Considere uma fotografia. Nela você vê meninos, jovens e idosos, homens e mulheres. Todos olham para a câmera sorrindo, e logo você acha que se trata de uma família.
Mas só há um modo de confirmar suas intuições, porque, se a foto exibe contundentemente os indivíduos, ela não mostra o mais importante: as suas relações.
Uma visão mais precisa do quadro só pode ocorrer quando você, realizando um trabalho parecido com o dos jornalistas, antropólogos e policiais, indagar quem é quem e — nessa indagação — descobrir a teia invisível que liga esses indivíduos entre si. Quando os elos são revelados, os indivíduos ganham existência — são parte de um enredo.
Aquela bela mulher é a mãe dos meninos; o sujeito engravatado é seu ciumento marido; aquele velho sorridente é o avô; aquela pessoa no fundo é a empregada...
Todos nós aprendemos a ser quem somos por meio de relações centradas no nosso grupo doméstico. Foi por meio de um código administrado pelos nossos pais — os “donos na casa” — que aprendemos uma língua e o mundo. Esse código só é questionado nas crises, pois o sistema da casa é tido como natural. Ele é hierárquico e sustentado pelos axiomas morais de direitos e deveres (o “pode” ou “não pode”) não escritos.
Descobrimos a individualidade na “rua” quando “levamos pau” na escola, brigamos, xingamos e, sobretudo, namoramos, experimentando uma sexualidade vedada no lar. O mundo da “rua” nos revela um outro lado. Nele, não somos exclusivos, porque suas regras são impessoais e, por isso, sempre surgem contra nós, porque nos obrigam a existir como anônimos e — eis o absurdo! — como iguais: desconhecidos e comuns.
Contra elas, usamos as teias invisíveis da casa. O resultado é uma óbvia esquizofrenia (semente de corrupção, nepotismo e despotismo); e uma ambiguidade que cobra seu alto preço contrariando os valores democráticos da vida pública.
Somos “pessoas” em casa e “indivíduos” na rua. Como pessoas, temos os privilégios dos nobres; como indivíduos, somos cidadãos sujeitos da lei. Como ficar vacinado contra o uso dos elos pessoais na rua afirmando que, mais do que pedestres, somos netos de um desembargador ou filhos do presidente?
Se somos “alguém”, como é que os outros não sabem quem realmente somos? O “você sabe com quem está falando?” é um grito a favor de privilégios em situações igualitárias.
No Brasil, os regimes mudam, mas o “você sabe com quem está falando?” permanece cada vez mais atual. Ele vitaliza na medida em que a demanda de igualdade (que exige coerência) parece aumentar.
Mas há uma grande resistência. O melhor exemplo é o estilo intolerante, incoerente e grosseiro de um presidente que canibalizou pessoal e familisticamente um cargo que pertence ao povo brasileiro. E, por meio dele, bloqueia questionamentos baseados na premissa democrática da igualdade. A razão do estilo áspero, irracional e agressivo de Bolsonaro é um equivalente do “você sabe com quem está falando?”, revelador de uma alergia à liberdade de imprensa — esse aval da democracia.
Como um anti-igualitário, Bolsonaro se assemelha a Trump, mas há uma notável diferença. Lá, eles instituíram a igualdade republicana até agora contínua nos seus valores; aqui, a igualdade republicana sofreu descontinuidades, e ela é formalmente válida ao lado de muitos mecanismos que sublinham os privilégios — as leis privativas de certos cargos e segmentos.
Escolhendo não escolher entre a casa e a rua, inventamos um estilo de vida minado por contradições, que eram harmonizadas por uma abusiva condescendência. Um preguiçoso “deixa pra lá” que os meios de comunicação hoje denunciam por meio de uma implacável transparência. Nela, vemos a permanente ambiguidade do sistema.
Para quem está faz tempo na estrada, parece claro que vivemos reinventando a democracia, somente para sentir saudade do autoritarismo. Amamos as regras universais no papel e para os outros, mas as odiamos na prática, quando descobrimos que a elas estamos sujeitos.
A pandemia é ainda mais trágica porque não tem viés político. Exceto pela gigantesca ausência de liderança adequada e humana, uma ausência resultante de um irracional negacionismo. Mas o fato concreto é que o vírus desorganiza hierarquias e obriga a neutralizar a nossa habitual desumanidade. Ela estampa o dilema da ambiguidade relativa que mantém privilégios, mas, simultaneamente, apresenta a cura.
Iniciamos a vacinação dentro de um campo politizado precisamente pela velha enfermidade de um “você sabe com quem está falando?” —o famoso “quem é que manda?!” — que prolonga a doença e a morte. E assim será até nos convencermos de que a cura dos privilégios chega com a vacina da democracia — essa forma de organização coletiva simples e frágil que, como os bons remédios, requer uma enorme paciência, um exigente bom-caratismo e um persistente bom senso.