quarta-feira, 9 de março de 2022
Não existe motivo para nascer como vassalo de Putin
Há quinze dias, o ditador Vladimir Putin conclamava o exército ucraniano a dar um golpe, para depor o presidente Volodymyr Zelensky. Ele também afirmava que o país vizinho simplesmente não existia como nação. Que era uma invenção desastrada do camarada Vladimir Lenin. Hoje, o Kremlin já diz que os seus objetivos “não incluem nem a ocupação da Ucrânia, nem a destruicão do seu estado, nem a derrubada do governo atual”. Quer apenas, e coloquemos muitas aspas nesse advérbio, que a Crimeia seja reconhecida como parte da Rússia e que as separatistas Donetsk e Luhansk sejam consideradas independentes. A palavra de Vladimir Putin vale tanto quanto uma garrafa de vodca vazia, mas a mudança de discurso deixa claro que a invasão da Ucrânia não está sendo aquele passeio imaginado por Vladimir Putin.
Até o momento, o exército russo tomou, de fato, uma única grande cidade ucraniana, Kherson. E os invasores vêm enfrentando lá protestos da população, que não tem medo de se manifestar contra a agressão que o país sofre da parte de Moscou. No restante da Ucrânia, a resistência militar ucraniana é forte, apesar da precariedade de meios, e ela conta com o apoio ativo de milhares de cidadãos. Basta ver o que ocorre em Kiev, a capital, que está repleta de barricadas construídas por civis. O avanço da coluna de blindados russos é vagaroso e, desse modo, ela vem se mostrando uma presa fácil para o exército da Ucrânia. Ontem, o Pentágono estimou que de 2 mil a 4 mil soldados das forças invasoras foram mortos. Uma enormidade. Para se ter um ideia, no atoleiro do Afeganistão, morreram 15 mil soldados de Moscou, em dez anos de guerra. Além disso, de acordo com o governo da Ucrânia, mais de 20 mil estrangeiros, de 52 países, devem se juntar às suas tropas regulares, para defender o país.
No intuito de abalar a moral dos ucranianos, o exército russo comete seguidamente crimes de guerra, bombardeando casas, hospitais, escolas e edifícios administrativos e pilhando o comércio em zonas nas quais consegue entrar. Em Mariupol, a população continua cercada, com Moscou anunciando a abertura de “corredores humanitários” que, na verdade, são verdadeiras armadilhas, da mesma forma que ocorreu em Alepo, na Síria. Hoje, um hospital pediátrico foi bombardeado. A iniquidade é tamanha que até cidadãos pró-Rússia, aqueles que seriam defendidos do “nazismo” de Kiev, mudaram de posição e já não aprovam a invasão. Ou seja, a cada crime perpetrado, mais a moral dos ucranianos aumenta.
A Ucrânia é uma democracia onde a vontade popular é respeitada, dentro dos limites de uma Constituição moderna e que garante os direitos das minorias. A Rússia está se tornando cada vez mais uma prisão cujo diretor comete toda sorte de abusos. Há desrespeito a minorias, repressão à liberdade de manifestação, censura à imprensa e prisão e assassinato de adversários de Vladimir Putin, escolhidos a dedos para servir de exemplo. Em 2020, a Constituição foi reformada para atender única e exclusivamente às conveniências do ditador cínico. A contagem de mandatos presidenciais foi zerada, para permitir que ele permanecesse no cargo até 2036. Como se não bastasse, um novo artigo lhe garante imunidade eterna, assim como o cargo de senador vitalício, quando e se sair do poder. A estrovenga foi aprovada num referendo fajuto, sem nenhum controle externo para fiscalizar os locais de votação, que incluíam barracas de quermesse e casas lotéricas.
Em termos de liberdade política, portanto, Vladimir Putin não tem nada a oferecer aos russos e muito menos aos ucranianos ou qualquer outro povo que queira conquistar. Do ponto de vista econômico, a “grande Rússia” glorificada pelo ditador cínico é um fracasso. A compilação feita pela jornalista Isabelle Mandraud e o cientista político Julien Théron impressiona. Se for mantido o ritmo atual de exploração de gás e petróleo, principal fonte de financiamento do estado, as reservas conhecidas se esgotarão em pouco mais de 20 anos, até 2044. A renda per capita é menos de um terço da média dos países da União Europeia. O índice de desenvolvimento humano é inferior ao de 31 países europeus, incluindo ex-integrantes da União Soviética, império que Vladimir Putin quer reconstituir. Entre 180 países, a Rússia é o 137º com o maior índice de percepção de corrupção, atrás do Mali. A expectativa de vida, em 2019, era de 72,4 anos, praticamente 10 menos do que a média da União Europeia, o que colocava a Rússia entre Líbia e Bangladesh. A vice-primeira-ministra russa, Tatiana Golikova, um dos capachos de Vladimir Putin, disse há três anos que a diminuição da população do país era “catastrófica”. Ela poderá passar de 145 milhões de pessoas para menos de 100 milhões, no final deste século, se não houver mudança no padrão demográfico.
Não existe motivo nenhum para alguém nascer como vassalo de Vladimir Putin, seja ele russo ou não. E, vítimas de uma agressão brutal, os ucranianos estão dispostos a deixar o ditador cínico completamente despido das ilusões que quer vender ao mundo. Como a de que vale a pena, igualmente, morrer por ele.
Até o momento, o exército russo tomou, de fato, uma única grande cidade ucraniana, Kherson. E os invasores vêm enfrentando lá protestos da população, que não tem medo de se manifestar contra a agressão que o país sofre da parte de Moscou. No restante da Ucrânia, a resistência militar ucraniana é forte, apesar da precariedade de meios, e ela conta com o apoio ativo de milhares de cidadãos. Basta ver o que ocorre em Kiev, a capital, que está repleta de barricadas construídas por civis. O avanço da coluna de blindados russos é vagaroso e, desse modo, ela vem se mostrando uma presa fácil para o exército da Ucrânia. Ontem, o Pentágono estimou que de 2 mil a 4 mil soldados das forças invasoras foram mortos. Uma enormidade. Para se ter um ideia, no atoleiro do Afeganistão, morreram 15 mil soldados de Moscou, em dez anos de guerra. Além disso, de acordo com o governo da Ucrânia, mais de 20 mil estrangeiros, de 52 países, devem se juntar às suas tropas regulares, para defender o país.
No intuito de abalar a moral dos ucranianos, o exército russo comete seguidamente crimes de guerra, bombardeando casas, hospitais, escolas e edifícios administrativos e pilhando o comércio em zonas nas quais consegue entrar. Em Mariupol, a população continua cercada, com Moscou anunciando a abertura de “corredores humanitários” que, na verdade, são verdadeiras armadilhas, da mesma forma que ocorreu em Alepo, na Síria. Hoje, um hospital pediátrico foi bombardeado. A iniquidade é tamanha que até cidadãos pró-Rússia, aqueles que seriam defendidos do “nazismo” de Kiev, mudaram de posição e já não aprovam a invasão. Ou seja, a cada crime perpetrado, mais a moral dos ucranianos aumenta.
A Ucrânia é uma democracia onde a vontade popular é respeitada, dentro dos limites de uma Constituição moderna e que garante os direitos das minorias. A Rússia está se tornando cada vez mais uma prisão cujo diretor comete toda sorte de abusos. Há desrespeito a minorias, repressão à liberdade de manifestação, censura à imprensa e prisão e assassinato de adversários de Vladimir Putin, escolhidos a dedos para servir de exemplo. Em 2020, a Constituição foi reformada para atender única e exclusivamente às conveniências do ditador cínico. A contagem de mandatos presidenciais foi zerada, para permitir que ele permanecesse no cargo até 2036. Como se não bastasse, um novo artigo lhe garante imunidade eterna, assim como o cargo de senador vitalício, quando e se sair do poder. A estrovenga foi aprovada num referendo fajuto, sem nenhum controle externo para fiscalizar os locais de votação, que incluíam barracas de quermesse e casas lotéricas.
Em termos de liberdade política, portanto, Vladimir Putin não tem nada a oferecer aos russos e muito menos aos ucranianos ou qualquer outro povo que queira conquistar. Do ponto de vista econômico, a “grande Rússia” glorificada pelo ditador cínico é um fracasso. A compilação feita pela jornalista Isabelle Mandraud e o cientista político Julien Théron impressiona. Se for mantido o ritmo atual de exploração de gás e petróleo, principal fonte de financiamento do estado, as reservas conhecidas se esgotarão em pouco mais de 20 anos, até 2044. A renda per capita é menos de um terço da média dos países da União Europeia. O índice de desenvolvimento humano é inferior ao de 31 países europeus, incluindo ex-integrantes da União Soviética, império que Vladimir Putin quer reconstituir. Entre 180 países, a Rússia é o 137º com o maior índice de percepção de corrupção, atrás do Mali. A expectativa de vida, em 2019, era de 72,4 anos, praticamente 10 menos do que a média da União Europeia, o que colocava a Rússia entre Líbia e Bangladesh. A vice-primeira-ministra russa, Tatiana Golikova, um dos capachos de Vladimir Putin, disse há três anos que a diminuição da população do país era “catastrófica”. Ela poderá passar de 145 milhões de pessoas para menos de 100 milhões, no final deste século, se não houver mudança no padrão demográfico.
Não existe motivo nenhum para alguém nascer como vassalo de Vladimir Putin, seja ele russo ou não. E, vítimas de uma agressão brutal, os ucranianos estão dispostos a deixar o ditador cínico completamente despido das ilusões que quer vender ao mundo. Como a de que vale a pena, igualmente, morrer por ele.
A barbárie da civilização
Suspeito que falta ainda muito para se inscrever nos dicionários o exato sentido da palavra civilização.Carlos Drummond de Andrade
O não-país
Nos últimos tempos, tenho a impressão de viver em um não-país. Nada parecido com a destemida Ucrânia que o tirano Vladimir Putin taxa como um não-país. Até porque lá a resistência forjou um líder, enquanto por aqui a mediocridade de populistas domina. Habitamos um Brasil regido por um desconcertante pouco caso com as aflições humanas, dúbio, que emite sinais confusos, ressuscita corruptos e joga no lixo boa parte de suas virtudes. E isso não é de hoje, começou muito antes da covarde invasão de Putin à Ucrânia.
Diante da guerra, somos Dois Brasis. Não só os de Jacques Lambert, com as latentes desigualdades sociais sintetizadas por ele e que continuam se aprofundando há mais cinco décadas, mas em uma esfera em que o país sempre fora referência: a política externa.
Na ONU, o Brasil condena Putin, enquanto o presidente Jair Bolsonaro o adula. Uma barafunda apelidada de “posição de equilíbrio”, embora não pare em pé.
Bolsonaro, diga-se, é um dos maiores propagandistas do nosso não-país. Mergulha em desatinos de que nações ricas querem a Amazônia ao mesmo tempo que impulsiona a destruição da floresta. Reduz a fiscalização do Ibama, faz vista grossa aos desmatamentos e às queimadas, estimula o garimpo ilegal que deseja ver se esparramar por terras indígenas.
Ao mundo, já havia provado sua absoluta incapacidade em fóruns internacionais e nos pouquíssimos encontros bilaterais, um deles com Putin, a quem prestou solidariedade dias antes de o russo iniciar a matança de ucranianos. Por aqui, o presidente já havia dado mostras incisivas de sua indecência, escancarada no descaso e empatia zero no trato com a pandemia que tirou a vida de mais de 650 mil brasileiros, no acobertamento dos malfeitos de sua prole, na obsessão pela reeleição.
No âmbito da Justiça, o Brasil condenou meio mundo de políticos e empresários no Mensalão e Petrolão, recuperou recursos milionários desviados para financiar campanhas e engordar bolsos. Tudo anulado pelo não-país.
Não por inocência dos réus, mas por “suspeita de suspeição” do juiz da primeira instância e tecnicismos como foro de origem, que acabaram por anular todas as provas contra o ex Lula e que, agora há pouco, “perdoaram” as rachadinhas de Flávio Bolsonaro. Nas eleições de outubro, além de Lula, outras figurinhas carimbadas por condenações suspensas no nosso não-país devem disputar votos.
Na Procuradoria-Geral de Augusto Aras nada contra Bolsonaro anda e no STF, o aliado Nunes Marques garante a paralisia de todos os julgamentos de interesse de bolsonaristas. Uma maravilha de não-país.
Lula, candidato à Presidência e líder em todas as pesquisas de opinião, também aposta no não-país. Insiste nos laços com ditadores ditos de esquerda, repudia, mas com moderação excessiva, a guerra insana de Putin. Chega ao cúmulo de pedir que os dois lados baixem as armas, equiparando a vítima ao agressor. Exala dubiedade, tibieza.
Ao mesmo tempo que se move para marcar posição frente a Bolsonaro, tem de agradar aos seus, que, para condenar o imperialismo norte-americano, entregam-se à cegueira. Fecham os olhos para a frieza assassina de Putin, as prisões de opositores, a narrativa mentirosa que só se mantém com censura férrea aos meios de comunicação.
A loucura é tamanha que na mesma sexta-feira leio o petista frei Leonardo Boff reclamar que a guerra ofuscou a visita de Lula ao México nas “TVs corporativas”, e o ex-bolsonarista deputado Arthur do Val, candidato ao governo de São Paulo pelo Podemos de Sérgio Moro, dizer que as ucranianas “são fáceis, porque são pobres”.
Chega de não-pais. Quero o Brasil de volta.
Diante da guerra, somos Dois Brasis. Não só os de Jacques Lambert, com as latentes desigualdades sociais sintetizadas por ele e que continuam se aprofundando há mais cinco décadas, mas em uma esfera em que o país sempre fora referência: a política externa.
Na ONU, o Brasil condena Putin, enquanto o presidente Jair Bolsonaro o adula. Uma barafunda apelidada de “posição de equilíbrio”, embora não pare em pé.
Bolsonaro, diga-se, é um dos maiores propagandistas do nosso não-país. Mergulha em desatinos de que nações ricas querem a Amazônia ao mesmo tempo que impulsiona a destruição da floresta. Reduz a fiscalização do Ibama, faz vista grossa aos desmatamentos e às queimadas, estimula o garimpo ilegal que deseja ver se esparramar por terras indígenas.
Ao mundo, já havia provado sua absoluta incapacidade em fóruns internacionais e nos pouquíssimos encontros bilaterais, um deles com Putin, a quem prestou solidariedade dias antes de o russo iniciar a matança de ucranianos. Por aqui, o presidente já havia dado mostras incisivas de sua indecência, escancarada no descaso e empatia zero no trato com a pandemia que tirou a vida de mais de 650 mil brasileiros, no acobertamento dos malfeitos de sua prole, na obsessão pela reeleição.
No âmbito da Justiça, o Brasil condenou meio mundo de políticos e empresários no Mensalão e Petrolão, recuperou recursos milionários desviados para financiar campanhas e engordar bolsos. Tudo anulado pelo não-país.
Não por inocência dos réus, mas por “suspeita de suspeição” do juiz da primeira instância e tecnicismos como foro de origem, que acabaram por anular todas as provas contra o ex Lula e que, agora há pouco, “perdoaram” as rachadinhas de Flávio Bolsonaro. Nas eleições de outubro, além de Lula, outras figurinhas carimbadas por condenações suspensas no nosso não-país devem disputar votos.
Na Procuradoria-Geral de Augusto Aras nada contra Bolsonaro anda e no STF, o aliado Nunes Marques garante a paralisia de todos os julgamentos de interesse de bolsonaristas. Uma maravilha de não-país.
Lula, candidato à Presidência e líder em todas as pesquisas de opinião, também aposta no não-país. Insiste nos laços com ditadores ditos de esquerda, repudia, mas com moderação excessiva, a guerra insana de Putin. Chega ao cúmulo de pedir que os dois lados baixem as armas, equiparando a vítima ao agressor. Exala dubiedade, tibieza.
Ao mesmo tempo que se move para marcar posição frente a Bolsonaro, tem de agradar aos seus, que, para condenar o imperialismo norte-americano, entregam-se à cegueira. Fecham os olhos para a frieza assassina de Putin, as prisões de opositores, a narrativa mentirosa que só se mantém com censura férrea aos meios de comunicação.
A loucura é tamanha que na mesma sexta-feira leio o petista frei Leonardo Boff reclamar que a guerra ofuscou a visita de Lula ao México nas “TVs corporativas”, e o ex-bolsonarista deputado Arthur do Val, candidato ao governo de São Paulo pelo Podemos de Sérgio Moro, dizer que as ucranianas “são fáceis, porque são pobres”.
Chega de não-pais. Quero o Brasil de volta.
A conspiração da ignorância
A realidade não nos tem dado sossego. O mundo avança por caminhos imprevistos. Há muito tempo que a energia motriz das nossas sociedades não é o petróleo, o carvão ou, mesmo, a eletricidade. O combustível com que atestamos a cabeça e o ânimo é a informação. É ela que nos põe em movimento. Com inúmeras formas, a informação chega de todos os lados, catalisada pela internet, multiplicada por mil. Talvez essa avalanche de perspetivas e interpretações, ajude a explicar esta situação. Talvez as extremas guinadas da atualidade noticiosa contribuam para a ideia de que tudo é possível.
Uma pandemia mundial, quem poderia imaginar? Para lá da quantidade considerável de epidemiologistas, tanto profissionais, como amadores, duvido que alguém conseguisse prever o que temos atravessado desde o início de 2020. Perante tal surpresa, não admira que haja quem duvide. Os já famosos negacionistas são gente com uma grande confiança nos seus sentidos, na sua experiência pessoal e nas suas fontes informativas.
Com ou sem pontuação, com ou sem maiúsculas, exprimem-se nas redes sociais e, às vezes, na rádio ou na televisão, naqueles programas que recebem telefonemas do público. Manifestam-se de peito feito, desafiantes, destemidos perante nenhuma ameaça percetível. Quando dizem eles referem-se ao mundo inteiro. Quando expõem ideias sobre a pandemia, o principal argumento que apresentam é de que não viram e não conhecem ninguém que tenha visto.
Suponho que não tenham amigos entre a comunidade de trabalhadores das análises clínicas. Para além desse detalhe, aquilo que me parece mais interessante é esta forma extravagante de analisar e avaliar o mundo: apenas existe aquilo que já se viu e experimentou. Consideremos por um instante a imensa quantidade de assuntos que nunca vimos à nossa frente, mas que acreditamos existir, contamos com eles na nossa conceção da existência.
No entanto, não é possível dizer apenas que não. Sempre que se nega alguma coisa, está implicitamente a afirmar-se o contrário ou uma variação daquilo que se nega. Quando avaliados a partir de outro ângulo, os negacionistas são muito mais afirmacionistas do que se poderia julgar numa primeira e apressada leitura.
Por espantosa ironia, os mesmos indivíduos que nos encorajam a desdenhar daquilo que não testemunhámos, pedem-nos para acreditar em conspirações secretas internacionais, em extraterrestres que ocuparam o planeta e se fazem passar por seres humanos, em seitas satânicas que controlam as elites mundiais, que praticam a pedofilia e se alimentam de sangue para rejuvenescer. Nenhum deles testemunhou realmente estes terríveis factos, apenas os encontraram descritos na internet por alguém que viu, foram-lhes enviados numa corrente anónima de mensagens nas redes sociais.
Ou seja, chegámos ao ponto em que, abertamente e sem pudor, se escolhe aquilo em que se acredita. Basta que exista um fluxo contínuo de “informação” a abastecer e a desenvolver essas ideias e, também, que exista uma comunidade disposta a acolher quem chega, a tratá-lo como um dos seus. Dá um certo conforto acreditar em conjunto, independentemente da crença em causa.
Antes, estas pessoas já existiam. Eram o maluco da aldeia, o excêntrico rancoroso. Agora, a tecnologia deu-lhes a oportunidade de comunicarem, de alimentarem em conjunto a sua mania, criaram associações e federações. E há muitas aldeias no mundo, mesmo muitas, cada uma com o seu maluco.
José Luís Peixoto
Uma pandemia mundial, quem poderia imaginar? Para lá da quantidade considerável de epidemiologistas, tanto profissionais, como amadores, duvido que alguém conseguisse prever o que temos atravessado desde o início de 2020. Perante tal surpresa, não admira que haja quem duvide. Os já famosos negacionistas são gente com uma grande confiança nos seus sentidos, na sua experiência pessoal e nas suas fontes informativas.
Com ou sem pontuação, com ou sem maiúsculas, exprimem-se nas redes sociais e, às vezes, na rádio ou na televisão, naqueles programas que recebem telefonemas do público. Manifestam-se de peito feito, desafiantes, destemidos perante nenhuma ameaça percetível. Quando dizem eles referem-se ao mundo inteiro. Quando expõem ideias sobre a pandemia, o principal argumento que apresentam é de que não viram e não conhecem ninguém que tenha visto.
Suponho que não tenham amigos entre a comunidade de trabalhadores das análises clínicas. Para além desse detalhe, aquilo que me parece mais interessante é esta forma extravagante de analisar e avaliar o mundo: apenas existe aquilo que já se viu e experimentou. Consideremos por um instante a imensa quantidade de assuntos que nunca vimos à nossa frente, mas que acreditamos existir, contamos com eles na nossa conceção da existência.
No entanto, não é possível dizer apenas que não. Sempre que se nega alguma coisa, está implicitamente a afirmar-se o contrário ou uma variação daquilo que se nega. Quando avaliados a partir de outro ângulo, os negacionistas são muito mais afirmacionistas do que se poderia julgar numa primeira e apressada leitura.
Por espantosa ironia, os mesmos indivíduos que nos encorajam a desdenhar daquilo que não testemunhámos, pedem-nos para acreditar em conspirações secretas internacionais, em extraterrestres que ocuparam o planeta e se fazem passar por seres humanos, em seitas satânicas que controlam as elites mundiais, que praticam a pedofilia e se alimentam de sangue para rejuvenescer. Nenhum deles testemunhou realmente estes terríveis factos, apenas os encontraram descritos na internet por alguém que viu, foram-lhes enviados numa corrente anónima de mensagens nas redes sociais.
Ou seja, chegámos ao ponto em que, abertamente e sem pudor, se escolhe aquilo em que se acredita. Basta que exista um fluxo contínuo de “informação” a abastecer e a desenvolver essas ideias e, também, que exista uma comunidade disposta a acolher quem chega, a tratá-lo como um dos seus. Dá um certo conforto acreditar em conjunto, independentemente da crença em causa.
Antes, estas pessoas já existiam. Eram o maluco da aldeia, o excêntrico rancoroso. Agora, a tecnologia deu-lhes a oportunidade de comunicarem, de alimentarem em conjunto a sua mania, criaram associações e federações. E há muitas aldeias no mundo, mesmo muitas, cada uma com o seu maluco.
José Luís Peixoto
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