção. A votação de Bolsonaro foi construída nas redes sociais, sem comando único e sem verbas milionárias.

Daqui até 28 de outubro o público será apresentado a outras previsões, teoremas e choques de sabedoria. É bom não perder de vista o que acaba de acontecer antes de acreditar no que lhe anunciam para o futuro.

O preso e o oficial

A eleição de 2018, a ser decidida em 28 de outubro próximo, foi disputada sob a égide das fake news, expressão inglesa da moda que serve para disfarçar palavras mais duras na língua do caolho Camões, tais como mentira, lorota e estelionato. O Tribunal Superior Eleitoral finge combater as que circulam nas redes sociais e ficaram famosas por causa dos tweets do presidente dos EUA, Donald Trump. Mas não se conhece autoridade no Estado brasileiro que investigue pra valer as notícias falsas que deturpam e fraudam, de verdade, a decisão soberana do eleitor em campanhas e palanques, do bico de pena da Primeira República às urnas eletrônicas.

Coleguinhas apressados no Brasil e no exterior, acadêmicos militantes e analistas ignorantes e improvisados em geral detectam na revolta contra o Estado estroina e espoliador uma onda “conservadora”. O termo é suave para definir esse discurso infame. A palavra direita, usada com nojo e sem pudor, até por jornais de alta circulação, passou a ser mero eufemismo, quando cotejada com as lembranças do Holocausto e da ditadura militar, cujos fantasmas pairam em discursos de candidatos alijados do processo pelo poder soberano do eleitor. Um desses candidatos, Ciro Ferreira Gomes, coronel da República de Sobral nascido em Pindamonhangaba, usa termos como nazi-fascistas para definir os quase 50 milhões de brasileiros que deram o primeiro lugar no primeiro turno ao deputado e capitão reformado Jair Bolsonaro. O espelho do multipartidário do Ceará deve estar quebrado, porque filhote da ditadura é ele mesmo, civil servil dos militares de 1964, na condição de parlamentar da Arena. E com irrelevantes serviços prestados aos desgovernos petistas de Lula e Dilma, dos quais se aproxima e se afasta de acordo com as próprias conveniências.


Se tivesse frequentado aulas de História no grupo escolar, talvez lhe fosse permitido vislumbrar a realidade que muitos acadêmicos, incluindo historiadores, fingem não ver. Getúlio Vargas, estancieiro de São Borja, no Sul, tornou-se o pai dos pobres e a mãe dos ricos ao fundar o Estado-empresário na cidade onde os cavaleiros gaúchos amarraram seus pingos, antiga Corte e capital da República, São Sebastião do Rio de Janeiro. Desde os idos da ditadura do Estado Novo, os cidadãos brasileiros têm sustentado a ineficiência de uma casta burocrática incompetente e gulosa, pendurada nos milhões de cabides de empregos da máquina pública. Os militares, dos quais o candidato do partido fundado para manter a herança getulista foi valet de chambre (criado de quarto), insurgiram-se contra o populismo do caudilho, cuja memória é desde sempre patrimônio político do engenheiro Leonel Brizola e de seus prosélitos no atual PDT.

Só que, como diz a juventude dourada das praias de Fortaleza, Gegê já era. Agora a moda é Lula, o presidente mais popular da História da nossa República. Ciro Gomes não sabe e não quer aprender que, da mesma forma que serviu aos militares antigetulistas que aprenderam a tratar os políticos civis a seu serviço como “vivandeiras de quartel”, está fadado a passar a vida invejando e louvando os usuários de macacão e colarinho branco que hoje compõem a república da roubalheira. Sob os auspícios do ferramenteiro de Garanhuns, essa república bestializa o populacho inerte, sob o signo do Estado larápio, no qual o contribuinte espoliado sustenta não apenas os marajás, que se servem do serviço público, mas também os socialistas de araque, que surrupiam o erário sem deixar moeda.

Fora do jogo, Ciro voltará ao aprisco a que sempre pertenceu, apoiando Lula, que, driblando a leniente e serviçal dita “Justiça” Eleitoral, concorre à Presidência da República, ao transformar seu poste, preboste, preposto, pau-mandado e moleque de recados num simples codinome. Assim como Dilma Rousseff era Estela para confundir a repressão à guerrilha no regime militar, a que Ciro serviu, Lula fez a barba, vestiu a beca do Professor Preguiça e cobra a conta dos cidadãos que alimentou na urna mais próxima. Esta é outra lorota desta eleição: o ringue de MMA do espaço cívico não sedia lutas entre pobres e ricos, socialistas de araque e nazi-fascistas de ocasião, em suma, esquerda e direita. Trata-se apenas de uma disputa que vencerá ou a garantia da manutenção incólume do Estado-empresário, que sobrevive da miséria dos pobres e distribui prebendas entre miliardários, sob a gatunagem do bem, ou o justiceiro, que não parece bem saber como, mas promete ao cidadão indignado combater violência e furto.

Quase 50 milhões de brasileiros foram às urnas com medo, coragem, raiva e juízo para acabar com a farra do Estado-empresário que virou larápio. Não acabou no primeiro turno. E mais uma vez, no segundo, a cidadania brasileira decidirá de que lado está: se se disporá a desmontá-lo ou se se renderá ao carisma de Lula. Ou seja, perdoará liminarmente seus crimes, fartamente comprovados, em gratidão pelos anos de alívio em que se beneficiaram do Bolsa Família, frequentaram escolas nas quais nada aprenderam, viajaram de avião e compraram automóveis a perder de vista, que depois, desempregados pelo “gópi”, não tiveram mais como pagar?

Pode parecer cínico e cruel, mas se trata apenas da realidade nua, dura e crua dos fatos. Foram tão bons os tempos do padim que não pode ser verdadeiro o discurso de quem atribui a felicidade àquela bonança, que, na verdade, fartura nunca foi. Não é simples mesmo estabelecer uma conexão lógica entre a carne gorda das vacas de antanho e os esqueletos esquálidos destes tempos de milhões de desempregados dormindo ao relento e pedindo uma esmola para matar a fome e um cobertor para suportar os rigores do inverno de nossa desesperança. Quem achar que a história não é boa não perderá por esperar o pior, que há de vir.

O capitão teve quase a metade dos votos válidos dos brasileiros, que não suportam mais pagar com seu emprego a incompetência do Estado-empresário, somada à volúpia infinita do Estado-larápio. Eles armaram uma tempestade de votos para dar uma goleada no primeiro tempo, mas o jogo, como diria Abelardo Barbosa, o Velho Guerreiro, só acaba quando termina. Nele o PT de Lula, vulgo Haddad, elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados, Casa do poder que manda na República da coalizão. Se ganhar a parada final, o que é muito difícil, mas nunca impossível, o partido dos tesoureiros onipresentes nos escândalos de corrupção escolherá entre velhos aliados suspeitos sob a mira da Lava Jato um presidente do Senado para chamar de seu. E a suprema casa da tolerância federal, que mantém o “guerrilheiro” José Dirceu ­- cumprindo pena de 30 anos e meio por corrupção passiva e lavagem de dinheiro – solto pelo presidente Toffoli, ex-advogado dele, e do solta-tucanos Gilmar.

A classe média reclamou do Estado que queimava sua poupança nas manifestações de rua em 2013 e foi traída na eleição fraudada de 2014, em que Dilma e Temer gastaram 1 bilhão e 400 milhões de reais, segundo Palocci, que coordenou a primeira campanha de madama tatibitate. E por Aecinho, que vendeu o ânimo opositor pelas migalhas que caíram da mesa do churrasco dos irmãos Batista e pelo propinoduto de uma empreiteira da Bahia de todos os demônios, onde Jaquinho das candongas reina mais absoluto. Os tucanos sapatearam na cova reservada para o PT no massacre das eleições municipais de 2016 e agora se escondem num túmulo abandonado, imaginando que serão esquecidos pelos que esqueceram.

O Senado sem Dilma será menos ridículo mercê do eleitor mineiro que tornou inócua a penada de Lewandowski, que lhe permitiu que ela disputasse cargo público antes de completar oito anos do quarentene após o impeachment. Bob Dylan será poupado dos assassinatos de Blowin in the Wind por Eduardo Suplicy. Lindbergh ficará rouco de responder a xingamentos de populares quando pensar que terá sido esquecido e sair às ruas. Requião e Ciro treinarão sua grosseria sem freios em torneios retóricos particulares entre eles. Ou seja, os lugares que eles não mais frequentarão se tornarão mais civilizados e agradáveis.

Mas é cedo para saber se a República larápia ainda será combatida por policiais, procuradores e juízes federais que atuam desde 2014 na Lava Jato. Isso dependerá da decisão medrosa, corajosa, raivosa e racional do cidadão no domingo 28. Graças a Deus, ele continua dono dos destinos da República. E resolverá se chegou, ou não, a hora da libertação do jugo de quem furta nosso suado dinheirinho se fazendo de defensores do povo.

O Brasil troca as fraldas

O escritor português Eça de Queiroz dizia: “Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos pelo mesmo motivo.” A partir das manifestações de junho de 2013, os brasileiros descobriram que com um celular à mão era possível mobilizar outras milhões de pessoas e participar ativa e diretamente da política. A maioria dos partidos políticos, entretanto, continuou na mesmice, curtindo os conchavos, os cargos, os R$ 2,6 bilhões (2018) dos fundos partidário e eleitoral e os privilégios. Deu no que deu: a indignação das redes sociais foi para as urnas.

Já havia sinalizações claras do que estava para acontecer. A Fundação Getúlio Vargas (FGV) constatou no segundo semestre do ano passado que os brasileiros não confiavam no presidente da República (83,2%), nos políticos eleitos (78,3%) e nos partidos (78,1%).

Curiosamente, para os entrevistados, as duas instituições mais confiáveis eram a Igreja (61,5%) e os militares (45,8%). A corrupção era a principal responsável pela angústia do brasileiro, independentemente de idade, nível de escolaridade, renda e região do país. A insatisfação era tamanha que 71,6% dos brasileiros afirmaram que, se fosse possível, sairiam do Brasil.


Na contramão dos anseios de moralização, os atuais deputados federais e senadores têm, somados, 1.274 inquéritos e processos judiciais. A bancada campeã é a de São Paulo, que responde a 200 processos judiciais; seguida por Minas Gerais, com 100; Santa Catarina, com 86; e o Rio de Janeiro, com 81, segundo a ONG Ranking dos Políticos. Os partidos políticos, em sua maioria, também não afastaram os seus integrantes atolados na Lava-Jato e ainda “rasgaram” as Dez Medidas de Combate à Corrupção propostas por 1,6 milhão de brasileiros. Ao virarem-se de costas para a sociedade, pagaram o preço…

Dos 32 senadores que tentaram a reeleição, só oito conseguiram. Entre os 24 que fracassaram está a cúpula do Senado, incluindo o presidente Eunício Oliveira (MDB-CE), o vice-presidente Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) e Romero Jucá (MDB-RR), que estava há 24 anos na Casa e foi líder dos governos Lula, Dilma e Temer. Além desses, ficaram de fora Edison Lobão (MDB-MA), Jorge Viana (PT-AC), Magno Malta (PR-ES) e Sarney Filho (PV-MA), entre outros. A família Sarney, aliás, sofreu uma dupla derrota, pois Roseana Sarney (MDB-MA) não teve sucesso na tentativa de eleger-se governadora. Vários desses já vão tarde…

Ainda em relação ao Senado, ao contrário do que as pesquisas indicavam, Dilma Rousseff (PT) ficou somente na quarta colocação em Minas Gerais, e o ex-senador Eduardo Suplicy obteve apenas o terceiro lugar em São Paulo.

Sob a ótica da Lava-Jato, 47 investigados não se elegeram. No entanto, apesar das delações e citações, cinco réus, 24 investigados e seis denunciados foram eleitos. Na relação estão Jader Barbalho (MDB), o mais votado para o Senado no Pará, Renan Calheiros (MDB), o segundo colocado em Alagoas, e Ciro Nogueira (PP), o primeiro colocado para o Senado no Piauí, embora tenha sido alvo de mandados de busca e apreensão na reta final da campanha. A faxina poderia ter sido maior…

Dentre os senadores investigados, dois conseguiram se eleger, ao concorrerem ao cargo de deputado federal: Gleisi Hoffmann (PT-PR), que foi absolvida pelo STF, e Aécio Neves (PSDB-MG), réu na mesma Corte por corrupção passiva e obstrução da Justiça. Entre os 47 alvos da Lava-Jato que foram derrotados também estão, entre outros, o ex-governador paranaense Beto Richa (PSDB), que chegou a ser preso durante a campanha, Marconi Perillo (PSDB-GO), Lindbergh Farias (PT-RJ) e Cândido Vaccarezza, que era do PT e passou para o Avante.

Alguns familiares de políticos famosos não estarão em Brasília em 2019. Os filhos de Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Jorge Picciani, Roberto Jefferson e Marcelo Crivella não obtiveram vagas na Câmara dos Deputados na próxima legislatura.

Voltando a Eça de Queiroz, com certeza ainda existem na República muitas fraldas a serem trocadas. As mudanças que a sociedade deseja estão apenas começando.

Brasil na linha de tiro


Urnas deram tapa na cara da política tradicional, que terá de se reorganizar

Cinco anos após multidões tomarem a rua, no maior espasmo a esgarçar a tessitura social brasileira desde a redemocratização, o processo de negação da política tradicional ganhou um novo capítulo.

Os resultados do primeiro turno das eleições deste ano indicam uma aglutinação de forças em torno da figura de Jair Bolsonaro (PSL). Ganhe ou não a segunda rodada contra Fernando Haddad (PT), o recado está dado.




Em 2014, ainda na esteira dos protestos do ano anterior, o condomínio PT-PSDB ainda logrou manter coesa a energia social liberada pelas ruas. Isso parece ter dado uma falsa ilusão aos líderes da política tradicional.

A debacle econômica e política do governo Dilma Rousseff (PT) desarranjou o acerto, golpeado fortemente pelo clima moralizante da Operação Lava Jato, e a negação da política adernou mais à direita. Os protestos durante o impeachment da petista em 2016 já davam essa senha.


A transformação de Luiz Inácio Lula da Silva em totem único da esquerda acabou por alimentar as chamas antipetistas que crepitam na fogueira antiestablishment.

Se isso explica em parte a ascensão de Bolsonaro, depositário claro do desejo pelo "novo", também explicita a inação do sistema estabelecido. Talvez nomes forjados nos últimos anos com essa marca nas siglas tradicionais tivessem sucesso na missão, mas claramente os partidos se apegaram a fórmulas convencionais —a recriminação já está em curso, a começar pelo maior derrotado da eleição, o PSDB.

A disparada de uma manada de desconhecidos até ontem em estados importantes, como Minas e Rio, indica não só uma vitória pessoal de Bolsonaro. É a expressão espraiada desse voto de protesto, que também é projetado na lista dos candidatos a deputado e senador mais bem colocados.

O quanto isso "quebra o sistema", como defende o polêmico líder da disputa neste primeiro turno, é talvez a primeira trincheira que qualquer presidente eleito em 28 de outubro terá de encarar. Brasília é um complexo organismo com leis próprias, em que instâncias como o Colégio de Líderes da Câmara valem mais que centenas de milhares de votos individuais.

É previsível que, vitorioso, Bolsonaro vá estimular uma forma nova de relacionamento baseado na força que associou-se a seu nome no país. Será particularmente interessante acompanhar como se portará o enxame de políticos que irá buscar se unir ao capitão reformado, que fez seu nome ao negar esses seus antigos superiores informais na Câmara.

No caso de Haddad, parece mais seguro especular uma manutenção mais tradicional do processo político. A dificuldade será de outra ordem, a hostilidade de um Congresso na qual a base natural de apoio do PT estará bastante abalada. Tudo se negocia, claro, mas é possível prever turbulências diferentes daquelas que Bolsonaro enfrentaria.

Do ponto de vista ideológico, é ocioso dizer que o conservadorismo social brasileiro mostrou seus dentes após anos de ridicularização por parte do establishment. O tio do churrasco, para usar a imagem preconceituosa à mão de dez em cada dez pessoas que se dizem progressistas, chegou lá. Se dará as cartas ou se acabará absorvido de forma orwelliana ao sistema vigente, é algo a ver.

Igor Gielow

Brasil mostra sua cara. Mas com dignidade

Eleições, dias que deveriam ser de festa e hoje são de discórdia, como se os principais e visíveis problemas fossem sentidos só por uns ou só por outros. Violência e virulência, assuntos deslocados, mentiras pavorosas, egoístas hipocrisias religiosas e uma cordata ignorância entraram no campo onde todos perdem. E isso não é futebol que nos deixa tristes apenas por alguns dias.

Serão anos duros pela frente, haja o que houver, isso está muito claro nesse país que não só está dividido, mas cortado em pedaços arrastados e espalhados salgados e com gosto de fel pelos chãos de todas as regiões. As eleições deste ano marcam um dos períodos mais tristes que vivemos, pelo menos desde que vim ao mundo, e já são seis décadas. Ainda – ainda, repito, e que pare por aqui – apenas não comparável aos 21 anos de uma ditadura que nos feriu, censurou, torturou, matou, cortou as asas de nossa imaginação, deixando apenas um toco de esperança, e que mal ou bem vinha de novo se reconstruindo.

Está uma tristeza, um desalento. Mas do que isso, um processo de cegueira coletiva, surdez geral, insanidade e infantilização de costumes, busca de falsos heróis, falta de educação, gentileza, raciocínio, de comunicação interpessoal. Não tem graça alguma, mas tem quem se ache o máximo por apoiar uma pessoa que reúne as piores outras pessoas ao seu redor, com a pior família, além dos piores pensamentos, o despreparo, e que pode nos levar a situações insustentáveis inclusive diante do mundo hoje globalizado do qual dependemos economicamente.


Do outro lado, há os que surgiram impondo um candidato fraco, fracoide, querendo nos fazer de palhaços. E que não é ele, é o outro, mas o outro está preso, e ele atua por telepatia, sem vontade própria, sem segurança, sem qualquer condição. E sem pedir desculpas pelo mal que fizeram e nos levou ao ponto onde estamos. Para eles, a culpa é sempre “dos outros”, como sobreviventes de Lost. O avião caiu, mas eles o querem remontar só com peças velhas. Ainda assim batem no peito como vestais. Também são machistas e a real é que tratam questões de comportamento de formas muito duvidosas e claudicantes.

Onde foi que nos perdemos dessa forma? Para agora termos diante de nós duas forças tão perigosas? Para onde correr? Onde está a ponte?

Há quem diga que foi tanta corrupção aparecendo. Credite isso apenas à Liberdade, e jure fidelidade a ela. A corrupção sempre esteve aí, inclusive no tempo das fardas, mas não podíamos dizer, não podíamos saber, não podíamos falar, não podíamos escrever.

Há quem diga que a violência está espalhada. E está mesmo, de uma forma terrível, mas só piorará porque poderão ocorrer confrontos ainda mais violentos e não só entre bandidos e organizações criminosas, mas entre pessoas comuns babando de ódio como as que já estamos encontrando nesse momento, inclusive amigos que considerávamos e que agora vemos apoiando, aplaudindo a insanidade, de um lado e de outro.

Mas o Brasil não é uma laranja cortada, e nós não somos gomos. Aproveito esse espaço para um apelo emocional, de coração: não deixem imperar a ignorância. Nossos maiores problemas são comuns a todos. Parem de se infernizar e nos infernizar usando mentiras, desconhecendo a história, falando esse português ruim. Procurem saber mais sobre sistemas políticos antes de falar em comunismo, fascismo. Entendam melhor o que é a cultura, as características regionais, leis de incentivo, como funcionam. Abram os olhos, esfreguem bem, vejam: as mulheres e crianças vêm sendo as maiores vítimas da ignorância e do apelo à violência.

Mais: redes sociais não são a vida real. Não faça e não deixe circular informações falsas. A realidade já é bem terrível, não precisa ser piorada, e precisa da imprensa forte e livre para ser vislumbrada – não bata palmas para malucos dançarem. Sejam eles de esquerda, direita – não são socos de uma luta de boxe ou MMA.

Não podemos quebrar nossa cara, nem termos nossas orelhas deformadas fazendo ouvidos moucos para situação tão delicada.

Vivo dias angustiantes. Sei que não sou só eu que não sou nem de lá nem de cá, e que procura a tal saída dessa caverna pré-histórica em que nos trancaram. Para acharmos, o trabalho terá de ser coletivo, e teremos de nos dar as mãos. Firmemente. Sem traições.

Marli Gonçalves

Eleitor brasileiro tocou fogo no circo da política

Dizer que o 7 de outubro de 2018 foi o mais eloquente recado enviado pelas urnas à oligarquia política desde a redemocratização do Brasil é pouco. Houve algo bem mais grave: o eleitor tocou fogo no circo. Foi como se quisesse deixar claro que não tem vocação para palhaço. As urnas carbonizaram parte do elenco que reagia à Lava Jato com malabarismo verbal, trapezismo ideológico e ilusionismo.

A velha política está em chamas. Tomado pelas proporções, o incêndio lembra aquele que consumiu o acervo do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Salvaram-se múmias como Renan Calheiros, Jader Barbalho, Ciro Nogueira e Eduardo Braga. Mas viraram carvão as pretensões eleitorais de peças como Dilma Rousseff, da sessão de paleontologia. Reduziram-se a cinzas mandatos do porte dos de Romero Jucá, Eunício Oliveira e Edson Lobão, da ala dos invertebrados.


Desde 2014, quando a operação foi deflagrada, os oligarcas partidários cultivavam a fantasia de que seria possível “estancar a sangria”. Gente poderosa preparava para depois da abertura das urnas uma investida congressual para transformar propinas em caixa dois. O eleitor arrancou o nariz vermelho, jogou longe o colarinho folgado, livrou-se dos sapatos grandes e riscou o fósforo.

Sobraram chamas para investigados, denunciados e até para críticos do juiz Sergio Moro e dos procuradores da força-tarefa de Curitiba. Vai abaixo uma primeira lista das vítimas das labaredas. Inclui gente barrada no Senado, na Câmara e em governos estaduais:

Eunício Oliveira (MDB-CE); Romero Jucá (MDB-RR); Beto Richa (PSDB-PR); Marconi Perillo (PSDB-GO); Roberto Requião (MDB-PR); Lindbergh Farias (PT-RJ); Jorge Viana (PT-AC), Delcidio do Amaral (PTC-MS); Marco Antonio Cabral (MDB-RJ), filho do presidiário Sergio Cabral; Daniele Cunha (MDB-RJ), filha do presidiário Eduardo Cunha; Cristiane Brasil (PTB-RJ), filha do ex-presidiário Roberto Jefferson; Lúcio Vieira Lima (MDB-BA), irmão do presidiário Geddel Vieira Lima; Leonardo Picciani (MDB-RJ), filho do preso domiciliar Jorge Picciani; Dilma Rousseff (PT-MG); Fernando Pimentel (PT-MG); Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM); Roseana Sarney (MDB-MA); Sarney Filho (MDB-MA); Edison Lobão (MDB-MA); Paulo Skaf (SP), Benedito de Lira (PP-AL); André Moura (PSC-SE); Valdir Raupp (MDB-RO); Cassio Cunha Lima (PSDB-PB); Garibaldi Alves Filho (MDB-RN); e Wadih Damous (PT-RJ).

Será necessário esperar pelo resultado do rescaldo para saber o que sobrou e o que o eleitor colocou no lugar. Sintomaticamente, o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa de Curitiba, soltou fogos nas redes sociais ao tomar conhecimento das totalizações de votos da Justiça Eleitoral.

“Parabéns aos novos senadores e deputados!”, escreveu Deltan. “Houve avanços significativos contra a corrupção: pelo menos uma dezena de envolvidos graúdos na Lava Jato perderam o foro privilegiado. Cerca de uma dezena de senadores do movimento Unidos Contra a Corrupção se elegeram. Além disso, movimentos de renovação apartidários elegeram vários candidatos —o RenovaBR, por exemplo, elegeu 16 candidatos.”

Deltan realçou um detalhe monetário: o eleitor puniu os candidatos brindados com fatias mais generosas do fundão de financiamento eleitoral público. Nas palavras do procurador, a “sociedade remou contra a correnteza, pois milhões do novo fundo eleitoral bilionário foram direcionados para campanhas da velha política.”

Na avaliação do chefe da Lava Jato, o fogo ateado pelo eleitor no circo pode não resolver o problema. Mas reacendeu a percepção coletiva sobre a importância da boa política: “(…) Podemos não ter o Congresso dos sonhos, mas não se trata agora de ter o congresso dos sonhos e sim de ajudar a construir o melhor país possível com os eleitos. O único caminho para um país melhor é o da política, da luta contra a corrupção e da democracia.”

Quando o desalento foi às ruas, a partir de junho de 2013, as broncas do brasileiro englobaram causas variadas —do horror à ruína de Dilma ao clamor pela volta da ditadura. Naquela ocasião, os queremistas da intervenção militar eram uma minoria na multidão. Em 2014, sobreveio a Lava Jato. Dilma reelegeu-se por pequena margem de votos.

A partir de 2015, o asfalto passou a roncar pelo impeachment. As manifestações eram menores que as de 2013. Até por essa razão, ficou mais fácil notar a presença de personagens até então vistos como folclóricos. Jair Bolsonaro deixou-se fotografar com uma camiseta na qual se lia: “Direita já”. Na foto, ele era carregado por admiradores.

Nessa mesma época, Lula, o PT e seus satélites engrossaram a pregação segundo a qual a Lava Jato criminalizou a política. Depois do grampo do Jaburu, Michel Temer e o seu MDB aderiram ao coro. Pilhado achacando Joesley Batista, Aécio Neves ecoou o mesmo lero-lero. Ao tocar fogo no circo, o eleitor sinalizou que pensa de outra maneira: quem criminalizou a política foram os criminosos. Culpar os investigadores é como responsabilizar a radiografia pela doença.

Graças ao excesso de malabarismo, o “Direita Já” da camiseta de Bolsonaro deixou de ser uma reivindicação. Ganhou ares de constatação. Nas próximas semanas, os críticos da Lava Jato dirão que a operação tirou a ultradireita do armário. Chamarão Bolsonaro de neo-Trump. Recordarão que, na Itália, a Operação Mãos Limpas levou ao poder Silvio Berlusconi. E esquecerão de lembrar —ou lembrarão de esquecer— que Lula tornou-se o principal cabo eleitoral de Bolsonaro ao criar, na cadeia, a figura do presidenciável-laranja. O fogo arderá no circo por muito tempo.