segunda-feira, 21 de agosto de 2023
A queda de Bolsonaro e o futuro das Forças Armadas
Para parte expressiva dos brasileiros que cresceram após a redemocratização do país, as Forças Armadas são tidas como sinônimo de ditadura.
No entanto, há 20 anos era difícil imaginar que o golpismo militar poderia se tornar novamente uma fonte de preocupação.
Afinal, os defensores da ditadura pareciam se restringir às comemorações emboloradas do golpe de 1964, manifestações de pequenos grupos neonazistas, e à circulação restrita de uma obra revanchista, publicada após a transição democrática, intitulada "O Livro Negro do Terrorismo no Brasil", mais conhecida como "Orvil", livro de trás para a frente.
Porém, em meio às investigações que se avolumam em torno de Jair Bolsonaro e dos militares que o apoiaram em suas intenções golpistas, os anos 1980 nunca pareceram tão atuais.
Em 1989, na coletânea Democratizing Brazil, a cientista política Maria do Carmo Campello de Souza publicou um texto intitulado: "A Nova República sob a Espada de Dâmocles".
Na época, a autora apontava que a transição democrática, baseada em uma frágil aliança entre o PFL e o PMDB, e que se dava em meio a uma grave crise econômica, estava incompleta. Passados mais de 30 anos, sem completar nossa transição democrática, ainda permanecemos sob a Espada de Dâmocles.
Ao contrário de outros países latino-americanos, o Brasil não responsabilizou as Forças Armadas por crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura.
Para além das inúmeras injustiças que isso implicou às vítimas do regime, a memória do que ocorreu com os militares durante o período ficou comprometida dentro e fora dos quartéis.
De acordo com o cientista político e professor da Unesp Paulo Ribeiro da Cunha, os militares foram o grupo social que, proporcionalmente, foi mais afetado pela repressão da ditadura militar.
Segundo dados reunidos pela Comissão Nacional da Verdade, integrada por Cunha, o regime militar perseguiu, prendeu e torturou 6.591 militares. Entre estes estava o tenente Rui Moreira Lima, piloto de caça que enfrentou nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Herói de guerra e membro condecorado das Forças Armadas, Lima se tornou brigadeiro, no entanto, isso não impediu que fosse preso e torturado pela ditadura militar por se opor abertamente ao golpe de 1964.
Nos anos 1970, Lima já trabalhava na iniciativa privada quando seu filho de 20 anos foi sequestrado por agentes da repressão.
A perseguição de militares comprometidos com a defesa da democracia sedimentou uma cultura política e institucional autoritária que sobreviveu após o fim do regime e resultou no que vivemos nos últimos quatro anos.
Agora, é urgente reverter o quadro.
Para além de responsabilizar e expulsar da corporação todos os militares que participaram direta ou indiretamente de atividades golpistas, bem como rever uma série de privilégios, injustiças e anacronismos, como o serviço militar obrigatório, será preciso transformar a cultura institucional e política da corporação.
O primeiro passo nesse sentido é resgatar sua memória e passar a celebrar os verdadeiros heróis das Forças Armadas do Brasil.
No entanto, há 20 anos era difícil imaginar que o golpismo militar poderia se tornar novamente uma fonte de preocupação.
Afinal, os defensores da ditadura pareciam se restringir às comemorações emboloradas do golpe de 1964, manifestações de pequenos grupos neonazistas, e à circulação restrita de uma obra revanchista, publicada após a transição democrática, intitulada "O Livro Negro do Terrorismo no Brasil", mais conhecida como "Orvil", livro de trás para a frente.
Porém, em meio às investigações que se avolumam em torno de Jair Bolsonaro e dos militares que o apoiaram em suas intenções golpistas, os anos 1980 nunca pareceram tão atuais.
Em 1989, na coletânea Democratizing Brazil, a cientista política Maria do Carmo Campello de Souza publicou um texto intitulado: "A Nova República sob a Espada de Dâmocles".
Na época, a autora apontava que a transição democrática, baseada em uma frágil aliança entre o PFL e o PMDB, e que se dava em meio a uma grave crise econômica, estava incompleta. Passados mais de 30 anos, sem completar nossa transição democrática, ainda permanecemos sob a Espada de Dâmocles.
Ao contrário de outros países latino-americanos, o Brasil não responsabilizou as Forças Armadas por crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura.
Para além das inúmeras injustiças que isso implicou às vítimas do regime, a memória do que ocorreu com os militares durante o período ficou comprometida dentro e fora dos quartéis.
De acordo com o cientista político e professor da Unesp Paulo Ribeiro da Cunha, os militares foram o grupo social que, proporcionalmente, foi mais afetado pela repressão da ditadura militar.
Segundo dados reunidos pela Comissão Nacional da Verdade, integrada por Cunha, o regime militar perseguiu, prendeu e torturou 6.591 militares. Entre estes estava o tenente Rui Moreira Lima, piloto de caça que enfrentou nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Herói de guerra e membro condecorado das Forças Armadas, Lima se tornou brigadeiro, no entanto, isso não impediu que fosse preso e torturado pela ditadura militar por se opor abertamente ao golpe de 1964.
Nos anos 1970, Lima já trabalhava na iniciativa privada quando seu filho de 20 anos foi sequestrado por agentes da repressão.
A perseguição de militares comprometidos com a defesa da democracia sedimentou uma cultura política e institucional autoritária que sobreviveu após o fim do regime e resultou no que vivemos nos últimos quatro anos.
Agora, é urgente reverter o quadro.
Para além de responsabilizar e expulsar da corporação todos os militares que participaram direta ou indiretamente de atividades golpistas, bem como rever uma série de privilégios, injustiças e anacronismos, como o serviço militar obrigatório, será preciso transformar a cultura institucional e política da corporação.
O primeiro passo nesse sentido é resgatar sua memória e passar a celebrar os verdadeiros heróis das Forças Armadas do Brasil.
Um olhar a mais
"Quando for a hora certa, eu o Senhor farei acontecer." O versículo (Isaías 60:22), recém-invocado como guia pela ex-primeira-dama e autodeclarada aspirante à Presidência da República, deixa em suspenso o sentido de "acontecimento". Mas, em performance recente, pede à acompanhante, deputada federal, que retire sua prótese ocular. Aquiescente, a outra leva a mão ao rosto e entrega um olho de vidro, que a aspirante se apresta a guardar, como uma joia, no bolso do jeans. Então garante à plateia: "Esta é uma mulher que faz acontecer".
Meio século atrás, no programa "A Hora da Buzina", de Chacrinha, "acontecia" quem inserisse primeiro no nariz um carretel de linha. O pano de fundo popularesco permitiu à emergente indústria da televisão granjear uma audiência de migrantes de primeira e segunda gerações nas periferias urbanas do Sul. Podia-se receber como prêmio um quilo de bacalhau ou um eletrodoméstico.
No palanque evangélico, a obtusidade ficou à demanda de um sentido. Exceto a garantia: fazer acontecer. À primeira vista, nada. Mas a mente aberta divisa uma lógica por trás desse tipo de ação, que tem tanto a ver com o cardápio de linguagem da extrema direita quanto com a semiose do espetáculo grotesco. "Acontecer" frente às câmeras de tevê era arranhar a superfície dos bons modos por meio de encenações que incitavam à hilaridade e excediam quase sempre as convenções do bom gosto.
Essa estética do rebaixamento, incipiente estratégia comunicacional da televisão, conheceu o auge no programa do Chacrinha e em correlatos de menor talento. Mas funciona hoje também como lógica de contato da ultradireita com seguidores. Primeiro, com pretensa simplicidade pessoal: humildade de exibir deficiências, ignorância subindo à cabeça, clichês cristológicos. Segundo, em vez de alegria, ódio ativado por algoritmos.
Nessa lógica, dispor de apenas um olho não seria contingência, mas a essência de alguém. Escondendo a prótese, sem devolvê-la, a dama estaria comunicando algo essencial de uma identidade supostamente desinformada aos olhos da audiência. Teria feito "acontecer" uma verdade. Acompanhada de outra acólita, poderia pedir que narrasse a subida de Cristo na goiabeira. Ou, pulando, falaria em línguas com ministro terrivelmente evangélico.
Tudo adequado à fórmula originária. A diferença é que o grotesco televisivo nada escondia, era mera bufonaria à vista. Já os franca-tripas e as prima-donas de agora servem de tapa-olho a tenebrosas transações, civis e militares. Reluzem ouro e diamantes. Chacrinha buzinaria: "Roda!" Mas já existe convocação policial em curso. Por isso, na sabença ácida das massas, circula o leonino "acontece sempre de manhã cedo (Federais, 171:0)".
Meio século atrás, no programa "A Hora da Buzina", de Chacrinha, "acontecia" quem inserisse primeiro no nariz um carretel de linha. O pano de fundo popularesco permitiu à emergente indústria da televisão granjear uma audiência de migrantes de primeira e segunda gerações nas periferias urbanas do Sul. Podia-se receber como prêmio um quilo de bacalhau ou um eletrodoméstico.
No palanque evangélico, a obtusidade ficou à demanda de um sentido. Exceto a garantia: fazer acontecer. À primeira vista, nada. Mas a mente aberta divisa uma lógica por trás desse tipo de ação, que tem tanto a ver com o cardápio de linguagem da extrema direita quanto com a semiose do espetáculo grotesco. "Acontecer" frente às câmeras de tevê era arranhar a superfície dos bons modos por meio de encenações que incitavam à hilaridade e excediam quase sempre as convenções do bom gosto.
Essa estética do rebaixamento, incipiente estratégia comunicacional da televisão, conheceu o auge no programa do Chacrinha e em correlatos de menor talento. Mas funciona hoje também como lógica de contato da ultradireita com seguidores. Primeiro, com pretensa simplicidade pessoal: humildade de exibir deficiências, ignorância subindo à cabeça, clichês cristológicos. Segundo, em vez de alegria, ódio ativado por algoritmos.
Nessa lógica, dispor de apenas um olho não seria contingência, mas a essência de alguém. Escondendo a prótese, sem devolvê-la, a dama estaria comunicando algo essencial de uma identidade supostamente desinformada aos olhos da audiência. Teria feito "acontecer" uma verdade. Acompanhada de outra acólita, poderia pedir que narrasse a subida de Cristo na goiabeira. Ou, pulando, falaria em línguas com ministro terrivelmente evangélico.
Tudo adequado à fórmula originária. A diferença é que o grotesco televisivo nada escondia, era mera bufonaria à vista. Já os franca-tripas e as prima-donas de agora servem de tapa-olho a tenebrosas transações, civis e militares. Reluzem ouro e diamantes. Chacrinha buzinaria: "Roda!" Mas já existe convocação policial em curso. Por isso, na sabença ácida das massas, circula o leonino "acontece sempre de manhã cedo (Federais, 171:0)".
A conta das Forças Armadas
“Bolsonaro arranhou a imagem das Forças Armadas.” A frase foi dita recentemente por uma jornalista em um canal de televisão, mas já foi repetida, de uma forma ou de outra, por outros colegas de profissão e figuras de outros espectros da sociedade. Como lugar-comum que se repete sem reflexão, está longe de ser verdade.
Desde o governo Bolsonaro que parte da cúpula militar, especialmente a do Exército, tenta isolar seu líder quando convém. Declarações e atitudes nocivas e/ou estapafúrdias seriam, segundo versões passadas por jornalistas, rechaçadas ou vistas com preocupação por membros das Forças, embora nunca houvesse uma declaração pública, muito pelo contrário. O discurso (sempre em off, obviamente) e a prática não combinavam.
Agora, com o envolvimento cada vez mais nítido do ajudante de ordens Mauro Cid no caso das joias, além de outros possíveis malfeitos, a operação de “livramento” se intensifica, ainda mais com o envolvimento de um general, o pai do ex-auxiliar de Bolsonaro. Uma possível delação de Cid, aliás, pode servir ao propósito de tratar o ex-presidente como quase um corpo externo, uma espécie de tropeço na jornada da instituição.
Em uma entrevista à BBC, em 2020, o antropólogo, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e pesquisador da área militar, Piero Leirner, definia de forma precisa a relação entre o então presidente e as casernas: “não é uma questão de se os militares aprovam ou não o governo: eles são o governo e Bolsonaro é o projeto deles”. Inclusive, quando questionado sobre “como os militares embarcaram no governo Bolsonaro?”, ele responde que “a pergunta poderia ser invertida: ‘Como Bolsonaro embarcou no governo dos militares?’.”
Para evitar falsificações, é preciso resgatar o histórico recente, como fez Leirner, lembrando que o lançamento de fato da candidatura do ex-presidente para 2018 foi realizado em 2014, pouco depois da realização do segundo turno da eleição presidencial vencida por Dilma Rousseff, na Academia Militar das Agulhas Negras. “Saiu de lá aclamado como ‘líder!’. Esse tipo de ato só é possível se houver autorização do comandante da Academia. E, como Bolsonaro repetiu a visita em 2015, 2016, 2017 e 2018, posso afirmar que ele contou com o conhecimento do comandante do Exército e com o descaso dos ministros da Defesa e dos presidentes da República”, ressaltou o antropólogo.
Figuras importantes do meio militar travaram conversas com o então vice-presidente Michel Temer em meio ao processo que resultou no impeachment sem crimes de responsabilidade de Dilma, segundo ele mesmo admitiu em livro. Embora tente dar um ar de institucionalidade nas diversas ocasiões em que se encontrou com o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, mantido no cargo em seu governo, e o chefe do Estado-Maior da Força, general Sérgio Etchegoyen, depois escalado como chefe do recriado Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Temer naturaliza (e não é só ele que faz isso) a participação de integrantes do Exército na vida político-partidária.
No livro Dano Colateral: a intervenção dos militares na segurança pública, a jornalista Natalia Viana aponta que um dos objetivos admitidos pelo próprio Etchegoyen ao assumir o GSI (que havia sido extinto no governo Dilma) era “trazer de volta os militares a fóruns de onde eles tinham saído”, mencionando, por exemplo, a inclusão de integrantes das Forças Armadas em discussões sobre tratados internacionais, como se esta fosse uma tarefa castrense.
Etchegoyen foi um dos mentores da intervenção federal no Rio de Janeiro, promovida no governo Temer, também com o objetivo de conferir maior legitimidade às forças na atuação em uma área problemática como a segurança pública, rendendo dividendos políticos junto à sociedade. Lembrando que o responsável pela operação foi o general Walter Braga Netto, mais tarde ministro e candidato a vice-presidente na tentativa de reeleição de Bolsonaro.
Também foi na gestão Temer que, pela primeira vez desde sua criação, o Ministério da Defesa passou a ter como titular um militar, o general da reserva do Exército Joaquim Silva e Luna, mais adiante nomeado para a presidência da Petrobrás e posteriormente diretor-geral de Itaipu, por Bolsonaro. O fato teve sua importância diminuída e pouco foi debatido pela mídia tradicional, parte dela à época em lua de mel com o presidente de turno. Mas é fundamental lembrar que a criação da pasta, prevista na Constituição de 1988, faz parte do rearranjo democrático para efetivar a supremacia do poder civil sobre o militar.
Na ocasião, conversei com a doutoranda em Sociologia Política Anaís Medeiros Passos, que foi taxativa em relação à nomeação na RBA: “A nomeação de um militar para essa pasta torna precária essa divisão. Dependendo da duração de tal gestão, pode significar uma politização das Forças Armadas, que gera riscos para a sua organização – como a história mostra.” O que aconteceu na sequência confirmou a avaliação.
Nesse contexto em que os militares passaram a atuar de modo explícito no coração do poder político, não se pode esquecer de 3 de abril de 2018, quando havia a expectativa de julgamento do Habeas Corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Supremo Tribunal Federal no dia seguinte.
Comandante das Forças Armadas à época, o general Eduardo Villas Bôas, publicou em sua conta no Twitter a seguinte mensagem: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”, seguida de outra publicação: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.
A ameaça ao Supremo, conforme revelou o próprio general em livro, foi elaborada em conjunto com o Alto Comando da instituição. E na cerimônia de posse do primeiro ministro da Defesa da gestão Bolsonaro, o general Fernando Azevedo e Silva, o então presidente se dirigiu a ele, dizendo: “General Villas Bôas, o que já conversamos ficará entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.
Todas as digitais e os próprios integrantes da cúpula do Exército não negam como estiveram, desde o governo Temer, como parte fundamental do comando do Executivo brasileiro, com relações efetivas ainda nos outros Poderes. Não é possível dissociar o governo Bolsonaro de um projeto gestado por eles, e não deixa de ser simbólico que Mauro Cid tenha ido à CPI do 8 de janeiro fardado, enquanto o coronel do Exército Jean Lawand Junior, na mesma comissão, tenha participado de terno e gravata. A ligação com o topo da hierarquia militar de um e de outro é patente.
Uma declaração do hoje senador e ex-vice-presidente Hamilton Mourão dada em abril de 2019, transformada em vírgula sonora/meme pelo Medo e Delírio em Brasília, é ilustrativa da situação das Forças Armadas hoje. “Se o nosso governo falhar, errar demais, porque todo mundo erra, mas se errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas. Daí a nossa extrema preocupação.” A gestão Bolsonaro/militares foi muito além do mero erro. E a conta está na mesa.
Desde o governo Bolsonaro que parte da cúpula militar, especialmente a do Exército, tenta isolar seu líder quando convém. Declarações e atitudes nocivas e/ou estapafúrdias seriam, segundo versões passadas por jornalistas, rechaçadas ou vistas com preocupação por membros das Forças, embora nunca houvesse uma declaração pública, muito pelo contrário. O discurso (sempre em off, obviamente) e a prática não combinavam.
Agora, com o envolvimento cada vez mais nítido do ajudante de ordens Mauro Cid no caso das joias, além de outros possíveis malfeitos, a operação de “livramento” se intensifica, ainda mais com o envolvimento de um general, o pai do ex-auxiliar de Bolsonaro. Uma possível delação de Cid, aliás, pode servir ao propósito de tratar o ex-presidente como quase um corpo externo, uma espécie de tropeço na jornada da instituição.
Em uma entrevista à BBC, em 2020, o antropólogo, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e pesquisador da área militar, Piero Leirner, definia de forma precisa a relação entre o então presidente e as casernas: “não é uma questão de se os militares aprovam ou não o governo: eles são o governo e Bolsonaro é o projeto deles”. Inclusive, quando questionado sobre “como os militares embarcaram no governo Bolsonaro?”, ele responde que “a pergunta poderia ser invertida: ‘Como Bolsonaro embarcou no governo dos militares?’.”
Para evitar falsificações, é preciso resgatar o histórico recente, como fez Leirner, lembrando que o lançamento de fato da candidatura do ex-presidente para 2018 foi realizado em 2014, pouco depois da realização do segundo turno da eleição presidencial vencida por Dilma Rousseff, na Academia Militar das Agulhas Negras. “Saiu de lá aclamado como ‘líder!’. Esse tipo de ato só é possível se houver autorização do comandante da Academia. E, como Bolsonaro repetiu a visita em 2015, 2016, 2017 e 2018, posso afirmar que ele contou com o conhecimento do comandante do Exército e com o descaso dos ministros da Defesa e dos presidentes da República”, ressaltou o antropólogo.
Figuras importantes do meio militar travaram conversas com o então vice-presidente Michel Temer em meio ao processo que resultou no impeachment sem crimes de responsabilidade de Dilma, segundo ele mesmo admitiu em livro. Embora tente dar um ar de institucionalidade nas diversas ocasiões em que se encontrou com o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, mantido no cargo em seu governo, e o chefe do Estado-Maior da Força, general Sérgio Etchegoyen, depois escalado como chefe do recriado Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Temer naturaliza (e não é só ele que faz isso) a participação de integrantes do Exército na vida político-partidária.
No livro Dano Colateral: a intervenção dos militares na segurança pública, a jornalista Natalia Viana aponta que um dos objetivos admitidos pelo próprio Etchegoyen ao assumir o GSI (que havia sido extinto no governo Dilma) era “trazer de volta os militares a fóruns de onde eles tinham saído”, mencionando, por exemplo, a inclusão de integrantes das Forças Armadas em discussões sobre tratados internacionais, como se esta fosse uma tarefa castrense.
Etchegoyen foi um dos mentores da intervenção federal no Rio de Janeiro, promovida no governo Temer, também com o objetivo de conferir maior legitimidade às forças na atuação em uma área problemática como a segurança pública, rendendo dividendos políticos junto à sociedade. Lembrando que o responsável pela operação foi o general Walter Braga Netto, mais tarde ministro e candidato a vice-presidente na tentativa de reeleição de Bolsonaro.
Também foi na gestão Temer que, pela primeira vez desde sua criação, o Ministério da Defesa passou a ter como titular um militar, o general da reserva do Exército Joaquim Silva e Luna, mais adiante nomeado para a presidência da Petrobrás e posteriormente diretor-geral de Itaipu, por Bolsonaro. O fato teve sua importância diminuída e pouco foi debatido pela mídia tradicional, parte dela à época em lua de mel com o presidente de turno. Mas é fundamental lembrar que a criação da pasta, prevista na Constituição de 1988, faz parte do rearranjo democrático para efetivar a supremacia do poder civil sobre o militar.
Na ocasião, conversei com a doutoranda em Sociologia Política Anaís Medeiros Passos, que foi taxativa em relação à nomeação na RBA: “A nomeação de um militar para essa pasta torna precária essa divisão. Dependendo da duração de tal gestão, pode significar uma politização das Forças Armadas, que gera riscos para a sua organização – como a história mostra.” O que aconteceu na sequência confirmou a avaliação.
Nesse contexto em que os militares passaram a atuar de modo explícito no coração do poder político, não se pode esquecer de 3 de abril de 2018, quando havia a expectativa de julgamento do Habeas Corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Supremo Tribunal Federal no dia seguinte.
Comandante das Forças Armadas à época, o general Eduardo Villas Bôas, publicou em sua conta no Twitter a seguinte mensagem: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”, seguida de outra publicação: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.
A ameaça ao Supremo, conforme revelou o próprio general em livro, foi elaborada em conjunto com o Alto Comando da instituição. E na cerimônia de posse do primeiro ministro da Defesa da gestão Bolsonaro, o general Fernando Azevedo e Silva, o então presidente se dirigiu a ele, dizendo: “General Villas Bôas, o que já conversamos ficará entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.
Todas as digitais e os próprios integrantes da cúpula do Exército não negam como estiveram, desde o governo Temer, como parte fundamental do comando do Executivo brasileiro, com relações efetivas ainda nos outros Poderes. Não é possível dissociar o governo Bolsonaro de um projeto gestado por eles, e não deixa de ser simbólico que Mauro Cid tenha ido à CPI do 8 de janeiro fardado, enquanto o coronel do Exército Jean Lawand Junior, na mesma comissão, tenha participado de terno e gravata. A ligação com o topo da hierarquia militar de um e de outro é patente.
Uma declaração do hoje senador e ex-vice-presidente Hamilton Mourão dada em abril de 2019, transformada em vírgula sonora/meme pelo Medo e Delírio em Brasília, é ilustrativa da situação das Forças Armadas hoje. “Se o nosso governo falhar, errar demais, porque todo mundo erra, mas se errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas. Daí a nossa extrema preocupação.” A gestão Bolsonaro/militares foi muito além do mero erro. E a conta está na mesa.
Ali Babalsonaro e os 40 assessores
A alegação de que Bolsonaro teria vendido nos Estados Unidos as joias e relógios que lhe foram oferecidos pela Arábia Saudita e pelo Bahrein é, a se confirmar, uma inspiração a todos nós. Sua excelência o senhor ex-presidente da República do Brasil não teve vergonha de vender presentes. A vergonha é um monstro difícil de dominar, mas Bolsonaro conseguiu subjugá-la por completo.
Cada vez é mais claro que Bolsonaro não tem vergonha nenhuma. Quantas vezes já recebemos presentes de que não gostamos? Tantas.
Normalmente, a nossa reação é esquecê-los no fundo de uma gaveta. Em geral, nos ocorreria vendê-los. Especialmente se, a rigor, não fossem nossos, como é o caso.
Mas Bolsonaro terá mesmo avançado para a venda no site americano Precision Watches — com pena minha, aliás. Para manter a coerência com o nível do resto da história, Bolsonaro devia ter ido vender o Rolex e o Patek Philippe no site Enjoei.
Infelizmente, o mundo olha para um estadista que se dedica a vender presentes que não lhe pertencem e, em vez de louvar a sua coragem, o critica. O mundo parece acreditar que Bolsonaro e os seus assessores não tinham direito de vender as joias, uma vez que elas eram propriedade do Estado.
Tecnicamente, o mundo tem razão. Bolsonaro cometeu uma transgressão e fez uma desfeita. Uma transgressão porque, de fato, uma pessoa não pode vender o que não lhe pertence.
Uma desfeita porque os jornais de todo o planeta estão a revelar o destino que ele deu aos presentes que a Arábia Saudita e o Bahrein lhe ofereceram.
Os dirigentes daqueles países ficaram sabendo que Bolsonaro não gostou do Rolex nem do Patek Philippe que eles compraram com tanto carinho.
Se ele for novamente eleito presidente do Brasil e voltar a visitar aqueles países, talvez eles façam como nós quando um sobrinho adolescente faz aniversário e se limitam a lhe dar um envelope com dinheiro, para garantir que ele não se desfaça do presente na primeira oportunidade. Pouparia muito trabalho porque o envelope não precisa ser declarado na alfândega e nem vendido na Precision Watches.
Esta é mais uma prova da seriedade e do desapego de Bolsonaro. Bens materiais como joias e relógios não lhe dizem nada. Troca-os imediatamente por alguns simples papéis com alguns números escritos. Sempre a pensar nas contas corretas e na economia.
Cada vez é mais claro que Bolsonaro não tem vergonha nenhuma. Quantas vezes já recebemos presentes de que não gostamos? Tantas.
Normalmente, a nossa reação é esquecê-los no fundo de uma gaveta. Em geral, nos ocorreria vendê-los. Especialmente se, a rigor, não fossem nossos, como é o caso.
Mas Bolsonaro terá mesmo avançado para a venda no site americano Precision Watches — com pena minha, aliás. Para manter a coerência com o nível do resto da história, Bolsonaro devia ter ido vender o Rolex e o Patek Philippe no site Enjoei.
Infelizmente, o mundo olha para um estadista que se dedica a vender presentes que não lhe pertencem e, em vez de louvar a sua coragem, o critica. O mundo parece acreditar que Bolsonaro e os seus assessores não tinham direito de vender as joias, uma vez que elas eram propriedade do Estado.
Tecnicamente, o mundo tem razão. Bolsonaro cometeu uma transgressão e fez uma desfeita. Uma transgressão porque, de fato, uma pessoa não pode vender o que não lhe pertence.
Uma desfeita porque os jornais de todo o planeta estão a revelar o destino que ele deu aos presentes que a Arábia Saudita e o Bahrein lhe ofereceram.
Os dirigentes daqueles países ficaram sabendo que Bolsonaro não gostou do Rolex nem do Patek Philippe que eles compraram com tanto carinho.
Se ele for novamente eleito presidente do Brasil e voltar a visitar aqueles países, talvez eles façam como nós quando um sobrinho adolescente faz aniversário e se limitam a lhe dar um envelope com dinheiro, para garantir que ele não se desfaça do presente na primeira oportunidade. Pouparia muito trabalho porque o envelope não precisa ser declarado na alfândega e nem vendido na Precision Watches.
Esta é mais uma prova da seriedade e do desapego de Bolsonaro. Bens materiais como joias e relógios não lhe dizem nada. Troca-os imediatamente por alguns simples papéis com alguns números escritos. Sempre a pensar nas contas corretas e na economia.
Joias milionárias em troca de serviços prestados aos sauditas
Os Bolsonaro evoluíram. Foi sob o estigma da rachadinha que a família subiu a rampa do Palácio do Planalto pela primeira vez em janeiro de 2019. Carlos, o filho Zero Dois, carregava um revólver na cintura. Desfilara armado em carro aberto ao lado do pai pela Esplanada dos Ministérios repleta de camisas amarelas.
Foi sob o estigma do roubo de joias milionárias doadas pela ditadura da Arábia Saudita ao Estado brasileiro que o patriarca dos Bolsonaro e sua encantadora mulher fugiram do país em 30 de dezembro último. O golpe planejado para aquele mês fracassara porque o Alto Comando do Exército dividiu-se na hora de apoiá-lo.
Todos os generais eram bolsonaristas, uns mais do que os outros. Ajudaram a eleger Bolsonaro presidente, ajudaram-no a governar e se beneficiaram disso, ajudaram-no a se reeleger, mas uma parcela não estava disposta a arriscar a carreira participando de um golpe que poderia não dar certo, como não deu.
A apropriação de parte dos salários pagos a funcionários dos Bolsonaro, a tal da rachadinha, foi ofuscada pelo escândalo das joias. Rachadinha é uma invenção antiga. Sempre existiu e continuará existindo. No caso, fez diferença porque nunca um presidente fora acusado de valer-se dela para enriquecer.
As joias, pelo seu valor excepcional, contam uma história que a Polícia Federal corre atrás. Foi recompensa por relevantes serviços prestados por Bolsonaro aos sauditas, mas ainda ocultos? Foi pagamento adiantado por serviços a serem prestados tão logo ele se reelegesse? Uma espécie de aposta no mercado futuro?
Apenas o conjunto de joias destinado a Michelle foi avaliado em R$ 4.150.584. E tem mais na caixa de joias, como um relógio todo de diamantes, da pulseira até o mostrador, e avaliado em R$ 1 milhão. Observa uma perita da Polícia Federal ouvida pelo “Fantástico”, programa da Rede Globo de Televisão:
“E não é só a qualidade dos diamantes que conta. É também a quantidade, porque não são dezenas ou centenas. São milhares. Só no conjunto que tem o colar, a perícia identificou 3.161 diamantes, cada um avaliado individualmente.”
As peças masculinas também têm diamantes. Na caneta de ouro branco, eles são pequeninos, mas muitos: 1.120, o que deixa o valor da peça em R$ 100 mil. O Rolex, que faz parte do kit ouro branco, tem 184 diamantes. No mostrador de madrepérola, as pedras substituem os números. E há rubis até no mecanismo interno.
Em 2022, os kits masculinos de joias foram levados para os Estados Unidos em voo oficial. Na Pensilvânia, o tenente-coronel e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, vendeu o Rolex e outro relógio da marca Patek Philippe. Os dois itens foram vendidos por US$ 68 mil. Só o Rolex valia US$ 75 mil..
O dinheiro apurado foi depositado na conta do pai de Cid, general Mauro Lourena Cid, que morava em Miami, e enviado aos poucos para o Brasil. O kit de ouro rosé foi para uma casa de leilões em Nova York, onde foi resgatado em março pelo grupo do coronel Cid e entregue ao Tribunal de Contas da União.
Acredite se quiser: o advogado de Cid, Cezar Roberto Bittencourt, afirma que seu cliente não sabia que era ilegal vender as joias. Não sabia mesmo:
“Ele [Cid] retirou o dinheiro e destinou a quem era de direito, a família presidencial, o presidente, a primeira-dama”.
A Polícia Federal encontrou uma mensagem no celular de Cid, o filho, que indicam que Bolsonaro sabia das tentativas do seu ajudante de ordem de vender e depois resgatar as joias. À CNN Brasil, o próprio Bolsonaro já confessou:
“Alguém falou que poderia vender. Aí eu falei: faz aí, mas dentro das quatro linhas. Se pode vender, então vende”.
Foi sob o estigma do roubo de joias milionárias doadas pela ditadura da Arábia Saudita ao Estado brasileiro que o patriarca dos Bolsonaro e sua encantadora mulher fugiram do país em 30 de dezembro último. O golpe planejado para aquele mês fracassara porque o Alto Comando do Exército dividiu-se na hora de apoiá-lo.
Todos os generais eram bolsonaristas, uns mais do que os outros. Ajudaram a eleger Bolsonaro presidente, ajudaram-no a governar e se beneficiaram disso, ajudaram-no a se reeleger, mas uma parcela não estava disposta a arriscar a carreira participando de um golpe que poderia não dar certo, como não deu.
A apropriação de parte dos salários pagos a funcionários dos Bolsonaro, a tal da rachadinha, foi ofuscada pelo escândalo das joias. Rachadinha é uma invenção antiga. Sempre existiu e continuará existindo. No caso, fez diferença porque nunca um presidente fora acusado de valer-se dela para enriquecer.
As joias, pelo seu valor excepcional, contam uma história que a Polícia Federal corre atrás. Foi recompensa por relevantes serviços prestados por Bolsonaro aos sauditas, mas ainda ocultos? Foi pagamento adiantado por serviços a serem prestados tão logo ele se reelegesse? Uma espécie de aposta no mercado futuro?
Apenas o conjunto de joias destinado a Michelle foi avaliado em R$ 4.150.584. E tem mais na caixa de joias, como um relógio todo de diamantes, da pulseira até o mostrador, e avaliado em R$ 1 milhão. Observa uma perita da Polícia Federal ouvida pelo “Fantástico”, programa da Rede Globo de Televisão:
“E não é só a qualidade dos diamantes que conta. É também a quantidade, porque não são dezenas ou centenas. São milhares. Só no conjunto que tem o colar, a perícia identificou 3.161 diamantes, cada um avaliado individualmente.”
As peças masculinas também têm diamantes. Na caneta de ouro branco, eles são pequeninos, mas muitos: 1.120, o que deixa o valor da peça em R$ 100 mil. O Rolex, que faz parte do kit ouro branco, tem 184 diamantes. No mostrador de madrepérola, as pedras substituem os números. E há rubis até no mecanismo interno.
Em 2022, os kits masculinos de joias foram levados para os Estados Unidos em voo oficial. Na Pensilvânia, o tenente-coronel e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, vendeu o Rolex e outro relógio da marca Patek Philippe. Os dois itens foram vendidos por US$ 68 mil. Só o Rolex valia US$ 75 mil..
O dinheiro apurado foi depositado na conta do pai de Cid, general Mauro Lourena Cid, que morava em Miami, e enviado aos poucos para o Brasil. O kit de ouro rosé foi para uma casa de leilões em Nova York, onde foi resgatado em março pelo grupo do coronel Cid e entregue ao Tribunal de Contas da União.
Acredite se quiser: o advogado de Cid, Cezar Roberto Bittencourt, afirma que seu cliente não sabia que era ilegal vender as joias. Não sabia mesmo:
“Ele [Cid] retirou o dinheiro e destinou a quem era de direito, a família presidencial, o presidente, a primeira-dama”.
A Polícia Federal encontrou uma mensagem no celular de Cid, o filho, que indicam que Bolsonaro sabia das tentativas do seu ajudante de ordem de vender e depois resgatar as joias. À CNN Brasil, o próprio Bolsonaro já confessou:
“Alguém falou que poderia vender. Aí eu falei: faz aí, mas dentro das quatro linhas. Se pode vender, então vende”.
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