sábado, 13 de junho de 2020

Soneto dos altivos humilhados

Nós, que fomos outrora tão altivos
E ao dizermos sim ou dizermos não
Agíamos com plena convicção,
Hoje estamos mais mortos do que vivos.

Agora somos fracos e furtivos
E quando alguém nos cobra uma opinião
O silêncio é nossa única reação,
Pelo mais improvável dos motivos.

Nós, que de nossa força nos gabávamos
E nossa voz confiantes elevávamos
Contra o mundo visível e o invisível,

Que voz iremos hoje levantar,
Depois que nos deixamos humilhar

Por um ser tão obscuro e desprezível?


Mais iguais

O papel das Forças Armadas na nossa democracia continua dando assunto para o debate político, e o Supremo Tribunal Federal (STF), o intérprete definitivo da Constituição, se pronunciou novamente ontem através do ministro Luis Fux, que assumirá a presidência da Corte em setembro. 

Respondendo a uma consulta do PDT, Fux disse, entre outras coisas: “A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluindo-se qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao Presidente da República”. 


Há, no entanto, quem tema que “esse famigerado artigo 142 ainda vai dar pano para manga”, como o historiador José Murilo de Carvalho, da Academia Brasileira de Letras. Ele escreveu um belo artigo recentemente no Globo fazendo um apanhado histórico do papel das Forças Armadas nas constituições brasileiras, onde ressaltou que desde 1891 existe a definição delas como “garantidoras dos poderes constitucionais”, aspecto que considera “ a justificativa preferida pelas FA para definir seu papel e justificar sua intervenção”. 

José Murilo me mandou um acréscimo de suas pesquisas sobre as FA nas constituições da Argentina, Uruguai e Chile, as outras três ditaduras da América do Sul, onde ele vê um “abismo de distância”. Nossos vizinhos, de fato, não definem um papel para as Forças Armadas. A Constituição argentina de 1994 diz apenas, em seu artigo 99: “O Presidente da República é o comandante-chefe das forças armadas da Nação”. A do Chile, de 2010, diz que “As FA dependem do Ministério da Defesa e “existem para a defesa da pátria e são essenciais para a segurança nacional”. A do Uruguai, de 1997, define: “O presidente da República tem o mando supremo de todas as Forças Armadas”. 

Entendo o temor de José Murilo de Carvalho e tantos outros, mas, diante das diversas manifestações institucionais do Supremo, do Congresso, e de órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), acho que não há mais caminho dentro da Constituição para a interpretação intervencionista. Mas, claro que sempre é possível um golpe militar. Quanto aos nossos vizinhos, sempre haverá quem diga que o presidente, sendo o comandante em chefe das FA, poderá decidir por uma intervenção militar. No Brasil, há ainda, pela primeira vez em 30 anos de democracia, essa indesejada mistura de militares com o governo. 

O presidente Bolsonaro usa os militares como ameaça – “as Forças Armadas estão do meu lado”, - embora os militares que estão no governo sempre aleguem que não há ministro militar, há ministros que vêm da área militar, como outros são políticos, ou engenheiros, ou advogados. 

Nesse caso, é indispensável que todos sejam da reserva e, sobretudo, que nunca mais vistam a farda, mesmo metaforicamente, muito menos para ameaçar as instituições. Não é o que acontece. O General Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, embora tenha anunciado a decisão de ir para a reserva, garante em entrevista à revista Veja que o Exército não dará um golpe, mas adverte: “o outro lado tem que entender também o seguinte: não estica a corda”. 

Ele também se recusou a comentar o que considera “implausível”: o TSE cassar a chapa presidencial. Ontem, o relator dos processos, ministro Og Fernandes, aceitou que o STF envie as provas já coletadas no inquérito das fake news presidido pelo ministro Alexandre de Moraes para serem compartilhadas pelo TSE. 

O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), se considerou com o direito de advertir que se o celular do presidente Bolsonaro fosse apreendido pela Polícia Federal poderia haver “consequências imprevisíveis”. Quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello convocou os três ministros militares do Planalto para depor, o aviso veio com um procedimento formal, que todo cidadão recebe da mesma maneira: se não comparecerem na data marcada, vão “debaixo de vara”. 

Um linguajar próprio da Justiça que em nada rebaixa os convocados. Mas os militares ficaram irritadíssimos, como se mentalmente continuassem se considerando diferentes dos outros cidadãos. Acham que são mais iguais que os outros, como no livro “A Revolução dos Bichos”, do George Orwell.

Pensamento do Dia


O capitão combate a verdade

“E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.” Bolsonaro venceu as eleições citando com frequência esse versículo de João. No entanto, não se conhece na História moderna do Brasil um governo que tenha combatido a verdade em todos os níveis.

Os números do desemprego, compilados pelo IBGE de acordo com métodos internacionalmente reconhecidos, foram negados por Bolsonaro. O indice de desmatamento na Amazônia obtido com ajuda de satélites foi contestado por Bolsonaro e o cientista Ricardo Galvão, demitido. Pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz sobre consumo de drogas no Brasil foram engavetadas porque não atendiam às expectativas do governo.

A briga contra os dados não se limitou ao choque contra o trabalho científico. Ele se estendeu de forma perigosa contra a própria possibilidade de acesso às informações oficiais.

Com a anuência de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão tentou fazer passar uma diretiva que permitia a funcionários de segundo escalão determinar o que era ou não passível de ser classifico como material secreto. A diretiva de Mourão caiu no Congresso.


Mal começou a pandemia, Bolsonaro, usando-a como pretexto, queria suspender parcialmente a Lei de Acesso à Informação. De novo foi derrotado, dessa vez no Supremo Tribunal Federal

A apoteose dessa medida obscurantista foi na semana que passou, com a decisão de censurar as informações sobre a pandemia de covid-19.

Inicialmente, um homem chamado Carlos Wizard, um bilionário que supõe entender de tudo, disse, em nome do governo, que os números de mortos estavam sendo inflacionados nos Estados e municípios porque os gestores queriam mais dinheiro.

Wizard foi para o espaço no momento em que se articulava na rede um boicote a suas atividades empresariais, incluídas ss de greenwashing, aquelas em que você ganha dinheiro fingindo que protege o meio ambiente. Mas foi Bolsonaro que, radicalizando sua política de negação da pandemia, ordenou que as notícias diárias sobre mortes e contaminações não poderiam ser divulgadas antes dos jornais noturnos de TV. E, mais ainda, ordenou que o número de mortos não poderia ultrapassar mil, sem explicar como combinaria com o vírus. Felizmente, as emissoras se deram conta e passaram a divulgar as notícias em plantões especiais, com audiência até maior que no início da noite.

O site do Ministério da Saúde saiu do ar. Voltou sem o número total de mortos. O governo queria baixar esse número e divulgar apenas a quantidade óbitos nas últimas 24 horas, sepultando o resultado do exame de outras mortes que não ficaram prontos no mesmo dia. Com esse expediente, o número de mortos iria baixar, pois nem todos os exames ficam prontos no mesmo dia.

Felizmente, todos perceberam. Uma onda de protesto percorreu o País, unindo Estados, Congresso, TCU, órgãos de informação, cientistas e opinião pública. A repercussão internacional também foi imediata. Jornais europeus criticaram, a própria OMS se pronunciou pela transparência.

O que aconteceu de forma escandalosa nesse momento é apenas resultado da luta de Bolsonaro contra a verdade, palavra que usou na campanha para enganar os eleitores, revestindo-a com um invólucro religioso.

A luta permanente contra a transparência é uma luta contra a democracia. Os militares, no período ditatorial, tentaram esconder um surto de meningite. Mas os tempos são outros.

A mais recente investida de Bolsonaro contra a realidade se deu na arena em que ele está apanhando muito dela: a do avanço da pandemia do coronavírus. Ele começou tachando-a de uma gripezinha. Não era. Questionou o isolamento social, o número de mortos, a existência de outras doenças entre os que foram levados pela covid-19. Um diretor da Polícia Rodoviária Federal caiu porque lamentou em nota a morte por covid-19 de um de seus comandados.

Diante da morte real, bolsonaristas começaram a contestar o conteúdo dos caixões. Houve vídeos afirmando que os caixões estavam cheios de tijolos. A deputada Zambelli chegou a insinuar que um caixão no Ceará estava vazio – é a mesma deputada intimada a depor sobre fake news e a mesma que aparece na internet, durante a campanha, dizendo que as lojas Havan pertenciam à filha de Dilma. Olha que audácia, refletia ela, usam o nome de Havan em homenagem a Cuba e erguem uma Estátua da Liberdade.

Mais tarde, ficou claro para o Brasil quem é dono da Havan. Aliás é impossivel ignorá-lo, com sua cabeça reluzente, vestido de verde e amarelo É desses seres que você não precisa perguntar quem é seu líder, pois sabe que ele o levará direto ao Palácio do Planalto.

Ao lado do armamento da população, essa luta contra a verdade é um passo decisivo rumo a um governo autoritário. Uma espontânea frente pela transparência se formou esta semana. Exatamente na semana em que as pessoas, apesar da pandemia, foram às ruas com a imensa faixa “todos pela democracia”.

Parece vago, dizem alguns políticos. Calma, digo eu. Daqui a pouco tudo fica mais claro. Na luta comum, aparecem as respostas.

E ainda tem brasileiro que é cego...

O populismo de Bolsonaro está levando o Brasil ao desastre
Financial Times

Para militares que gostam de ler

Ouço dizer que os militares brasileiros gostam de ler. Ótimo. O problema é que só devem ler autores militares. Bem, o mundo já conheceu grandes escritores que foram também importantes como militares —Júlio César, Maquiavel, Euclides da Cunha, T. E. Lawrence (o da Arábia), Saint-Éxupéry, George Orwell. E houve um que pode não ter sido o maior escritor, mas certamente foi o maior militar: Napoleão.


Caiu-me às mãos outro dia um livro, "Napoleão - Máximas e Pensamentos", selecionados em 1838 por, ora vejam, Honoré de Balzac. É uma edição da Vecchi, de 1946. Contém 525 frases de Napoleão, tiradas de seus discursos e reflexões, entre uma e outra das monumentais batalhas em que jogava com a vida e com a morte de centenas de milhares. Nossos generais, embora só comandem escrivaninhas e manobrem carimbos, devem admirá-lo. Pois aqui vão algumas frases de Napoleão --para as considerações dos que, ignorando o legado de Osório, Barroso, Tamandaré, Caxias e Rondon, apoiam, por ação ou omissão, o governo de Jair Bolsonaro.

"O idiota tem uma grande vantagem sobre o homem inteligente. Está sempre contente consigo mesmo." "O excesso de poder desgovernado acaba por depravar o homem mais honrado." "Os grandes poderes morrem de indigestão." "Há patifes suficientemente patifes para se portarem como homens honestos." "Mesmo nos seus mais corrompidos momentos, a baixeza precisa ter limites."

"Nunca é útil inflamar o ódio." "Não existe o roubo. Tudo se paga." "O dinheiro é mais forte do que o despotismo." "Não existem leis possíveis contra o dinheiro." "A mais falsa política é a que opõe uma facção à outra, jactando-se de dominá-la." "Um soberano que se filia a uma facção faz inclinar o barco e apressa o naufrágio."

"A altura do soberano depende da altura do seu povo." "Se a imensa maioria da sociedade quisesse hoje desobedecer às leis, quem a dominaria?"

Ruy Castro

A Revolta da Vacina

Sempre se compara a tragédia do coronavírus com a da gripe espanhola, de 1918, mas a comparação mais significativa é com a Revolta da Vacina, de 1904. Foi um ano em que a ciência foi para a berlinda, os políticos brigaram por ela e o povo saiu de seu desespero para as ruas.

Tal como hoje, o Rio de Janeiro era dividido entre um pequeno oásis onde viviam as elites políticas e econômicas e o povão – uma multidão de pessoas aglomeradas nos morros e cortiços, ex-escravos, mestiços e imigrantes, a maioria sem emprego regular, vivendo em péssimas condições, vitimadas pelas epidemias recorrentes de peste bubônica, febre amarela, tuberculose e varíola e vivendo em constante revolta e conflitos com a polícia. Na política, vivia-se o confronto entre, de um lado, os florianistas e jacobinos – militares e civis, sobretudo do Rio de Janeiro, que haviam inscrito o lema dos positivistas, “ordem e progresso”, na Bandeira Nacional – e, de outro, as oligarquias dos republicanos paulistas e mineiros que haviam enriquecido com o café e também se haviam mobilizado para derrubar o Império, 15 anos antes.


Olhando para trás, vem a tentação de classificar um ou outro lado como de esquerda ou de direita, mas, então como hoje, não é nada fácil. Os jacobinos tinham um discurso radical contra as antigas oligarquias e defendiam um Estado moderno, eficiente e autoritário, com um discurso a favor da educação popular e da ciência, tal como havia defendido seu guru Augusto Comte, mas eram contra a pesquisa científica e as universidades. Depois de alguns anos comandando a República, tiveram de dar lugar aos republicanos paulistas e seus presidentes – Prudente de Morais, Campos Sales e Rodrigues Alves –, que tinham sua própria versão de como o País deveria modernizar-se e se desenvolver. Para estes, era preciso livrar os portos das doenças contagiosas que afastavam os navios de outros países, desenvolver o transporte ferroviário para escoar as safras e modernizar as cidades, tirando os pobres e miseráveis da vista e abrindo espaço para centros e bairros elegantes, onde o governo e os endinheirados pudessem construir seus prédios e mansões.

É no governo de Campos Sales, em 1902, que começa a grande obra de modernização do Rio de Janeiro, liderada pelo arquiteto Pereira Passos, inspirado na reforma de Paris de 50 anos antes. A cidade portuguesa de ruelas e prédios antigos é substituída por grandes avenidas e edifícios de estilo parisiense, os rios que percorriam a cidade são canalizados e a população miserável que vivia na região central é expulsa para a periferia ou forçada a subir os morros.

Feito o trabalho dos engenheiros, chegou a vez dos sanitaristas, que dez anos antes, liderados por Adolfo Lutz, haviam conseguido controlar as epidemias de febre amarela e peste bubônica em São Paulo e Santos. No Rio, Oswaldo Cruz, com suas brigadas de mata-mosquitos, começa a percorrer os bairros, invadindo as casas, desinfetando e destruindo as instalações insalubres. A febre amarela foi sendo controlada, mas era ainda necessário atacar a varíola, que se espalhava com facilidade e matava uma em cada três pessoas contaminadas. O governo decidiu tornar a vacina obrigatória. E a revolta explodiu.

A vacina contra a varíola já era conhecida havia mais de cem anos, mas serviu de pretexto para uma grande mobilização dos jacobinos contra o governo de Rodrigues Alves. Ao mesmo tempo que tentavam um golpe de Estado, mobilizavam as populações empobrecidas dos morros e das periferias contra mais essa violência modernizadora do governo. Os argumentos contra a vacina obrigatória, que apareciam em panfletos, jornais e discursos, incluíam acusações de que se tratava de uma conspiração para infectar e matar as pessoas, ou de uma maneira de forçar as mulheres a se desnudar diante agentes de saúde, ou ainda, para intelectuais mais refinados como Rui Barbosa, um atentado à liberdade individual de se vacinar ou não. Os cadetes da Praia Vermelha tentaram ocupar o Palácio do Catete, o povo foi para as ruas, queimando bondes, quebrando lampiões e fazendo barricadas. E a revolta só foi controlada à custa de muita violência.

Terminada a revolta, o governo desistiu da vacinação, os políticos e militares revoltosos foram anistiados e começou a repressão à população que se havia rebelado. Centenas foram presos, enviados para a Ilha das Cobras ou deportados para o Acre, e nos anos seguintes milhares de pessoas continuaram morrendo anualmente de varíola no Rio de Janeiro.

Hoje podemos ver que todos perderam. Os governantes tinham a ciência da vacina a seu lado, mas, para eles, a questão social era um caso de polícia e não foram capazes de ir além da maquiagem modernizadora do velho Rio. Os jacobinos defendiam e insuflavam os pobres das favelas e cortiços, mas não tinham nada de fato para lhes oferecer, e acabaram jogando-os na fogueira da repressão. E o povão, antes como agora, continuou com sua miséria e suas epidemias, sem os benefícios da ciência, sem recursos e sem esperanças. Paralelos com a crise do coronavírus ficam por conta dos leitores.