domingo, 28 de outubro de 2018

Depois das urnas vamos aguardar projetos concretos de governo democrático

As urnas foram abertas na manhã de hoje e de seus resultados esperamos sobretudo uma afirmação totalmente clara voltada para a democracia, que aliás representa a síntese entre os contrários. O dia de hoje apresenta-se como uma nova alvorada da qual aguardamos projetos concretos e construtivos para o país e sua população. A sorte está lançada mais uma vez para o povo brasileiro atingido por tantos problemas simultâneos mas que não devem levar ao pessimismo e a intolerância.

O eleitorado está se manifestando em peso no dia de hoje e seu pensamento deve se voltar para o futuro, rejeitando-se o passado recente que atingiu em cheio a alma brasileira.

Encerrada a votação no crepúsculo deste domingo, passemos a alvorada já com os resultados das eleições no país. O tempo do voto antecede os programas e projetos concretos do governo federal e dos governos estaduais.

Disse projetos concretos, porque o que aconteceu nas últimas 72 horas foram acusações de parte a parte, sem que os candidatos acenassem à população com programas definidos previamente e sustentados pela realidade financeira. É muito fácil trocar acusações, mas difícil porém é concatenar a visão dos programas com a possibilidade de bases financeiras sólidas e lógicas.

Ninguém em sã consciência pode ser contrário à melhoria dos serviços de saúde, aos avanços na educação, nos propósitos de combater a violência, enfrentando redutos que especialmente no Rio de janeiro são ocupados pela bandidagem. Tudo bem. Ninguém poder ser contrário à melhoria de transporte, contra a recuperação dos salários diante da inflação apontada pelo IBGE. Da mesma forma não se pode ser contra a redução do endividamento do estado e o combate a sonegação de tributos refletidos na contabilidade de grande número de empresas. E o não recolhimento da parte dos empregadores para o INSS ilumina o desequilíbrio entre a arrecadação e os desembolsos do governo.

E assim fecham-se as cortinas de mais uma legislatura que termina no final de dezembro.

Surge uma nova preocupação com o futuro. Vamos respeitar o voto é claro e os limites que asseguram o espaço à democracia e a liberdade.

Brasil de hoje


Reconhecer os fatos deve ser o primeiro ato do eleito

Confirmada a vitória, o primeiro desafio para o presidente eleito será reconhecer os fatos e repensar seu plano de governo e suas promessas. Sem isso, o choque de realidade poderá ser devastador. Os caminhos indicados pelos dois candidatos estão cheios de minas, algumas com alto poder explosivo. O Brasil estará muito mais seguro se o vencedor engavetar seus papéis, pelo menos por algum tempo, e pedir ajuda a quem tem estudado assuntos vitais para o futuro do País, como a política educacional, a produção de tecnologia, a modernização dos tributos, a reforma da Previdência, a integração global e a gestão do ambiente. A contribuição do PT em todas essas áreas foi próxima de zero, negativa em vários aspectos, e nada melhor que isso apareceu no programa do candidato Fernando Haddad. O candidato Jair Bolsonaro pelo menos admitiu a existência de alguns problemas graves, como a dívida pública muito alta e o desajuste da Previdência. Mas sua campanha foi assustadora em alguns momentos - por exemplo, quando reduziu o debate sobre a questão educacional a um indigente discurso ideológico.

Educação é componente fundamental da vida econômica. Pode-se discutir a política educacional a partir de vários ângulos, mas seria tolice negligenciar sua relevância para a produção, a competitividade e a criação de empregos. Só um dos candidatos, o tucano Geraldo Alckmin, apontou de forma clara e enfática a importância de considerar os padrões globais.

Ele incluiu entre as metas a melhora do desempenho brasileiro no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), conduzido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Entre representantes de 70 países, os brasileiros têm ficado perto da 60.ª posição nas provas de linguagem, matemática e ciências.

Durante a longa gestão petista a educação fundamental nunca foi prioritária. O grande objetivo, com retorno eleitoral muito mais seguro, foi sempre facilitar o acesso a faculdades. Uma pesquisa recente apontou a existência de 38 milhões de analfabetos funcionais. É fácil entender a escassez de mão de obra qualificada e até qualificável, assim como os baixos níveis de produtividade e competitividade.

Poder de competição depende também de outros fatores, assim como a capacidade de geração de empregos. Infraestrutura decente, sistema tributário adequado, financiamento farto e barato, segurança jurídica e burocracia sem grandes entraves são componentes importantes desse conjunto. Nada disso é possível sem orçamento flexível, administração pública eficiente e contas oficiais em ordem. Nenhum desses pontos ficou claro nos programas dos candidatos.

Infraestrutura decente depende de cooperação entre os setores público e privado e, em certos casos, da capacidade de investimento do governo. Aumentar o investimento governamental é uma fantasia, quando o déficit nominal do setor publico é próximo de 7,5% do produto interno bruto (PIB).

Para mudar esse quadro será preciso gerar superávit primário, isto é, uma sobra para liquidar a conta de juros. Sem isso, o déficit nominal continuará elevado e a dívida pública, já próxima de 80% do PIB, seguirá crescendo. Para refinanciar todo ano uma dívida desse tamanho o Tesouro toma um enorme volume de empréstimos no mercado financeiro, concorrendo de forma desigual com as empresas. Nessa situação, os juros nunca serão tão baixos quanto nos países mais bem administrados e com melhor nota de crédito soberano.

Os petistas parecem nunca haver entendido esses fatos e continuaram falando sobre os juros como se dependessem de uma ordem do presidente. No governo da presidente Dilma Rousseff, a contenção política dos juros acabou resultando em explosão de preços. A assessoria de Jair Bolsonaro entende esses fatos, mas sua proposta de ajuste das contas públicas permanece obscura.

Privatizações podem tornar o governo mais ágil e a economia mais eficiente, mas são insuficientes para arrumar a dívida pública. O dinheiro arrecadado com as vendas pode reduzir o passivo, mas o endividamento voltará a crescer se o dia a dia continuar desequilibrado. O conserto das contas dependerá de outros fatores, com destaque para a reforma da Previdência. Uma das ideias do candidato Bolsonaro é implantar logo o regime de capitalização - um lance muito arriscado, segundo vários analistas.

Um governante sério estimulará contatos de sua equipe com especialistas conhecidos e respeitados, como Paulo Tafner, autor de uma complexa e cuidadosa proposta de reforma, e Fabio Giambiagi, veterano estudioso dos problemas da Previdência.

Em relação à reforma tributária, a referência mais óbvia, pelo menos para quem acompanha regularmente esses debates, é a proposta apresentada pelo economista Bernard Appy. Há, naturalmente, outros especialistas preparados para acrescentar detalhes interessantes. O sistema tributário é claramente desatualizado. Além de regressivo, é pouco funcional, por incidir pesadamente sobre a produção e sobre o investimento e reduzir o poder de competição internacional.

As mudanças defendidas pelos candidatos têm muita pirotecnia e pouca avaliação prática. Um lado valoriza a simplificação dos tributos. O outro, a justiça. Mas nenhum dos dois desenhos passou pelo exame crítico dos efeitos sobre as contas públicas e a economia.

Quanto à diplomacia, um lado propõe a continuação do fracassado e custoso terceiro-mundismo petista, com laivos bolivarianos. O outro se inspira no trumpismo. Uma das figuras próximas do candidato Bolsonaro falou em abandono do Acordo de Paris sobre o clima. Conselheiros desse tipo comprometem qualquer governo.

Nenhum país precisa de um imitador de Trump ou de uma encarnação mediúnica de Lula, o presidiário ligado à maior pilhagem realizada contra o Estado brasileiro. Pensar nesses dados será um bom começo para o eleito, seja quem for.

Propaganda eleitoral

Meu caro Coronel Martins Ferreira,
candidato extrachapa a deputado
ao congresso da Câmara Mineira,
desejo ser aí o mais votado.

A minha fé de ofício é de primeira.
Vale por um programa o meu passado,
e no congresso não direi asneira
todas as vezes…que ficar calado.

Fui caixeiro, depois fui negociante,
e do torrão natal, representante,
agora aspiro a ser como escrivão;

e, eleito, espero, mas que maravilha!
ser pai da Pátria e receber da filha
todo o subsídio, quer trabalhe ou não…
Belmiro Braga

A maré da direita

No início, era o antipetismo. Essa coisa meio amorfa. Tomou a rua. Fiquei surpreso com o tamanho da onda.

No domingo passado, o capitão falou. À la Trump, disse um monte de impropérios. Condenou a diferença e prometeu destruir os opositores.

Não falou nada muito diferente do que muito radical petista fala em convenção do partido.

Mas há conteúdo positivo, propositivo, no voto para o tenente que se aposentou como capitão.

Há uma genuína agenda conservadora em gestação. Reforço do direito de propriedade com a criminalização das invasões —seja de imóveis urbanos ou propriedade rural—, empregadas como mecanismo de pressão contra nossas desigualdades históricas.

Redução do gasto público com as organizações não governamentais e, penso eu, corte em benefícios da Lei Rouanet. Provavelmente cobrança de mensalidade para universidades públicas de quem pode pagar.

Recrudescimento das penas para crimes, flexibilização da maioridade penal, maior liberalidade no porte de armas e elevação das garantias de proteção à atuação das polícias no engajamento com criminosos.

Total reforço à Lava Jato. Possivelmente serão retomadas as Dez Medidas Contra a Corrupção do Ministério Público.



Aparentemente, esse será o governo de direita por aqui. Dado que, para os petistas, FHC era neoliberal e centro-direita, faltarão graus no transferidor do espectro político para posicionar Bolsonaro.

Os intelectuais, artistas e tantos outros terão que aprender que há legitimidade nessas pautas da direita. Elas serão tratadas no Congresso Nacional, e o STF, como instância contramajoritária, vai se pronunciar e terá poder de veto sempre que novas legislações ferirem disposições constitucionais.

A fala do tenente aposentado como capitão, porém, nada disse sobre como ele pretende tapar o buraco fiscal de R$ 300 bilhões.

Se Bolsonaro tiver sabedoria, tocará a agenda econômica o mais rapidamente que puder.

Tapar o buraco fiscal é tarefa do Congresso. No entanto, a tão alardeada renovação foi qualitativamente muito ruim. Diversos parlamentares que conheciam a natureza do problema e as entranhas do sistema político não foram reeleitos. 

Não poderemos contar com a experiência desses e teremos de lidar com uma leva de novos atores que deverão se adaptar ao seu novo ambiente e destrinchar seus mecanismos de funcionamento, em um momento em que não há tempo.

Sim, o presidente que for eleito terá que propor, coordenar e liderar as ações, mas o desenho final do ajuste fiscal será construído invariavelmente pelo Congresso.

O risco é Bolsonaro inverter as pautas. Em um afã de agradar a seu eleitor, tocar a pauta da segurança e dos direitos de propriedade antes da pauta econômica. A segurança não vivenciará uma melhora repentina, o crescimento não virá a tempo, o país não sairá do imobilismo e, inevitável, a popularidade cairá. Simultaneamente, terá que administrar inúmeros conflitos com o Supremo nessas pautas.

Há histeria no ar com a possibilidade de um golpe clássico ou com a deterioração da democracia com Bolsonaro.

Não sei se a histeria é sincera ou segue de certa dificuldade da esquerda em conviver com pautas democraticamente escolhidas que sejam frontalmente contrárias aos seus pontos de vista.

A política está funcionando. Quando e se a democracia estiver em risco, iremos para as ruas. Hoje é o momento da política.

Samuel Pessôa

Pensamento do Dia


O brasileiro tranquilo

Meu amigo Otto, a quem enviei desta página uma carta, preparando-lhe o espírito para regressar ao Brasil depois de quase três anos na Europa, já está no Rio, e devagar vai tomando posse das coisas nacionais. As novidades que advertidamente lhe relatei o impressionaram menos do que outros aspectos permanentes do modo de ser brasileiro, e dos quais até certo ponto se esquecera. São estes justamente os aspectos que contrastam o modo de ser europeu, recordando-se portanto com nitidez quando se volta depois de longa temporada fora.

Antes de tudo, o que mais o espantou foi a intensa humanidade brasileira, a doçura da gente dentro de uma perfeita desorganização, a unanimidade do afeto nacional ao meio de condições de vida precárias ou hostis. Dois brasileiros que se desconheciam constituem sempre uma hipótese de íntima amizade depois de dez ou cinco minutos de conversa, sem que seja necessária a formalidade da apresentação. Nada mais violentamente anti-europeu do que isso.


Um silogismo de Otto —e esse ele já sustentava para os boquiabertos belgas— é que a cultura é apenas a arte da convivência. Ninguém convive com mais suavidade do que o brasileiro.

Logo, o povo brasileiro é muito culto. Outra tese sua é a de que somos, ao contrário do que espalham por aí, um povo altamente disciplinado, estribando essa convicção no argumento de que povo nenhum do mundo aturaria com tamanha paciência os dolorosos contratempos de uma cidade como o Rio de Janeiro, notadamente o tráfego diabólico. O carioca já devia estar louco ou ter explodido em virtude do enervamento cotidiano; só a vocação da disciplina impede essa catástrofe mental coletiva. Outro raciocínio seu: tendo-se em conta que a Alemanha é um país dotado de todos os recursos para facilitar a disciplina, e no Brasil, pelo contrário, nada existindo para permitir um mínimo de disciplina, o brasileiro é incomparavelmente mais disciplinado do que o alemão. Na Alemanha, tudo funciona, não sendo vantagem a disciplina; no Brasil, nada funciona, revelando-se mais forte portanto a nossa disciplina instintiva. Para dar-me dois exemplos da fantástica capacidade brasileira de organizar-se para a desorganização, Otto apelou para a eloquência do senso comum, conseguindo transfigurar banalidades que todos sabemos. O Rio, me disse, é uma cidade que dispõe, como qualquer outra metrópole, de todas as complexas e dispendiosas instalações para o fornecimento de água à população, nascentes canalizadas em distâncias imensas, estações elevatórias, enormes reservatórios para tratamento, vasta rede subterrânea para a distribuição, hidrômetros, além de pias, tanques, banheiros e chuveiros para a devida utilização da água, representando uma fortuna em investimentos e manutenção. Tudo perfeito, tudo a provar a capacidade civilizadora do homem tropical, faltando exclusivamente um detalhe: a água.

Outro exemplo: o Departamento de Correios e Telégrafos tem de fato uma engrenagem fabulosa, sobretudo tendo-se em vista a nossa imensidade territorial, de índice demográfico rarefeito. Com todos os seus setores modernizados, cobrindo uma superfície de oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados, um número fantástico de funcionários, equipamentos os mais diversos, trens sulcando os vales e as montanhas, atravessando lonjuras desabitadas, enxames de aviões cortando velozmente todo o país, camionetas carreando a correspondência nos centros urbanos, carteiros prestimosos a carregar os seus fardos como diligentes formigas, o Departamento de Correios constitui, sem dúvida nenhuma, um inestimável esforço administrativo, um serviço público extraordinário, ao qual só podemos imputar um único e pequeno descuido: a carta não chega ao destinatário.

Nada se resolve no Brasil, afirma Otto, mas sem qualquer irrisão ou pessimismo. Para que resolver? Muito melhor do que a solução é a profunda compreensão que todos demonstram pelos nossos problemas, notadamente nos locais encarregados de resolvê-los. Você tem um processo qualquer em uma repartição pública; o mesmo não será resolvido, pelo menos em tempo hábil. Mas que grande e grata simpatia todos ali manifestam pelo seu caso! Que criaturas compreensivas e humanas aqueles funcionários que não despacham o seu processo! Do chefe de seção ao servente, todos estão prontos a prestar-lhe qualquer obséquio pessoal, exceto, naturalmente, a solução (impraticável) do processo.

O processo entre nós não existe para ser resolvido, mas para ser compreendido em toda a dimensão de seu conteúdo humano. Tanto maior o desajustamento humano causado pela insolubilidade do processo, mais intensa a solidariedade. Que admiráveis sentimentos humanos, por exemplo, desperta a pobre viúva que há sete, oito, doze meses vem se esforçando para receber seu montepio! Falta apenas um atestado, um papel, uma assinatura, às vezes nem falta nada, apenas um milagre. Mas que beleza o apoio moral com que todos confortam a velhinha! Que criatura de alma delicada o brasileiro!

Outro caráter nacional que muito impressiona o meu amigo é o poder de vincular pessoalmente as mais impessoais relações. Um motorista de táxi que lhe pediu o dobro da corrida justificou-se, contando-lhe em poucos minutos sua vida atribulada. Garante Otto que até os ladrões e assaltantes do Brasil roubam pensando menos no dinheiro, e sim porque não foram com a cara do sujeito.

Tendo também procurado alto funcionário da alfândega, que nunca vira mais gordo, verificou que este nada podia garantir-lhe quanto à liberação da bagagem antes de dois ou três meses, no mínimo. Claro que muita coisa se estragará dentro desse prazo. E daí? Como compensação a seus prejuízos materiais, o servidor público estabeleceu imediatamente com o contribuinte (Otto) uma camaradagem imediata e esfuziante, quase impossível de ser encontrada na Europa, mesmo entre velhos amigos. Esse bom servidor (mais da alma pública do que da coisa pública), sentando em cima da mesa do gabinete, serviu-lhe vários cafezinhos, mandou buscar dois picolés no sorveteiro da esquina, contou-lhe anedotas picantes e aflições domésticas, bateu-lhe amigavelmente na perna e no ombro, pediu-lhe que aparecesse de vez em quando para um papo, prontificou-se a emprestar-lhe uma lancha-automóvel aos domingos, desdobrou-se enfim em gestos, não friamente cordiais, mas sincera e profundamente afetivos. E Otto arremata:

- Se naquele momento um inglês entrasse no gabinete e nos visse nesse perfeito entendimento, cairia em estado lírico, a dizer para si mesmo: Que coisa bela é uma amizade de infância!
Paulo Mendes Campos, "O mais estranho dos países"

Gastando-se para nada

Enquanto nos enfrentamos e gastamos tanta energia, existe a ameaça do aquecimento global, comprovada pela maioria dos dados e 99,9% da comunidade científica.
Nada disso é importante se estivermos mortos e nossas cidades no fundo do oceano. O aquecimento global deveria ser prioridade para qualquer político capaz de olhar além da próxima eleição. Mas, infelizmente, estes são poucos
George R.R. Martin 

O fim e o princípio

Alívio geral: aquela avalanche de mensagens em favor do Coiso e do Poste cessa hoje. Mas não fiquem felizes: em dois dias, no máximo, vem a choradeira do perdedor. E, em 1º de janeiro, encerrada a fase da choradeira, começa a tarefa de botar nosso país em ordem. Como está não pode ficar.


Qualquer que seja o vencedor, enfrentará tarefa dupla: fazer com que as coisas funcionem, o que já é trabalho suficiente; e enfrentar a oposição. Quase metade dos eleitores estará na oposição. Por mais que pareça surpreendente, tanto os seguidores do Coiso como do Poste os adotaram como ídolos. Não é preferência eleitoral, é paixão pelos candidatos. A dor de cotovelo pela derrota vira oposição sistemática. Soy contra, e pronto.

Formar o Governo não é problema: há o Centrão para oferecer seus gentis préstimos à governabilidade. Mas qualquer proposta irá sofrer com a torrente de paixão que tomou conta do Brasil. Imagine um eleitor do Poste aceitar uma decisão do Coiso, ou vice-versa! E nenhum dos candidatos tem o perfil conciliador que ajudaria a normalizar as relações do Governo com a oposição. 

Ambos até podem dizer que seu objetivo é a paz, mas não dá: o Coiso, quando se distrai, o que menos mostra é vontade de conciliar. E o Poste, além de buscar instruções em Curitiba com seu chefe ressentido, já foi capaz de defender em livro o trabalho escravo, desde que promovido por países socialistas. Ideologia pura. E guerra ao adversário o tempo todo.

2018 impõe ao PT desafio de preparar o pós-Lula

Ainda que Fernando Haddad vencesse Jair Bolsonaro neste domingo, hipótese que o Datafolha indica ser menos provável, o Partido dos Trabalhadores não se livraria de um desafio que a campanha de 2018 lhe impôs. A legenda terá de migrar do atual estágio de lulodependência para uma fase que pode ser chamada de pós-Lula. Não se trata de opção, mas de fatalidade.

Preso, Lula festejou neste sábado, pela segunda vez, seu aniversário de 73 anos. Com mais de 12 anos de cadeia nas costas, está na bica de colecionar uma segunda sentença criminal, dessa vez no caso do sítio de Atibaia. Na sucessão de 2022, sua veneranda figura acumulará uma existência de 77 primaveras. E continuará inelegível. Lula tornou-se um líder político com um enorme passado pela frente.

Na hipótese remota de uma obter uma vitória neste domingo, Haddad teria de reconhecer que foi salvo pelo voto útil. Estaria condenado a compor um governo maior do que o PT. Para isso, teria de parar de arrastar as correntes de Lula. Confirmando-se a derrota, o PT fará o que faz de melhor: oposição. A parte difícil será a fisioterapia política a que a legenda terá de se dedicar para começar a andar sem a sua muleta. Sob pena de ficar para trás.

Ainda marcado pelas escoriações das cotoveladas que recebeu de Lula no primeiro turno, Ciro Gomes lançou neste sábado uma dupla candidatura. Disputará com o petismo a liderança da oposição: “O que precisa para o Brasil a partir de segunda-feira é que a gente construa um grande movimento que proteja a democracia e a sociedade mais pobre”.

De resto, Ciro antecipa 2022, oferecendo-se desde logo como “um caminho em que a população brasileira amanhã possa ter uma referência para enfrentar os dias terríveis que estão se aproximando.” Haddad poderia fazer o mesmo. Mas os votos que receberá não lhe pertencem. Uma parte veio da herança de Lula. Outra, da rejeição a Bolsonaro. De resto, a maioria do petismo quer desligar Haddad da tomada, não convertê-lo em líder de seja lá o que for.

O PT vem perdendo espaço na preferência do eleitorado desde 2010, na eleição de Dilma Rousseff. Lula prevaleceu em 2002 e 2006 com 61% dos votos válidos. Em 2010, Dilma foi enviada ao Planalto com 56%. Em 2014, já com o semblante de ex-gerentona, Dilma passou raspando na trave, com 52%. No Datafolha deste sábado, Haddad somou 45% dos votos válidos. Se sair das urnas desse tamanho, o PT retornará a 1989, quando Lula obteve 47% dos votos válidos, perdendo para Fernando Collor, com 53%.

Está entendido que o eleitorado cobra do PT, em prestações, a fatura dos mensalões, dos petrolões e da gestão empregocida de Dilma. Tudo tem vinculação direta com Lula. Os escândalos têm raízes fincadas nos seus dois mandatos. É de sua autoria a lenda segundo a qual Dilma seria uma supergerente. Vem daí o fato de que o lulismo que empurrou Haddad para o segundo turno tornou-se menor do que o antipetistmo que deve levar Bolsonaro ao Planalto.

Na sua primeira manifestação depois que Sergio Moro o condenou no caso do Tríplex, Lula declarou: “Se alguém pensa que com essa sentença me tirou do jogo, podem saber que eu estou no jogo. Até agora, eu não tinha reivindicado, mas agora eu reivindico do meu partido o direito de ser candidato a presidente.”

O PT sujeitou-se gostosamente à penitência. Por uma razão muito simples: faltava ao partido uma alternativa. Lula não permitiu que ela surgisse. O socialismo petista é movido por uma fé de inspiração cristã. O ingrediente da dúvida não faz parte do credo do PT. O partido se alimenta da certeza de que seu único líder é uma potência moral, que não deve contas a ninguém.

Em abril, quando teve a prisão decretada, Lula refugiou-se no bunker do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Antes de se entregar à Polícia Federal, fez um comício. Mandou um recado para dentro do partido: “Se alguém quiser ganhar de mim no PT, só tem um jeito: é trabalhar mais do que eu e gostar do povo mais do que eu, porque se não gostar, não vai ganhar”.

Na sequência, Lula falou para a plateia de fora do PT. Disse à multidão que a prisão não iria silenciá-lo: “Eles têm que saber que vocês são até mais inteligentes do que eu. E poderão queimar os pneus que vocês tanto queimam, fazer as passeatas que tanto vocês queiram, fazer ocupações no campo e na cidade…” A revolta social revelou-se uma ficção.

Na prática, o palavreado radioativo teve consequências deletérias no campo jurídico e na seara política. Juridicamente, o timbre de Lula reforçou uma linha de confronto que o transformou num colecionador de derrotas nos tribunais. Politicamente, o veneno condenou o PT a reviver uma realidade da época em que fazia campanhas com o objetivo de converter os convertidos.

As urnas estão prestes a revelar que a multiplicação do amor dos devotos petistas por Lula não trará de volta os votos da classe média. O pedaço conservador do eleitorado, que acreditou na Carta aos Brasileiros —aquele documento em que Lula renegou o receituário radical que o impedia de chegar à Presidência da República— tomou-se de ojeriza pela estrela vermelha.

Aos pooquinhos, o Lula mitológico, fruto de uma construção político-religiosa, vai virando um personagem de carne e osso. Perde a aura de vítima. Vira um político tradicional, suspeito de tudo o que se costuma suspeitar nessa fauna. O PT não tem como se livrar de Lula. Nem seria o caso, pois a legenda perderia sua própria alma. Mas é preciso abrir espaço para que outras palmeiras cresçam no gramado. De novo: não se trata de opção, mas de fatalidade.