terça-feira, 29 de março de 2022

Dá um embrulho no estômago ouvir as mentiras do 'capitão do povo'

Bolsonaro não era capitão quando começou o processo que acabaria por afastá-lo do Exército por conduta antiética. Para o general Ernesto Geisel, o terceiro presidente da ditadura, ele foi um mau militar. Concederam-lhe a patente de capitão em troca de não criar mais confusão e despir a farda sem maior barulho.

No encontro promovido pelo PL, em Brasília, para filiar o presidente e alguns ministros, Bolsonaro, que planejou atentados a bomba a quartéis, apresentou-se como “o capitão do povo”. Reescrever a história é um mero detalhe, recurso comumente usado pelo marketing político para promover os candidatos. Ninguém liga.

Liga para o que o candidato fez, promete e diz. E o que disse Bolsonaro, em mais um ato escancarado de campanha, pode ter agradado aos seus seguidores, mas não lhe assegurou um voto fora da bolha. Quem vota nele continuará votando. Por ora, ele cresce com a volta dos que procuravam um candidato nem-nem.

Os ministros da ala política do governo, que sonham com a reencarnação do Jairzinho Paz e Amor, fantasia vestida por Bolsonaro depois do fracasso do golpe militar de 7 de setembro último, não gostaram quando ele disse que, por vezes, dá um embrulho no seu estômago ter que respeitar a Constituição.


Ao tomar posse, um presidente jura cumprir a Constituição. Bolsonaro jurou, assim como prometeu governar para todos os brasileiros, não só para aqueles que o elegeram. A Constituição pode ser mudada pelo Congresso, mas ela tem dispositivos que não podem ser mudados. São conhecidos como “cláusulas pétreas”.

Agrupam-se no artigo 60, parágrafo 4, da Constituição. São eles: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação e independência dos Três Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário); e os direitos e garantias individuais.

Direitos individuais são aqueles que oferecem o básico aos cidadãos, como a liberdade de ir e vir, liberdade de expressão, livre trabalho, saúde e educação. Dá vontade de vomitar ouvir um presidente dizer que a Constituição, às vezes, embrulha o seu estômago. Se a Constituição falasse, talvez dissesse o mesmo dele.

Bolsonaro embrulhou o estômago alheio, mais uma vez, ao não deixar passar a oportunidade de exaltar a memória do seu amigo, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o único militar condenado pela Justiça por tortura de presos políticos à época da ditadura de 64. A presidente Dilma foi torturada por Ustra.

Embrulhou outra vez ao usar de tom belicoso, claramente armamentista, para proclamar:

“[Em defesa da nossa liberdade e da nossa democracia], eu tomarei a decisão contra quem quer que seja. E a certeza do sucesso é que eu tenho um exército do meu lado. E esse exército é composto por cada um de vocês.”

Os militares golpistas de 64 invocaram o direito à liberdade e a democracia ao depor um presidente legitimamente eleito e instalar uma ditadura que durou 21 anos, torturou, matou e instituiu a censura. Bolsonaro não esconde que sente saudades dela. Apenas lamenta que ela tenha matado tão poucos.

Se dependesse unicamente dele, liberdade só haveria a seu favor. Isso novamente ficou demonstrado quando o PL, agora sob sua orientação, e a pretexto de que era propaganda eleitoral antes da hora, tentou calar manifestações políticas de artistas no festival Lollapalooza, realizado em São Paulo.

Foi mais um tiro que Bolsonaro deu no próprio pé. Ele deve detestar o pé. Então, as manifestações se multiplicaram, o público aderiu com entusiasmo, e descobriu-se que o juiz que atendeu sua queixa, proibindo o que não deveria proibir, favoreceu-o há poucos dias ao impedir a remoção de um outdoor com o seu retrato.

Só os ucranianos, às voltas com os russos, ignoram que Bolsonaro está em campanha à reeleição desde o seu primeiro dia de governo, e mais ostensivamente do fim do ano passado para cá. E com todas as despesas pagas pela Presidência da República. O que são as motociatas? E as inaugurações de obras prontas?

É melhor já irem se acostumando os aliados de cabeça fria do presidente: Jairzinho Paz e Amor, invenção do ex-presidente Temer, foi abortado logo depois do seu nascimento. Não tem lugar para ele nos palanques de campanha de Bolsonaro. Tratem, portanto, de apelar a outras mentiras para enganar o povo.

Pastores que querem impor sua visão de mundo

No delicioso “Rato de redação: Sig e a história do Pasquim”, de Márcio Pinheiro, com histórias do hebdomadário Pasquim, há registro de uma cena — ocorrida no final de 1970! — que mostra a definitiva atualidade do renitente atraso brasileiro.

No quadro “Independência ou morte”, de Pedro Américo, o cartunista Jaguar aplicou um balão em cima da figura de Dom Pedro I, como se fossem seus dizeres: “Eu quero mocotó” — e seguiam dois pontos de exclamação.

O novo Grito do Ipiranga emulava o estribilho da canção homônima de Jorge Benjor, defendida no V Festival Internacional da Canção por Erlon Chaves e sua Banda Veneno. Por causa da sensualidade de seu coro feminino, Erlon teve de dar explicações na delegacia.

A irreverência de Jaguar custou-lhe uma cana. Boa parte da redação do Pasquim seguiria também para a mesma cela por quase três meses.


Ocupando meia página, o cartum de Jaguar nem sequer ganhara destaque no tabloide. Ao ser interrogado, soube que estava ali detido por haver desrespeitado um símbolo nacional.

— Mas esse quadro é uma porcaria, além de ser plágio — informou Jaguar, em seguida posto atrás das grades.

O poder nunca soube lidar com o humor, com os chistes. A ironia fina crucifica os ridículos. Jaguar e a turma do Pasquim enfrentavam a barra dura da ditadura militar — naquele ano de 1970, o padrão eram prisões seguidas de torturas.

Décadas antes, em 1922, a dupla Freire Júnior e Luís Sampaio (o “Careca”) compôs a marcha “Ai, seu Mé”. Nilo Peçanha e Artur Bernardes, conhecido pelo apelido de “Seu Mé”, disputavam a eleição presidencial. Vitorioso, o vingativo Bernardes mandou prender os autores. Freire Júnior ficou escondido, mas Careca padeceu dias no xilindró.

Era tarde, porque a população continuou cantando a marchinha pelas ruas. A mesma desobediência civil (aqui, sendo generosos com os golpistas) ocorreria com “Apesar de você”, de Chico Buarque, lançada sob o governo Médici. A censura não entendeu a letra e a liberou para gravação, logo transformada em sucesso com milhares de cópias vendidas em pouco tempo. Até que alguma autoridade com mais tutano compreendeu o recado — hoje você é quem manda/falou, tá falado/não tem discussão —, e a música foi proibida.

De novo, era tarde, porque é difícil ainda hoje não encontrar quem não cantarole que apesar de você/amanhã há de ser outro dia, mesmo sem saber o contexto da letra.

A tentativa de cercear a sociedade, seja na censura às artes, seja no cabresto imposto aos comportamentos, é um instituto abraçado por governos e grupos diversos. Em geral, minoritários sedentos de colocar na maioria seus guizos e de lançar seus preconceitos. Quase sempre lançam mão de epítetos genéricos como família, tradição e Deus para baixar o porrete ou forjar leis na tentativa de impor sua imagem de mundo.

Antes de chegarmos aos pastores de Bozo, um pouco de História, a partir do livro do antropólogo David Graeber e do arqueólogo David Wengrow. Em “The dawn of everything: a new history of humanity”, a dupla busca mostrar como o padrão das sociedades indígenas americanas, no século XVII, com seus conceitos de liberdade, solidariedade e igualdade, chocou os intelectuais europeus, por certo influenciando as ideias iluministas.

Se provocaram reflexões nos principais autores da época, causaram engulho nos jesuítas enviados ao Novo Mundo com a missão de catequizar os povos indígenas da América do Norte. A missão cristã se escandalizou com a liberdade sexual, de casamento, de repúdio à ideia de propriedade e com o descompromisso brutal em obedecer a ordens. Ou, no termo do antropólogo James C. Scott, com “o domínio da arte de não ser governado”.

Para os indígenas americanos, além de não haver o conceito de culpa (a culpa cristã), havia uma identificação e respeito com os entes da natureza. Em registros do pensamento de Kandiaronk, líder indígena responsável por dialogar com os europeus, há uma crítica curiosa, que balançou o coreto dos intelectuais: como é que eles passavam a vida atormentados pela busca de riqueza, dentro de uma sociedade que os tornava escravos uns dos outros? Para os autores do livro, a sabedoria dos autóctones americanos se tornou um presente ao Iluminismo, ainda mais pelos ideais de liberdade. O que leva Kandiaronk a questionar “a extraordinária autoimportância da convicção jesuíta de que um ser onisciente e onipotente escolheria livremente se prender em carne e sofrer terríveis sofrimentos, tudo por causa de uma única espécie”.

Apesar da permanência de suas ideias, sabemos o que aconteceu aos indígenas americanos (brasileiros também).

A luta (contra a maioria) continua. Uma pequena minoria evangélica (de pentecostais e neo), em seu projeto de poder, procura demonizar a maioria que não segue seu credo. Pedem tolerância e impõem sua idiossincrática intolerância. Usam nosso dinheiro (como isenção de impostos etc.), não para rezar, porém com manifesta má intenção de limitar nossa livre consciência e de cevar aleivosias. É hora de gritar: eu quero mocotó.

Nenhuma guerra é simples

Numa das minhas últimas colunas chamei a atenção para o perigo e o absurdo de se aceitar como normal que forças neonazis combatam ao lado dos ucranianos contra os invasores russos, inclusive integradas no aparelho militar do governo. Desde então venho recebendo mensagens de leitores. Alguns, os mais fiéis, enviam-me cartas indignadas, porém respeitosas; outros, os que apenas leram aquela coluna, insultam-me e ameaçam-me.

“Você está complicando algo que é bem simples”, explicou-me um dos leitores fiéis: “A Rússia invadiu a Ucrânia. Então, a Rússia é o lado mau. Você quer ficar do lado do Putin?”

Obviamente, não estou do lado de Putin, o qual, aliás, conta também com o apoio de forças da extrema direita, incluindo mercenários. 

Gostamos de pensar que numa guerra as escolhas são simples, um lado é bom e o outro ruim. Dessa forma nos sentimos autorizados a odiar o lado mau, sem freio e sem remorsos. Infelizmente, nenhuma guerra é simples. Nem a mais insignificante. Nem sequer uma guerra entre marido e mulher. 


Desejar que uma determinada situação seja simples é como desejar que um unicórnio irrompa, do nada, no jardim em frente. A realidade não simpatiza com unicórnios — nem com ideias simples.

Somos seres complexos, com um profundo horror à complexidade. 

Em primeiro lugar, o fato de um lado ser mau não significa que o outro seja bom. Além disso, o fato de alguém ter razão num determinado conflito não torna melhores as suas ideias más. Finalmente, a maldade do meu inimigo em nada me aprimora. Já a maldade dos meus aliados, essa sim, me degrada e diminui.

Ouço dizer que o Batalhão Azov está combatendo os invasores russos, em Mariupol, com extraordinária bravura. Aliás, foi graças a essa mesma ferocidade, lutando contra os independentistas de etnia russa do Donbass, que o referido batalhão acabou integrado à Guarda Nacional. 

Há certas virtudes que engrandecem as pessoas boas, mas pioram as pessoas perversas. A coragem é uma delas. Um racista corajoso é muito pior do que um racista covarde. Um neonazi intrépido é muitíssimo mais perigoso do que aquele que foge e se esconde. 

A Ucrânia pagará um preço elevadíssimo por ter institucionalizado movimentos neonazis. E o que dizer dos países ocidentais, que hoje fingem não ver a dimensão e o poder desses movimentos, e a sua ligação íntima ao atual governo ucraniano?

Em 2018, o Congresso dos EUA aprovou um projeto de lei que proibia a venda de armas ao Batalhão de Azov. Com a invasão russa, porém, tanto os EUA quanto a Europa começaram a fornecer toneladas de armamento aos ucranianos, sendo difícil acreditar que uma larga parte deste armamento não vá parar às mãos dos neonazis, tanto mais que são estes nas linhas da frente, batendo-se contra as tropas russas. 

E amanhã, quando os russos deixarem a Ucrânia, derrotados, ou na sequência de um qualquer acordo de paz? O que é que os americanos e europeus pensam fazer com os neonazis que armaram até aos dentes, e que entretanto ganharam força, credibilidade, e expressão internacional?

Já vimos algo assim acontecer no Afeganistão. Triste mundo.

A legislação eleitoral é pró-político, e não pró-cidadão

Os anos eleitorais são aqueles em que a liberdade de expressão mais padece no Brasil. Isso acontece por uma razão: a legislação eleitoral foi desenhada desde sempre para favorecer o interesse dos políticos de serem eleitos ou reeleitos, e não o direito dos cidadãos de fazerem escolhas bem informadas ou falarem em público sobre política. A decisão do TSE que proibiu artistas de fazerem “propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido” no festival Lollapalooza é um exemplo disso.

A decisão foi tomada porque a cantora Pablo Vittar mostrou uma bandeira de Lula e a cantora Marina mandou Jair Bolsonaro fazer uma coisa feia, ambas durante seus shows. O partido do ocupante do Planalto achou que manifestações desse tipo o prejudicam eleitoralmente. Embora nem Lula nem Bolsonaro sejam ainda pré-candidatos, muito menos candidatos registrados, a Justiça eleitoral achou por bem mandar os artistas fecharem o bico.

Preciso explicar que, se Lula e Bolsonaro estivessem eu posições invertidas, eu defenderia os mesmos argumentos? Espero que não. Adiante…

A sentença contra o Lollapalooza, que precisa manter suas atrações na linha, ou ser multado, não tem nada de inesperado. Pelo contrário, ela está em absoluta consonância com o espírito da legislação brasileira e a maneira como ela tem sido interpretada pelo TSE.


O problema dessa legislação é que ela não diferencia entre partidos, políticos e cidadãos comuns. Qualquer pessoa, ao expressar preferência por um candidato, se transforma num possível infrator. A lei tampouco define com clareza o que constitui propaganda eleitoral, especialmente a “propaganda negativa”, categoria em que a manifestação da cantora Marina contra Bolsonaro foi enquadrada. Com isso, os juízes têm um arbítrio enorme para estabelecer o que pode e o que não pode.

Todos os dias, inimigos como Lula e Bolsonaro se ofendem em público. Lula chama o presidente de “psicopata” em uma rádio de grande alcance. Bolsonaro, visitando uma cidade para lançar uma obra, empoleirado em um palanque oficial, refere-se ao petista como “ladrão de nove dedos”. Nada disso é punido – nem mesmo o uso do palanque pago com dinheiro público para fim eleitoral. No entanto, o gesto das cantoras é proscrito.

Não é só nas corridas presidenciais que essa lógica se manifesta. A situação é a mesma, sejam quais forem os cargos em disputa. Por isso, em anos eleitorais, os pedidos de remoção de conteúdo das redes sociais quintuplicam ou sextuplicam. Brasil afora, são muitos os casos registrados de cerceamento da imprensa, tentativas de calar humoristas ou cartunistas, e outras situações em que a liberdade de expressão da sociedade civil é submetida aos interesses dos políticos de parecerem limpinhos, imaculados.

Quer a prova de que as eleições impõem uma lógica draconiana à manifestação de pensamento? Por decisão do STF, boa parte desses conteúdos bloqueados pode ser posta no ar novamente, depois que sai o resultado das urnas.

Agora vem a questão mais difícil de um texto como este: e fake news? Pode? Não existe contradição entre dizer que deveria haver mais liberdade de expressão em anos eleitorais e propor que haja combate contra as fake news. É possível querer as duas coisas ao mesmo tempo, pois o apoio aberto de um cantor a fulano ou sicrano não afeta o jogo democrático da mesma forma que uma incitação ao golpe de estado, um ataque à legitimidade das eleições feitas com urnas eletrônicas, ou a difusão em massa, de forma semi-clandestina, de mensagens estapafúrdias sobre adversários. Porém, tanto a legislação brasileira quanto os juízes eleitorais acabam dando o mesmo peso às duas coisas. Essa cultura jurídica precisa mudar.

PS: Tramita no Congresso uma alteração das regras sobre propaganda oficial que impactaria as eleições. O projeto original, do deputado Cacá Leão (PP-BA), falava sobre contratação de agências de publicidade pelo poder público. Mas a relatora do tema, Celina Leão (PP-DF), acrescentou ao texto, com mão de gato, uma autorização para que o período de exibição da propaganda oficial aumente, bem como os limites de gastos de todos os governos para essa finalidade. A razão é nobre: viabilizar campanhas sobre a Covid. Mas há pegadinhas. Primeiro, um político pilantra e um publicitário esperto são capazes de vender mil maravilhas em trinta segundos. Em segundo lugar, publicidade oficial, mesmo quando feita com respeito às leis e falando de assuntos de interesse público, representa uma vantagem para quem está no cargo, contra seus adversários. Essa vantagem faz parte do jogo, mas querer ampliá-la em pleno ano eleitoral é casuísmo. Uma imoralidade.