quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025
Quando entramos em colapso?
Pode-se estranhar a pergunta, uma vez que ouvimos diariamente que a civilização tem avançado e que novas tecnologias nos trarão glórias ainda maiores. A segunda afirmação é questionável, pois todas as novidades trazem aspectos positivos e negativos, raramente devidamente ponderados. A primeira é puramente ideológica, pois não se define nem se mede o “avanço” de uma civilização.
Não obstante, são muitos os casos de antigas civilizações que colapsaram. Será que seus habitantes também e equivocadamente se autodenominavam sapiens? A crença de que “desta vez somos diferentes” é pura propaganda, como resume o dito popular: “quanto maior o pau maior o tombo”!
Eric Cline analisou o colapso simultâneo das “avançadas” civilizações da Idade do Bronze Recente: hititas, egípcios, Grécia micênica, cipriotas e várias outras, todas elas localizadas no mediterrâneo oriental e no que hoje chamamos oriente médio. Como o fato ocorreu no início do século XII AC, é impossível estabelecer uma razão única para explicar o colapso. As evidências arqueológicas mostram com clareza que o processo foi longo, violento e de grande sofrimento. Quais fatores levaram ao colapso?
Vários, cada um com diferentes pesos, conforme o analista. À época a região foi afetada por fortes terremotos, e razões ainda não esclarecidas interromperam a intensa globalização então vigentes, com comércio internacional e grande complexidade nas relações econômicas e políticas. Cartas trocadas – em idiomas há muito restritos a especialistas – entre diferentes faraós e reis mostram cooperação, disputa, alianças, traições, erros e acertos de estratégias comerciais e militares, evidenciando a intensa troca de produtos e ideias.
Outro fator importante foi – pasmem os incrédulos de hoje! – mudança climática! Sim, não só cartas de contemporâneos informavam da seca e da fome; registros de carbono e análises recentes de sedimentos de pólen em lagos e outras estruturas atestam a seca, ou melhor, a mega seca de décadas ocorrida então! Alguma dita “potência agrícola” atual, seja o Brasil, os EUA ou a Ucrânia, resistiria a uma seca de 20, 30 anos ou mais? Como ficaria o “agribusiness” diante de um tal fato? Mesmo sem seca ou mega seca nossas tecnologias e instituições não conseguem acabar com a fome; como se comportarão em tal calamidade? E como reagirá a população faminta?
Muitos dos fatores que levaram ao colapso repetem-se hoje, com maior ou menor força. Um deles é a visão limitada dos líderes, apontado por uns e questionado por outros. Já a civilização atual é dirigida por pessoas que só enxergam e agem em razão do próximo ciclo eleitoral – ou, no caso dos dirigentes corporativos, o resultado do trimestre. Assim, os arqueólogos do futuro, ao analisarem os escombros do nosso mais ou menos iminente colapso, saberão eles dar o devido peso à limitadíssima visão dos que nos governam?
Não obstante, são muitos os casos de antigas civilizações que colapsaram. Será que seus habitantes também e equivocadamente se autodenominavam sapiens? A crença de que “desta vez somos diferentes” é pura propaganda, como resume o dito popular: “quanto maior o pau maior o tombo”!
Eric Cline analisou o colapso simultâneo das “avançadas” civilizações da Idade do Bronze Recente: hititas, egípcios, Grécia micênica, cipriotas e várias outras, todas elas localizadas no mediterrâneo oriental e no que hoje chamamos oriente médio. Como o fato ocorreu no início do século XII AC, é impossível estabelecer uma razão única para explicar o colapso. As evidências arqueológicas mostram com clareza que o processo foi longo, violento e de grande sofrimento. Quais fatores levaram ao colapso?
Vários, cada um com diferentes pesos, conforme o analista. À época a região foi afetada por fortes terremotos, e razões ainda não esclarecidas interromperam a intensa globalização então vigentes, com comércio internacional e grande complexidade nas relações econômicas e políticas. Cartas trocadas – em idiomas há muito restritos a especialistas – entre diferentes faraós e reis mostram cooperação, disputa, alianças, traições, erros e acertos de estratégias comerciais e militares, evidenciando a intensa troca de produtos e ideias.
Outro fator importante foi – pasmem os incrédulos de hoje! – mudança climática! Sim, não só cartas de contemporâneos informavam da seca e da fome; registros de carbono e análises recentes de sedimentos de pólen em lagos e outras estruturas atestam a seca, ou melhor, a mega seca de décadas ocorrida então! Alguma dita “potência agrícola” atual, seja o Brasil, os EUA ou a Ucrânia, resistiria a uma seca de 20, 30 anos ou mais? Como ficaria o “agribusiness” diante de um tal fato? Mesmo sem seca ou mega seca nossas tecnologias e instituições não conseguem acabar com a fome; como se comportarão em tal calamidade? E como reagirá a população faminta?
Muitos dos fatores que levaram ao colapso repetem-se hoje, com maior ou menor força. Um deles é a visão limitada dos líderes, apontado por uns e questionado por outros. Já a civilização atual é dirigida por pessoas que só enxergam e agem em razão do próximo ciclo eleitoral – ou, no caso dos dirigentes corporativos, o resultado do trimestre. Assim, os arqueólogos do futuro, ao analisarem os escombros do nosso mais ou menos iminente colapso, saberão eles dar o devido peso à limitadíssima visão dos que nos governam?
Obscenidade governamental
Havia algo de obsceno no espetáculo de sua ostensiva ganância. Havia algo aterrorizante no rompimento da relação de confiança entre o povo e os representantes políticos que haviam eleito, o povo e o servidor público a quem pagavam para proteger seus direitos fundamentais
Morris West, " Do alto da montanha"
Morris West, " Do alto da montanha"
Em defesa do Estado
Sociedades civilizadas dependem das instituições. Quanto mais complexa a sociedade, mais vital são essas instituições. Instituições proporcionam estabilidade, previsibilidade e segurança. Empresas, escolas, universidades e tribunais são instituições. No entanto, as instituições mais importantes são as do Estado. É por isso que a ofensiva de Donald Trump contra o que seus apoiadores de forma enganosa chamam de “o Estado profundo” é tão perigosa. Alguns deles acreditam que o Estado deveria ser servil aos caprichos do grande líder. Outros acham que deveria estar a serviço dos mais ricos. Ambos esses lados concordam que a capacidade do Estado de atender às necessidades do grande público é de pouca importância. Esses pontos de vista são perigosos. Prenunciam autocracia, plutocracia e disfunção.
Em uma importante série de artigos, “Valuing the Deep State” (Valorizando o Estado profundo, em inglês), Francis Fukuyama, de Stanford, examina por que a evisceração do Estado se mostrará tão destrutiva. Fukuyama devotou grande parte dos últimos 20 anos para explicar que “um Estado de alta capacidade, profissional e impessoal, é crucial para o sucesso de qualquer sociedade”, inclusive, notavelmente, as democracias modernas liberais. Esse ponto de vista é abominado por muitos americanos: eles veem o Estado - ou simplesmente o “governo” - como o inimigo.
No entanto, qualquer um que tenha trabalhado na área de desenvolvimento econômico, como eu, sabe que, sem um serviço público neutro, competente e profissional, nada na sociedade realmente funciona. Quanto mais complexa e refinada uma sociedade e economia moderna se torna, mais isso é verdadeiro. Como Fukuyama observa acertadamente, o sucesso extraordinário das economias do Leste da Ásia se deve em grande medida ao fato de que eles entenderam como administrar esse Estado muito antes do que o Ocidente. Ainda mais relevante, ele argumenta que uma “democracia bem-sucedida [...] precisa de um Estado que seja restringido pelo Estado de Direito e pela prestação de contas democrática”.
Nos EUA, a criação de um Estado como esse começou em 1883, argumenta Fukuyama, com a Lei Pendleton, que criou a Comissão de Serviço Civil e estabeleceu critérios baseados no mérito para as contratações e as promoções no serviço federal. Isso é o que o governo Trump - ou, como rotula o historiador Timothy Snyder, o “governo Mump”, para dar o devido crédito ao papel singular desempenhado por Elon Musk - deseja derrubar.
Como explica Fukuyama, o sistema burocrático dos EUA está longe de ser perfeito. O problema, porém, não é, como argumentam os críticos de direita, o fato da delegação de decisões. Alguém imagina que decisões técnicas sobre a segurança das aeronaves ou dos medicamentos, os controles de poluentes perigosos ou a gestão do lixo nuclear deveria ser decidida, em seus detalhes, por parlamentares? Obviamente, decisões desse tipo precisam ser delegadas a especialistas qualificados. A noção de que, em vez disso, elas deveriam ser decididas por pessoas cuja principal qualificação é a lealdade cega ao grande chefe é absurda.
Você não torna um sistema complexo mais “eficiente” cortando-o de forma aleatória. No entanto, você pode, sim, aterrorizar seus funcionários. Portanto, os verdadeiros objetivos são a intimidação e a substituição de servidores públicos genuínos por discípulos
A realidade é que essas “reformas” não têm nada a ver com tornar o governo mais eficiente. O objetivo é, na verdade, tornar “Mump” todo-poderoso. O jogo foi revelado pelo próprio J. D. Vance, segundo o qual, se Trump voltasse a vencer a presidência em 2024, ele deveria “demitir todos os burocratas de nível médio, todos os funcionários públicos do Estado administrativo, substituí-los por nossa gente [...]”. “E quando os tribunais te impedirem, apresente-se diante do país, como Andrew Jackson fez, e diga: ‘O presidente da Suprema Corte de Justiça tomou sua decisão. Agora, deixe-o [tentar] aplicá-la’”. Até aí, portanto, chegou a noção de que os EUA são “um governo de leis, não de homens”. Isso é um golpe.
Esse esforço também não vai transformar as contas públicas. No acumulado do ano fiscal de 2025 até agora, 78% dos gastos federais foram feitos pela previdência social, saúde, defesa, segurança de renda, benefícios para veteranos e juros líquidos. Musk diz que a Doge pode economizar US$ 2 trilhões ao ano. Com gastos de 2024 na faixa de US$ 6,8 trilhões, isso parece absurdo.
Em suma, você não torna um sistema complexo mais “eficiente” cortando-o de forma aleatória. No entanto, você pode, sim, aterrorizar seus funcionários. Portanto, os verdadeiros objetivos, como Anne Applebaum observa, são a intimidação e a substituição de servidores públicos genuínos por discípulos. Os benefícios são claros: isso permitirá que os responsáveis usem os poderes do governo para processar “inimigos”, intimidar jornalistas, espalhar mentiras, ignorar a ciência e atacar governos estaduais e municipais que saiam da linha, se necessário à força. E quanto ao Estado de Direito? Vance já disse o que pensa dessa ideia. O objetivo, então, é transformar os EUA em uma ditadura plebiscitária, na qual o detentor do poder é rei. Essa revolução será compatível com eleições justas no futuro? É preciso ter dúvidas quanto a disso.
Afinal, grande parte de tudo isso será irreversível. Uma vez que a lealdade substitua a integridade e as mentiras substituam a verdade, o caminho de volta será longo. Uma vez que você demita servidores públicos competentes e honestos, com que facilidade você encontrará pessoas similares no futuro? Os serviços de inteligência, os de dados e os de análises científicas dos EUA eram referências mundiais. Quanto disso sobreviverá? Um dos testes para o emprego será se alguém aceita a mentira de que Trump venceu em 2020. Provavelmente, apenas concordarão os carreiristas e os fanáticos do movimento “Maga” (Make America Great Again).
Se o tipo de Estado elogiado por Fukuyama for substituído pelo que se pretende agora, é inevitável o surgimento de uma mistura venenosa de incompetência, predação e corrupção. Entre as características prejudiciais estará o que Daniel Kaufmann, pesquisador sênior da organização sem fins lucrativos Results for Development, chama de “captura do Estado” - a exploração do poder por aqueles que são capazes não apenas de dobrar as regras, mas de criá-las, para seu próprio benefício. Para um país de alta renda, os EUA já estão relativamente capturados. Isso, contudo, está prestes a piorar, agora que as regras de proteção à independência dos funcionários públicos estão por ser abolidas.
O que está acontecendo é destruição, não reforma. Não importa o que tenham dito a eles, os americanos comuns não se beneficiarão do caos. Mas sabemos quem vai se beneficiar.
Em uma importante série de artigos, “Valuing the Deep State” (Valorizando o Estado profundo, em inglês), Francis Fukuyama, de Stanford, examina por que a evisceração do Estado se mostrará tão destrutiva. Fukuyama devotou grande parte dos últimos 20 anos para explicar que “um Estado de alta capacidade, profissional e impessoal, é crucial para o sucesso de qualquer sociedade”, inclusive, notavelmente, as democracias modernas liberais. Esse ponto de vista é abominado por muitos americanos: eles veem o Estado - ou simplesmente o “governo” - como o inimigo.
No entanto, qualquer um que tenha trabalhado na área de desenvolvimento econômico, como eu, sabe que, sem um serviço público neutro, competente e profissional, nada na sociedade realmente funciona. Quanto mais complexa e refinada uma sociedade e economia moderna se torna, mais isso é verdadeiro. Como Fukuyama observa acertadamente, o sucesso extraordinário das economias do Leste da Ásia se deve em grande medida ao fato de que eles entenderam como administrar esse Estado muito antes do que o Ocidente. Ainda mais relevante, ele argumenta que uma “democracia bem-sucedida [...] precisa de um Estado que seja restringido pelo Estado de Direito e pela prestação de contas democrática”.
Nos EUA, a criação de um Estado como esse começou em 1883, argumenta Fukuyama, com a Lei Pendleton, que criou a Comissão de Serviço Civil e estabeleceu critérios baseados no mérito para as contratações e as promoções no serviço federal. Isso é o que o governo Trump - ou, como rotula o historiador Timothy Snyder, o “governo Mump”, para dar o devido crédito ao papel singular desempenhado por Elon Musk - deseja derrubar.
Como explica Fukuyama, o sistema burocrático dos EUA está longe de ser perfeito. O problema, porém, não é, como argumentam os críticos de direita, o fato da delegação de decisões. Alguém imagina que decisões técnicas sobre a segurança das aeronaves ou dos medicamentos, os controles de poluentes perigosos ou a gestão do lixo nuclear deveria ser decidida, em seus detalhes, por parlamentares? Obviamente, decisões desse tipo precisam ser delegadas a especialistas qualificados. A noção de que, em vez disso, elas deveriam ser decididas por pessoas cuja principal qualificação é a lealdade cega ao grande chefe é absurda.
Você não torna um sistema complexo mais “eficiente” cortando-o de forma aleatória. No entanto, você pode, sim, aterrorizar seus funcionários. Portanto, os verdadeiros objetivos são a intimidação e a substituição de servidores públicos genuínos por discípulos
A realidade é que essas “reformas” não têm nada a ver com tornar o governo mais eficiente. O objetivo é, na verdade, tornar “Mump” todo-poderoso. O jogo foi revelado pelo próprio J. D. Vance, segundo o qual, se Trump voltasse a vencer a presidência em 2024, ele deveria “demitir todos os burocratas de nível médio, todos os funcionários públicos do Estado administrativo, substituí-los por nossa gente [...]”. “E quando os tribunais te impedirem, apresente-se diante do país, como Andrew Jackson fez, e diga: ‘O presidente da Suprema Corte de Justiça tomou sua decisão. Agora, deixe-o [tentar] aplicá-la’”. Até aí, portanto, chegou a noção de que os EUA são “um governo de leis, não de homens”. Isso é um golpe.
Esse esforço também não vai transformar as contas públicas. No acumulado do ano fiscal de 2025 até agora, 78% dos gastos federais foram feitos pela previdência social, saúde, defesa, segurança de renda, benefícios para veteranos e juros líquidos. Musk diz que a Doge pode economizar US$ 2 trilhões ao ano. Com gastos de 2024 na faixa de US$ 6,8 trilhões, isso parece absurdo.
Em suma, você não torna um sistema complexo mais “eficiente” cortando-o de forma aleatória. No entanto, você pode, sim, aterrorizar seus funcionários. Portanto, os verdadeiros objetivos, como Anne Applebaum observa, são a intimidação e a substituição de servidores públicos genuínos por discípulos. Os benefícios são claros: isso permitirá que os responsáveis usem os poderes do governo para processar “inimigos”, intimidar jornalistas, espalhar mentiras, ignorar a ciência e atacar governos estaduais e municipais que saiam da linha, se necessário à força. E quanto ao Estado de Direito? Vance já disse o que pensa dessa ideia. O objetivo, então, é transformar os EUA em uma ditadura plebiscitária, na qual o detentor do poder é rei. Essa revolução será compatível com eleições justas no futuro? É preciso ter dúvidas quanto a disso.
Afinal, grande parte de tudo isso será irreversível. Uma vez que a lealdade substitua a integridade e as mentiras substituam a verdade, o caminho de volta será longo. Uma vez que você demita servidores públicos competentes e honestos, com que facilidade você encontrará pessoas similares no futuro? Os serviços de inteligência, os de dados e os de análises científicas dos EUA eram referências mundiais. Quanto disso sobreviverá? Um dos testes para o emprego será se alguém aceita a mentira de que Trump venceu em 2020. Provavelmente, apenas concordarão os carreiristas e os fanáticos do movimento “Maga” (Make America Great Again).
Se o tipo de Estado elogiado por Fukuyama for substituído pelo que se pretende agora, é inevitável o surgimento de uma mistura venenosa de incompetência, predação e corrupção. Entre as características prejudiciais estará o que Daniel Kaufmann, pesquisador sênior da organização sem fins lucrativos Results for Development, chama de “captura do Estado” - a exploração do poder por aqueles que são capazes não apenas de dobrar as regras, mas de criá-las, para seu próprio benefício. Para um país de alta renda, os EUA já estão relativamente capturados. Isso, contudo, está prestes a piorar, agora que as regras de proteção à independência dos funcionários públicos estão por ser abolidas.
O que está acontecendo é destruição, não reforma. Não importa o que tenham dito a eles, os americanos comuns não se beneficiarão do caos. Mas sabemos quem vai se beneficiar.
Não em meu nome: contra a racialização da moralidade
Nas últimas semanas, tivemos uma amostra impressionante do que significa "dobrar a aposta" quando se trata das estratégias de assédio identitário. De costas quentes, agora que uma corte de Justiça afirmou que o racismo é o único crime exclusivo de uma raça –uma vez que só os brancos podem cometê-lo–, militantes identitários começam a se sentir confortáveis para dar uma justificativa biológica e genética à sua glorificação do ressentimento e aos seus atos de revanche.
Primeiro, veio o caso de Maria Rita Kehl, atacada por fazer uma crítica progressista ao peculiar gosto identitário pelo monopólio da fala autorizada, sobretudo quando se trata de veredictos e libelos de condenação. Foi desqualificada por associação genética. A conclusão da turba que a linchou foi que ela carrega um pecado imperdoável: um antepassado. Diferentemente do pecado original religioso, esse nunca será redimido; sua biologia a condena à condição perpétua de penitente.
Na semana seguinte, foi a vez de Walter Salles Jr., denunciado e condenado pelo pecado de nascer branco, portanto, pertencente à linhagem dos escravocratas. Quem o disse com todas as letras foi uma coluna publicada no jornal Estado de Minas. O artigo é um exercício explícito de racialização e essencialização moral. A autora sustenta que, ao olhar para o rosto do cineasta, enxerga apenas "a descendência dos que torturaram, estupraram, açoitaram, mantiveram em cárcere" seus próprios ascendentes.
A lógica subjacente é a de que a moralidade e o caráter de um indivíduo podem ser inferidos de sua linhagem racial ou ancestral, estabelecendo uma equivalência automática entre a cor da pele de Salles, seus antepassados e uma culpa histórica impagável que, por isso mesmo, lhe pertence integralmente. Isso confere à autora o direito imediato e irrevogável de desprezá-lo.
A autora não vê um ser humano, mas um "herdeiro direto da desgraça", um representante não apenas dos escravocratas históricos, mas de toda uma raça e classe social beneficiária do racismo. A responsabilidade pela dor da autora não recai sobre sistemas e estruturas, mas sobre a identidade racial daquele indivíduo singular. Em outras palavras, a descendência biológica de uma pessoa se torna critério suficiente para julgá-la moralmente –exatamente o princípio que fundamenta todo pensamento racista.
Se tomarmos esse artigo como um exemplo do que o identitarismo tem produzido, identificamos claramente algumas de suas consequências mais problemáticas. Primeiro, a atribuição hereditária de culpa e moralidade. O artigo não julga indivíduos por suas ações, mas por suas origens raciais; lógica que historicamente foi utilizada para justificar discriminação e perseguição. Segundo, a demonização de um grupo com base na cor da pele. O indivíduo se resume aos seus traços fenotípicos e à sua ascendência, o que valida o princípio que sustentou a desumanização de grupos raciais no passado. Terceiro, o reforço de um binarismo racial que essencializa todos os conflitos sociais. O artigo apresenta um mundo rigidamente dividido entre opressores e oprimidos, fixos e organizados por raça, onde os indivíduos não valem pelo que fazem, mas pela linhagem racial a que pertencem.
Temos aqui uma versão da teoria da "raça infecta" ou "raça maldita". Salles seria um exemplar dessa raça moralmente degradada em todos os seus ascendentes e descendentes, merecedor, portanto, de todo o nojo, rancor e ressentimento. Cada indivíduo pertencente a essa raça exala o horrível odor da depravação moral de sua estirpe. Kehl e Salles são exemplares de uma raça, não pessoas.
O radicalismo, por mais nocivo que seja, tem uma característica notável em qualquer sociedade onde aparece e prospera: ele precisa ser alimentado. Primeiro, pela condescendência de quem tem legitimidade social, não é radical, mas simpatiza com "alguma coisa" que considera positiva no movimento. Depois, por quem pavimenta o caminho, justificando seus atos e, por fim, legalizando-o. E, nesse papel, professores, jornalistas e intelectuais têm se esmerado.
Tivesse recebido reprovação social em vez de justificativas, complacência e incentivos, dificilmente esse radicalismo teria chegado ao estágio de brutalidade social que, cedo ou tarde, todo extremismo costuma alcançar. Já passou da hora de cada democrata, progressista, pessoa que acredita em direitos humanos e respeito dizer que esse não é o caminho para construir uma sociedade aceitável.
E de afirmar, com todas as letras: "não em meu nome".
Primeiro, veio o caso de Maria Rita Kehl, atacada por fazer uma crítica progressista ao peculiar gosto identitário pelo monopólio da fala autorizada, sobretudo quando se trata de veredictos e libelos de condenação. Foi desqualificada por associação genética. A conclusão da turba que a linchou foi que ela carrega um pecado imperdoável: um antepassado. Diferentemente do pecado original religioso, esse nunca será redimido; sua biologia a condena à condição perpétua de penitente.
Na semana seguinte, foi a vez de Walter Salles Jr., denunciado e condenado pelo pecado de nascer branco, portanto, pertencente à linhagem dos escravocratas. Quem o disse com todas as letras foi uma coluna publicada no jornal Estado de Minas. O artigo é um exercício explícito de racialização e essencialização moral. A autora sustenta que, ao olhar para o rosto do cineasta, enxerga apenas "a descendência dos que torturaram, estupraram, açoitaram, mantiveram em cárcere" seus próprios ascendentes.
A lógica subjacente é a de que a moralidade e o caráter de um indivíduo podem ser inferidos de sua linhagem racial ou ancestral, estabelecendo uma equivalência automática entre a cor da pele de Salles, seus antepassados e uma culpa histórica impagável que, por isso mesmo, lhe pertence integralmente. Isso confere à autora o direito imediato e irrevogável de desprezá-lo.
A autora não vê um ser humano, mas um "herdeiro direto da desgraça", um representante não apenas dos escravocratas históricos, mas de toda uma raça e classe social beneficiária do racismo. A responsabilidade pela dor da autora não recai sobre sistemas e estruturas, mas sobre a identidade racial daquele indivíduo singular. Em outras palavras, a descendência biológica de uma pessoa se torna critério suficiente para julgá-la moralmente –exatamente o princípio que fundamenta todo pensamento racista.
Se tomarmos esse artigo como um exemplo do que o identitarismo tem produzido, identificamos claramente algumas de suas consequências mais problemáticas. Primeiro, a atribuição hereditária de culpa e moralidade. O artigo não julga indivíduos por suas ações, mas por suas origens raciais; lógica que historicamente foi utilizada para justificar discriminação e perseguição. Segundo, a demonização de um grupo com base na cor da pele. O indivíduo se resume aos seus traços fenotípicos e à sua ascendência, o que valida o princípio que sustentou a desumanização de grupos raciais no passado. Terceiro, o reforço de um binarismo racial que essencializa todos os conflitos sociais. O artigo apresenta um mundo rigidamente dividido entre opressores e oprimidos, fixos e organizados por raça, onde os indivíduos não valem pelo que fazem, mas pela linhagem racial a que pertencem.
Temos aqui uma versão da teoria da "raça infecta" ou "raça maldita". Salles seria um exemplar dessa raça moralmente degradada em todos os seus ascendentes e descendentes, merecedor, portanto, de todo o nojo, rancor e ressentimento. Cada indivíduo pertencente a essa raça exala o horrível odor da depravação moral de sua estirpe. Kehl e Salles são exemplares de uma raça, não pessoas.
O radicalismo, por mais nocivo que seja, tem uma característica notável em qualquer sociedade onde aparece e prospera: ele precisa ser alimentado. Primeiro, pela condescendência de quem tem legitimidade social, não é radical, mas simpatiza com "alguma coisa" que considera positiva no movimento. Depois, por quem pavimenta o caminho, justificando seus atos e, por fim, legalizando-o. E, nesse papel, professores, jornalistas e intelectuais têm se esmerado.
Tivesse recebido reprovação social em vez de justificativas, complacência e incentivos, dificilmente esse radicalismo teria chegado ao estágio de brutalidade social que, cedo ou tarde, todo extremismo costuma alcançar. Já passou da hora de cada democrata, progressista, pessoa que acredita em direitos humanos e respeito dizer que esse não é o caminho para construir uma sociedade aceitável.
E de afirmar, com todas as letras: "não em meu nome".
Como a mídia digital está (também) redefinindo a aprovação de Lula
Um debate interessante se estabeleceu no Brasil, com cientistas políticos tentando entender os baixos índices de aprovação do governo Lula. Pelo menos duas pesquisas importantes, Quaest e Datafolha, apresentaram índices de aprovação de 31%, em janeiro, e 24%, em fevereiro. Os números chamam a atenção em um contexto de relativa normalidade, sem uma grande crise política ou econômica, de fato, acontecendo.
A ciência política tem interpretado o fenômeno a partir de uma transformação histórica e como algo "estrutural", não de conjuntura. No passado, o apoio político era, em geral, explicado por questões econômicas, isto é, benefícios sociais e aumento da renda eram imediatamente transformados em altos índices de aprovação. Agora, há as questões pós-materiais ligadas às questões culturais e de identidade. No Brasil, o crescimento do protestantismo teria fortalecido a meritocracia e a responsabilidade individual, mudando a perspectiva sobre bens gerados pelo governo. O que antes era visto com gratidão, agora seria percebido como nada além de uma obrigação.
Do ponto de vista da comunicação política, gostaria de acrescentar outro elemento fundamental nessa equação: a transformação do ambiente midiático. A insatisfação sempre foi parte da democracia, mas sua organização e canalização se transformaram radicalmente com a ascensão da mídia digital. Antes, o jornalismo atuava como mediador da insatisfação, selecionando, enquadrando e direcionando as demandas populares. Agora, as mídias sociais e plataformas digitais permitem que a insatisfação flua de maneira mais autônoma, descentralizada e contínua.
Essa nova organização da insatisfação pode ajudar a entender por que a aprovação dos presidentes tem se tornado mais instável e, muitas vezes, mais baixa. Dados do Latinobarômetro mostram que a insatisfação com os governos é uma tendência consolidada na América Latina, onde a maioria dos presidentes enfrenta dificuldade em manter altos índices de aprovação e, principalmente, se reeleger. O tempo das "luas de mel" prolongadas com novos líderes parece ter acabado. Em países como Chile, Equador e Colômbia, presidentes recém-eleitos rapidamente enfrentaram grandes protestos e quedas de popularidade. Nos Estados Unidos, o fenômeno também se manifesta de forma evidente. Pela primeira vez na história moderna, dois presidentes consecutivos não conseguiram se reeleger: Donald Trump e Joe Biden. A popularidade de ambos os líderes foi impactada por um cenário de polarização intensa, amplificado pela dinâmica das mídias sociais.
Historicamente, presidentes no Brasil e nos Estados Unidos terminavam seus mandatos com taxas de aprovação relativamente altas. Dwight D. Eisenhower (59%), Ronald Reagan (63%) e Bill Clinton (66%) deixaram o cargo com forte apoio popular. No Brasil, tanto FHC quanto Lula mantiveram aprovações acima de 40% durante suas campanhas de reeleição. Em contraste, os presidentes na era digital lutam para manter a confiança do público. Donald Trump (34%) e Joe Biden (40%) terminaram com taxas de aprovação historicamente baixas nos EUA, enquanto Jair Bolsonaro no Brasil mal alcançou 38% em seu ano de reeleição, com taxas de desaprovação ultrapassando 50%. A mídia digital não apenas potencializa críticas e crises políticas, mas também redefine o que significa governar sob constante escrutínio público.
O Brasil se encaixa nesse padrão global de insatisfação elevada. A comparação com o passado sugere que os mesmos fatores que antes garantiam popularidade — como estabilidade econômica e benefícios sociais — já não são suficientes para manter altos índices de aprovação. Se o governo Lula enfrenta dificuldades mesmo sem uma grande crise econômica, isso está também relacionado à nova lógica da comunicação digital, que alimenta percepções de crise constante, acelera ciclos de indignação e reduz a paciência da sociedade com seus líderes.
O fenômeno da crescente insatisfação na era digital não significa necessariamente que a democracia esteja em risco, mas sugere que os padrões de governabilidade e popularidade precisam ser reavaliados. Em um ambiente onde a insatisfação não só é mais visível, mas também mais volátil e mobilizável, a política precisa encontrar novas formas de responder às demandas sociais sem depender exclusivamente de ciclos econômicos positivos. Caso contrário, veremos cada vez mais presidentes assumindo o cargo já desgastados, enfrentando aprovações baixas e dificuldades crescentes para manter o apoio popular.
A ciência política tem interpretado o fenômeno a partir de uma transformação histórica e como algo "estrutural", não de conjuntura. No passado, o apoio político era, em geral, explicado por questões econômicas, isto é, benefícios sociais e aumento da renda eram imediatamente transformados em altos índices de aprovação. Agora, há as questões pós-materiais ligadas às questões culturais e de identidade. No Brasil, o crescimento do protestantismo teria fortalecido a meritocracia e a responsabilidade individual, mudando a perspectiva sobre bens gerados pelo governo. O que antes era visto com gratidão, agora seria percebido como nada além de uma obrigação.
Do ponto de vista da comunicação política, gostaria de acrescentar outro elemento fundamental nessa equação: a transformação do ambiente midiático. A insatisfação sempre foi parte da democracia, mas sua organização e canalização se transformaram radicalmente com a ascensão da mídia digital. Antes, o jornalismo atuava como mediador da insatisfação, selecionando, enquadrando e direcionando as demandas populares. Agora, as mídias sociais e plataformas digitais permitem que a insatisfação flua de maneira mais autônoma, descentralizada e contínua.
Essa nova organização da insatisfação pode ajudar a entender por que a aprovação dos presidentes tem se tornado mais instável e, muitas vezes, mais baixa. Dados do Latinobarômetro mostram que a insatisfação com os governos é uma tendência consolidada na América Latina, onde a maioria dos presidentes enfrenta dificuldade em manter altos índices de aprovação e, principalmente, se reeleger. O tempo das "luas de mel" prolongadas com novos líderes parece ter acabado. Em países como Chile, Equador e Colômbia, presidentes recém-eleitos rapidamente enfrentaram grandes protestos e quedas de popularidade. Nos Estados Unidos, o fenômeno também se manifesta de forma evidente. Pela primeira vez na história moderna, dois presidentes consecutivos não conseguiram se reeleger: Donald Trump e Joe Biden. A popularidade de ambos os líderes foi impactada por um cenário de polarização intensa, amplificado pela dinâmica das mídias sociais.
Historicamente, presidentes no Brasil e nos Estados Unidos terminavam seus mandatos com taxas de aprovação relativamente altas. Dwight D. Eisenhower (59%), Ronald Reagan (63%) e Bill Clinton (66%) deixaram o cargo com forte apoio popular. No Brasil, tanto FHC quanto Lula mantiveram aprovações acima de 40% durante suas campanhas de reeleição. Em contraste, os presidentes na era digital lutam para manter a confiança do público. Donald Trump (34%) e Joe Biden (40%) terminaram com taxas de aprovação historicamente baixas nos EUA, enquanto Jair Bolsonaro no Brasil mal alcançou 38% em seu ano de reeleição, com taxas de desaprovação ultrapassando 50%. A mídia digital não apenas potencializa críticas e crises políticas, mas também redefine o que significa governar sob constante escrutínio público.
O Brasil se encaixa nesse padrão global de insatisfação elevada. A comparação com o passado sugere que os mesmos fatores que antes garantiam popularidade — como estabilidade econômica e benefícios sociais — já não são suficientes para manter altos índices de aprovação. Se o governo Lula enfrenta dificuldades mesmo sem uma grande crise econômica, isso está também relacionado à nova lógica da comunicação digital, que alimenta percepções de crise constante, acelera ciclos de indignação e reduz a paciência da sociedade com seus líderes.
O fenômeno da crescente insatisfação na era digital não significa necessariamente que a democracia esteja em risco, mas sugere que os padrões de governabilidade e popularidade precisam ser reavaliados. Em um ambiente onde a insatisfação não só é mais visível, mas também mais volátil e mobilizável, a política precisa encontrar novas formas de responder às demandas sociais sem depender exclusivamente de ciclos econômicos positivos. Caso contrário, veremos cada vez mais presidentes assumindo o cargo já desgastados, enfrentando aprovações baixas e dificuldades crescentes para manter o apoio popular.
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