quarta-feira, 29 de junho de 2022

Brasil do Sem

 


Domingo a gente não tinha nada para comer

Assim dona Janete Evaristo expôs sua fome na TV. Moradora de Andaraí, no Rio de Janeiro – viúva, desempregada, responsável por cinco pessoas – era mais um na fila de um dos programas que distribuem refeições aos muitos que, hoje, têm fome e não têm o que comer. Fez chorar a repórter que a entrevistava. E fez chorar quem soube ou viu a cena na TV.

Deveríamos falar mais, falar muito sobre a fome. Ela é visível. Tem cara e corpo, magro e triste. É parte do cotidiano de todos que se movimentam por ruas, praças, parques, estradas, becos, favelas.

O pintor de paredes traz na marmita arroz, um pouco de feijão, ovo. Às vezes, só arroz e feijão – pouco.

A diarista, agradece o prato bem servido. Olha e faz o pedido. Posso levar um pouco pra janta da minha filha?

Cabeça baixa, explica. Tô quase sem nada em casa. O da mão pra boca ta cada vez mais curto, menor. Há humilhação na confissão da carência.

Como não sentir essa dor tão perto?

São trabalhadores que, ainda que tenham serviço remunerado, por ele não recebem mais o suficiente para ter a certeza da comida do dia seguinte.

Como dona Janete do Andaraí, país afora, 33 milhões de brasileiros sofrem a dor, a angústia da fome. Quase 7% desses vivem no estado Rio de Janeiro. O que significa, ali, hoje, há 1,2 milhão de famintos.

Há gente por trás dos números e dos percentuais. São pessoas, com a diária necessidade básica e fundamental de comer. Muita gente. Pouca comoção com a tragédia desses tantos sem comida no país que produz e exporta muito alimentos.

O Brasil, desanda no quesito responsabilidade social.

Não há decreto de sigilo que esconda a fome no Brasil de agora. Anos e anos para reduzir essa vergonha. Pouco tempo para tirar prato cheio da mesa de 1/5 dos brasileiros.

Há fome no mundo. A pandemia agravou. Sim. Mas, no Brasil, antes da pandemia, a fome já ganhava fôlego.

Nos derradeiros 10 anos, a insegurança alimentar galopou na direção de 58% da população brasileira. Gente de carne e osso que, em algum grau, convive com falta de alimentos. Leve, moderada ou grave, de novo, a fome retornou ao cotidiano da população brasileira.

A fome é uma indignidade. Permitir seu avanço é desumano.

O Brasil oficial de 2022 não tem envergonha pela fome de milhares. Não tem piedade.

O Brasil oficial, com apoio de 20% da população, prega o retorno do Deus, Pátria e Família – aí só cabendo o seu modelo de Deus, de pátria e de família.

Na arrogância de suas certezas, além de promover e embalar a fome, insistem em tomar direitos expressos na Constituição.

Loura, bela e arrogante, a juíza nega direito ao aborto a uma criança estuprada.

Na mesma semana, desumana inconsequência de muitos, expõe a vida e a dor de outra mulher estuprada – jovem atriz, de 21 anos, que, em silêncio, carregou o drama da gravidez advinda do abuso.

E Klara Castanho, a atriz, foi mais uma vez estuprada. Agora em praça pública e por duas mulheres – uma enfermeira, uma youtuber. Zero sororidade. Compaixão nenhuma. Máxima e inconsequente invasão de privacidade.

Dali pra frente, Klara, exposta em postas, foi mais notícia do que a fome. Sem direito a decreto oficial de sigilo – esse que costuma oferecer esconderijo de largo tempo aos mal-feitos de pequenas e grandes autoridades da República atual.

O Brasil real tem fome de comida, de respeito humano. De luz e lucidez. O Brasil oficial carece de vergonha moral.

Lira jantando

Não é normal que presidente da Câmara — ou do Senado — ofereça jantar em honra a ministros do Supremo. Qualquer que seja o ministro; qualquer, a razão. Não é normal que político — de alto ou baixo clero — convide juiz para convescote em casa; qualquer que seja o tempo. A razão para recusar sem ser deselegante é a prudência que oferece: não existe refeição grátis em Brasília.

Fulanizemos: o que pretenderá alguém como Arthur Lira ao promover celebração a ministro do STF, no caso Gilmar Mendes, senão demonstrar Poder? Seria gesto para comprometer miudamente, não fosse sobretudo um comprometimento ao exercício impessoal do poder na República. Com todas as vênias: não pode um juiz aceitar afago daquele cujo foro tem lugar no tribunal que compõe.

Se os ministros do Supremo erram nos convites oficiais que fazem, vide a infiltração militar golpista no TSE, quanto errarão nos informais que aceitam?

Não é normal — não se for a República — que juiz de tribunal superior transite naturalmente entre políticos. Não é normal que ministro de Corte constitucional seja articulador-formulador de soluções para impasses políticos.

Sacrifica-se a percepção de Estado de Direito quando os mais poderosos, inclusive os guardiões da Constituição, concertam-se em confrarias.


É a percepção de ministros da Corte constitucional como agentes políticos — negociadores junto aos Poderes, ao mesmo tempo que tomadores de prerrogativas do Parlamento e do Executivo — que faz ascender figuras como Kassio Nunes Marques e André Mendonça; porque ao presidente de turno, tanto mais um para quem a República é empecilho, sempre será tentador ter os seus homens num tribunal onipresente, que se lança a agir de ofício, a interferir, não raro provocador, em vez de responder a provocações.

Por que não ter o meu ministro, os meus? — projetará. Quão atraente será possuir — sob a vara de um togado de confiança — os instrumentos com que se concebeu, em nome da virtude, o inquérito das fake news, que já censurou uma revista?

A gente sabe como o arreganho começa, e até avalia que virá para o bem, mas nunca sabe aonde vai. Acabada a Lava-Jato, resta o lavajatismo como Zeitgeist.

O Supremo que se admite como engenheiro constrói arapuca contra si. O tribunal que se põe a andar — mesmo a legislar — em nome de causas virtuosas é o mesmo cuja atividade expansiva cria as condições para o contra-ataque reacionário quando mudada sua composição. Aquele que não se equilibra se oferece aos ventos. Última palavra, o STF deveria zelar por não abusar desse apanágio, especialmente no momento em que não faltam candidatos a Poder Moderador.

Lira mesmo, ou não será um dos patrocinadores da PEC que pretende transformar o Congresso em instância revisora de decisões do STF? O presidente da Câmara é senhor do Orçamento cuja gestão secreta e arbitrária — para a qual o Supremo faz vista grossa — consiste na própria ainda existência competitiva do governo do autocrata Jair Bolsonaro. Não dá para fazer discurso pela democracia e depois ir beber o vinho na casa do sócio-investidor do projeto bolsonarista.

Lira, com seus modos autoritários, é fiador legislativo — associado também nos costumes — de um presidente cujo populismo se exerce numa geração permanente de conflitos artificiais que erodem a República. O presidente da Câmara está muito à vontade nisso, conjugando a aplicação patrimonialista para o que seja harmonia entre Poderes. Estão — estavam — à vontade os ministros do Supremo?

Fico aqui pensando em como reage o cidadão brasileiro cada vez que escuta ou lê a pregação sobre balanço republicano e separação entre Poderes.

Ministros do Supremo — cujas canetas podem distribuir decisões monocráticas que, afinal, beneficiam um ou outro — precisam evitar que o tipo de vida social que têm os coloque sob desconfiança; coloque as decisões que tomam sob suspeita. A descrença é grande e vai profissionalmente explorada. E não importa que Bolsonaro também estivesse no jantar. O bolsonarismo explorará a promiscuidade caracterizada na ideia de um sistema — aquele (de que faz parte) que não o deixaria governar — que se resolve na mesa, à noite, sem os freios da impessoalidade de uma agenda pública.

Mas, sim, Bolsonaro estava lá, o herói que só quer mesmo salvar a própria pele e a dos filhos. Há relatos de que esteve a portas fechadas com Alexandre de Moraes. Gostaria de entender a validade — em junho de 2022, depois de tudo quanto já barbarizado — de conversas secretas com o capitão, senão ofertar as circunstâncias-armadilhas para que ele, sem deixar de atacar o Supremo, fale em acordos de alcova não cumpridos por ministro da Corte. Foi o que ocorreu após o 7 de Setembro. E já vem outro aí.

É hora de menos papinho e de mais plenário.

Fome dos que comem

Há duas fomes no Brasil de hoje: a fome de comida, que maltrata e mata, e a fome da moral, dos que assistem à tragédia sem indignação com o sofrimento dos outros, nem inteligência para perceber o custo social e econômico para todo o país.

Assistimos constrangidos aos 33,1 milhões de brasileiros dormindo, acordando e sobrevivendo sem se ter o que comer, ao mesmo tempo que sabemos que essa fome não decorre da escassez de alimentos no país. Nosso território não é desértico, não estamos vivendo uma guerra, não fomos invadidos. É vergonhoso que a fome ocorra num país que está entre os maiores exportadores do mundo, onde o agronegócio produz safras recordes sucessivas, em que os supermercados estão sempre abastecidos, e a televisão divulga dezenas de publicidades para vender comida e apresenta horas por dia de programas realities com concursos, lições e turismo de gastronomia.

Alguns países, mais populosos, também têm contingentes de famintos, mas nenhum deles tem tanta comida disponível, tanta propaganda de alimento, nem tanta apologia à gastronomia ao lado dos noticiários da fome na televisão. A fome de alguns não vem, também, da disputa pela comida que é suficiente para alimentar muitos brasis; a falta de educação também não decorre da necessidade de negar a educação a alguns para oferecer a outros. Ambas as fomes, de comida e de educação, são resultado da maldade, da insensibilidade e da estupidez.


A fome africana ocorre por falta de comida no país, a fome brasileira é por falta de acesso dos famintos à comida que existe disponível ao redor. Nossa vergonha vem da falta de solidariedade com os que passam fome e de competência para levar a comida de onde sobra para onde falta. A fome é causada pela insensibilidade social e por prioridades equivocadas na política. Nossa vergonha vem da banalidade de como vivemos em um mesmo país com falta para alguns e com excesso de comida para outros. Há um constrangimento pelas notícias da fome e vergonha por não termos justificativa para que ela ocorra. A única explicação está na indiferença diante dela e na incompetência para evitá-la.

Se o faminto contaminasse as pessoas alimentadas, como o vírus faz ao passar de um indivíduo doente para um saudável, certamente já teríamos aplicado a vacina disponível: garantindo acesso de todos à comida que sobra, construindo uma economia dinâmica para gerar emprego, assegurando renda suficiente ou simplesmente distribuindo comida diretamente a quem precisa. O mesmo acontece com o analfabetismo: se os cerca de 13 milhões de adultos analfabetos contaminassem aqueles que já aprenderam a ler, rapidamente surgiria a vacina: escola para todos desde a primeira infância e programas para a erradicação entre os adultos.

As fomes brasileiras, de comida e de educação, são resultado da insensibilidade daqueles que comem em relação aos que não comem e dos educados diante dos que não sabem ler. Insensibilidade e estupidez, porque o Brasil seria muito mais rico, mais belo e melhor para viver se não houvesse fome e se todos fossem satisfatoriamente educados. Alimentar os 33 milhões que passam fome não apenas reduziria o sofrimento dessas pessoas e suas famílias, mas melhoraria imediatamente a vida de todos nós, sem a vergonha que sentimos, e beneficiaria a todos com o trabalho produtivo dessas pessoas.

Da mesma forma, a educação de todos não apenas daria nova vida a esses analfabetos, mas também elevaria a produtividade do trabalhador brasileiro, a renda social, a riqueza de todos. A fome e o analfabetismo são prova de insensibilidade, mas também de estupidez nacional, porque atingem diretamente os que não comem e não sabem ler, mas também indiretamente os que comem e os instruídos. A fome está no estômago de quem não tem comida, mas também no coração e na mente dos que comem, especialmente aqueles que têm poder para mudar a realidade, criar mecanismos para que o excesso chegue aos que têm escassez de comida. Mas para que isso ocorra é preciso matar a fome dos que comem: fome de indignação e de inteligência.