terça-feira, 29 de março de 2022

A legislação eleitoral é pró-político, e não pró-cidadão

Os anos eleitorais são aqueles em que a liberdade de expressão mais padece no Brasil. Isso acontece por uma razão: a legislação eleitoral foi desenhada desde sempre para favorecer o interesse dos políticos de serem eleitos ou reeleitos, e não o direito dos cidadãos de fazerem escolhas bem informadas ou falarem em público sobre política. A decisão do TSE que proibiu artistas de fazerem “propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido” no festival Lollapalooza é um exemplo disso.

A decisão foi tomada porque a cantora Pablo Vittar mostrou uma bandeira de Lula e a cantora Marina mandou Jair Bolsonaro fazer uma coisa feia, ambas durante seus shows. O partido do ocupante do Planalto achou que manifestações desse tipo o prejudicam eleitoralmente. Embora nem Lula nem Bolsonaro sejam ainda pré-candidatos, muito menos candidatos registrados, a Justiça eleitoral achou por bem mandar os artistas fecharem o bico.

Preciso explicar que, se Lula e Bolsonaro estivessem eu posições invertidas, eu defenderia os mesmos argumentos? Espero que não. Adiante…

A sentença contra o Lollapalooza, que precisa manter suas atrações na linha, ou ser multado, não tem nada de inesperado. Pelo contrário, ela está em absoluta consonância com o espírito da legislação brasileira e a maneira como ela tem sido interpretada pelo TSE.


O problema dessa legislação é que ela não diferencia entre partidos, políticos e cidadãos comuns. Qualquer pessoa, ao expressar preferência por um candidato, se transforma num possível infrator. A lei tampouco define com clareza o que constitui propaganda eleitoral, especialmente a “propaganda negativa”, categoria em que a manifestação da cantora Marina contra Bolsonaro foi enquadrada. Com isso, os juízes têm um arbítrio enorme para estabelecer o que pode e o que não pode.

Todos os dias, inimigos como Lula e Bolsonaro se ofendem em público. Lula chama o presidente de “psicopata” em uma rádio de grande alcance. Bolsonaro, visitando uma cidade para lançar uma obra, empoleirado em um palanque oficial, refere-se ao petista como “ladrão de nove dedos”. Nada disso é punido – nem mesmo o uso do palanque pago com dinheiro público para fim eleitoral. No entanto, o gesto das cantoras é proscrito.

Não é só nas corridas presidenciais que essa lógica se manifesta. A situação é a mesma, sejam quais forem os cargos em disputa. Por isso, em anos eleitorais, os pedidos de remoção de conteúdo das redes sociais quintuplicam ou sextuplicam. Brasil afora, são muitos os casos registrados de cerceamento da imprensa, tentativas de calar humoristas ou cartunistas, e outras situações em que a liberdade de expressão da sociedade civil é submetida aos interesses dos políticos de parecerem limpinhos, imaculados.

Quer a prova de que as eleições impõem uma lógica draconiana à manifestação de pensamento? Por decisão do STF, boa parte desses conteúdos bloqueados pode ser posta no ar novamente, depois que sai o resultado das urnas.

Agora vem a questão mais difícil de um texto como este: e fake news? Pode? Não existe contradição entre dizer que deveria haver mais liberdade de expressão em anos eleitorais e propor que haja combate contra as fake news. É possível querer as duas coisas ao mesmo tempo, pois o apoio aberto de um cantor a fulano ou sicrano não afeta o jogo democrático da mesma forma que uma incitação ao golpe de estado, um ataque à legitimidade das eleições feitas com urnas eletrônicas, ou a difusão em massa, de forma semi-clandestina, de mensagens estapafúrdias sobre adversários. Porém, tanto a legislação brasileira quanto os juízes eleitorais acabam dando o mesmo peso às duas coisas. Essa cultura jurídica precisa mudar.

PS: Tramita no Congresso uma alteração das regras sobre propaganda oficial que impactaria as eleições. O projeto original, do deputado Cacá Leão (PP-BA), falava sobre contratação de agências de publicidade pelo poder público. Mas a relatora do tema, Celina Leão (PP-DF), acrescentou ao texto, com mão de gato, uma autorização para que o período de exibição da propaganda oficial aumente, bem como os limites de gastos de todos os governos para essa finalidade. A razão é nobre: viabilizar campanhas sobre a Covid. Mas há pegadinhas. Primeiro, um político pilantra e um publicitário esperto são capazes de vender mil maravilhas em trinta segundos. Em segundo lugar, publicidade oficial, mesmo quando feita com respeito às leis e falando de assuntos de interesse público, representa uma vantagem para quem está no cargo, contra seus adversários. Essa vantagem faz parte do jogo, mas querer ampliá-la em pleno ano eleitoral é casuísmo. Uma imoralidade.

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