Dos muitos achados de Nelson Rodrigues que entraram para a cultura nacional --"Complexo de vira-lata", "Subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos", "O brasileiro quando não é canalha de véspera é canalha no dia seguinte"--, nenhum é mais atual que "Só os profetas enxergam o óbvio". Nelson criou-o a partir da história de Otto Lara Resende, que, ao ir de carro para a Cidade pelo Aterro do Flamengo, passava todo dia pelo Pão de Açúcar e não o enxergava. Por que não? Porque o Pão de Açúcar era o óbvio.
De repente, Otto o enxergou. Freou no meio da pista, desceu atônito e começou a apontar a pedra para interlocutores imaginários: "Não é possível! De onde saiu???". Outros motoristas pararam para, talvez, socorrê-lo. E, de fato, Otto, que era asmático, foi atacado de falta de ar. "Calma, senhor!", diziam. Alguém o abanou com o Globo. Ele não se conformava: "Ontem não estava aqui!". E Nelson completou: "Foi o encontro do Otto com o óbvio. O óbvio ululante".
Neste momento, estamos também diante de um óbvio que talvez não queiramos enxergar: o de que Jair Bolsonaro chegou a um ponto sem volta na sua preparação para um golpe.
Golpe que ele vem fomentando desde o dia da posse, quando botou em dúvida o voto eletrônico que o elegera —ideia que tem ganhado surpreendentes adesões. Bolsonaro, que já chegou ao Planalto com o aplauso das milícias, dedicou-se imediatamente a armar a população —hoje, o arsenal em mãos de civis, incluindo fuzis restritos às Forças Armadas, vai a quase 2 milhões de peças. Some a isso as PMs dos estados e o baixo oficialato do Exército, que ele corrompeu com cargos, benesses e ideologia. Efetivo para dar um murro na mesa e mandar um general calar a boca Bolsonaro já tem.
Ah, sim, os generais. Deixaram-no ir longe demais. Talvez por isso, vendo-se sem margem de recuo, tenham agora de continuar com ele rumo à aventura.
O presidente Jair Bolsonaro avança na formação de uma guarda pretoriana. Como no Império Romano, a guarda pessoal do imperador. Em pleno Século XXI. Aqui, a guarda ganha o reforço do Exército, das polícias militares estaduais e das milícias privadas.
Bolsonaro forma laços com mais de 430 mil policiais militares e cerca de 350 mil guardas de vigilância privada. São 800 mil homens, com capilaridade em todas as cidades brasileiras. “Esse é o exército miliciano de Bolsonaro”, diz Francisco Teixeira. Quanto ao Exército das Forças Armadas, “são mais de 300 mil homens, dos quais apenas 70 mil com capacidade de mobilização imediata”, conclui ele.
O Brasil aprofunda retrocessos civilizatórios e institucionais. Entropia do progresso. Democracia impedida. E subversão institucional da definição weberiana do Estado detentor do monopólio legítimo do uso da violência. O presidente impulsiona uma virtual guarda pretoriana e a politização do Exército, que desestabiliza as Forças Armadas. Coloca em cheque o papel constitucional das Forças Armadas como instituições do Estado e não de governo.
É ainda mais urgente a modificação do Artigo 142 da Constituição Federal, que permite a interpretação da tutela militar. É preciso, também, vedar, através de projeto de lei, que militares da ativa participem de governo. Entre os 7 mil militares que ocupam hoje cargos no Estado, muitos são da ativa. É a politização das FFAA. A sociedade civil, a mídia, os governadores, o Poder Judiciário e o Congresso precisam se mobilizar na direção da resistência democrática, para as necessárias modificações constitucionais e infraconstitucionais. A omissão pode ser fatal.
Ao mesmo tempo, precisamos recorrer à fenomenologia de Hanna Arendt na observação dos fatos históricos e culturais da formação do Estado Nação no Brasil. Desde o Império, é recorrente a necessidade de um Poder Moderador para arbitrar os conflitos das elites. Começou com o próprio Imperador. Depois, na República Velha, os governadores. A ascensão dos tenentes, nos anos 1920, criou alicerces para um longo predomínio de um poder moderador dos militares. FHC e Lula, por quase 20 anos, conseguiram o equilíbrio instável do presidencialismo de coalizão. Criaram e conviveram com a idéia do ministério da Defesa. A partir das manifestações de 2013, a instabilidade institucional voltou a ganhar força. Temer conseguiu contornar o problema, com a articulação de um “parlamentarismo branco”.
Agora o capitão esticou a corda. Com pretensões de submissão de outros poderes à verticalização do poder Presidencial. É momento histórico para recolocar na Agenda do país e do Congresso o projeto do semipresidencialismo. Na cultura política brasileira, esta é a saída para arbitrar o conflito das elites. O presidente divide o poder com um primeiro-ministro eleito pelo Congresso Nacional. O Presidente exerce o papel de Poder Moderador. Está na hora.
“Não é uma boa decisão, mas também não é trágica”, confidenciou uma das principais personalidades do mundo militar e que faz parte do governo de Jair Bolsonaro. A opinião parece refletir o que pensa parcela substancial dos oficiais-generais da ativa quanto à não punição do general Eduardo Pazuello.
Depende do que se considera como trágico. O Exército foi apenas a mais recente instituição de Estado brasileira (o Ministério da Saúde veio antes) instada a adotar o “Führerprinzip” – expressão consagrada na ciência política. No lugar do alemão “Führer” cabe caudillo, máximo líder, guia genial dos povos, condottieri, conducator ou, em russo, vozhd (“dono dos servos”).
O significado é o mesmo. Trata-se do princípio da lealdade em primeiro lugar à pessoa do dirigente político e só depois às instituições que existem, obviamente, para servi-lo. Traduzido para o bolsonarês castiço, “Führerprinzip” é “mito”. Ocorre que nos trópicos (que já foram chamados de tristes) muitos princípios viram bagunça, e “mito” no Brasil está mais para “acomodação” do que para “condução”.
Bolsonaro é um sucesso entre as forças políticas do Centrão que vivem da proximidade dos cofres públicos ou do domínio de pedaços das máquinas estatais transformadas em ferramentas para defesa de seus interesses particulares – e nem estamos falando de corrupção. Elas se acomodaram dentro do Palácio do Planalto, de onde retiraram a prerrogativa de distribuir verbas de orçamentos costurados à luz ou às sombras por poucos mandões (Bolsonaro só obedece).
As grandes resistências a reformas essenciais, como a administrativa e a tributária, se consolidam diante da falta de efetiva liderança (portanto, condução) política para romper tradicionais interesses acomodados. No caso da administrativa, trata-se do corporativismo do mais bem organizado grupo na defesa de si mesmo, que é a elite do funcionalismo público brasileiro. No caso da tributária, é uma imensa variedade de demandas setoriais que tornam impossível, por exemplo, eliminar as bilionárias renúncias fiscais – e impedem qualquer reforma abrangente.
As cúpulas militares também se acomodaram não só ao desfrute das posições de privilégio e altos salários em milhares de cargos no Executivo, mas também à noção de que as coisas podem se resolver se deixadas entregues a si mesmas. E que a inação diante da degradação das instituições, do uso descarado da mentira e da propagação da ignorância como método de governo é uma contribuição para evitar mais uma crise com o “mito”.
É interessante notar como as grandes correções de rumo na política externa, comercial e, até certo ponto, ambiental estão sendo impostas pela consciência que as elites dirigentes dos setores afetados dentro e fora do Brasil têm dos prejuízos, aos quais seria impossível se acomodar. Mas, quando se trata dos rumos políticos gerais do País, essa mesma consciência de elites dirigentes e pensantes – que enxergam Bolsonaro no mínimo como um tosco irrecuperável – não chegou ainda à articulação de nomes para se contrapor ao “mito”.
Por maiores que sejam os solavancos causados pela CPI da Pandemia, e o provável indiciamento de Bolsonaro como principal responsável pelo desastre no enfrentamento da doença, o período imediatamente adiante sugere acomodação. Com a inflação aumentando a arrecadação, além da recuperação econômica, vai sobrar dinheiro a curto prazo para auxílio emergencial e até mesmo para um novo programa social (se o governo conseguir se organizar até dezembro, pois em ano de eleição não pode).
Sem que nada de essencial tenha sido feito, vai parecer que a questão fiscal não é assim tão trágica, que as perdas econômicas também não foram assim tão trágicas, nem sequer tão trágico assim é o número de mortos pela pandemia (“supernotificados”, segundo Bolsonaro). Nem surge como trágico o reiterado empenho por parte do presidente em culpar sempre os outros, em atacar qualquer um que pareça impedi-lo de governar, e seu namoro com golpes e anarquia. Pois é mais confortável achar que as instituições funcionam.
De fato, nada parece trágico. Basta se acomodar.
(Bolsonaro) quer o Brasil exposto ao vírus. Temos um Jim Jones na presidência. A diferença é que o louco americano induziu ao suicídio, e o brasileiro quer também o assassinato em massa
Renan Calheiros, senador, relator da CPI da Covid-19
Quase todos os o recentes livros que tratam da ameaça à democracia nos últimos anos ressaltam que o golpe já não funciona como antigamente. Não mais pronunciamentos militares e velhos tanques desfilando pelas ruas empoeiradas. Os autores desses livros dizem que a democracia é golpeada por dentro e as instituições vão tombando progressivamente, de forma que quando as pessoas se dão conta o regime autoritário já se instalou no país.
Algo parecido está acontecendo no Brasil. Não me canso de denunciá-lo, correndo o risco de parecer exagerado.
A decisão do Exército de não punir o general Eduardo Pazuello, que subiu num palanque em manifestação pró-Bolsonaro, é um exemplo dramático desse processo. As Forças Armadas foram seduzidas pelo governo e inundaram os cargos públicos federais. Agora, o Exército rasga seu estatuto disciplinar para, segundo alguns, não criar uma crise maior com Bolsonaro.
A participação na pandemia, ocupando o Ministério da Saúde com um general que ignora a doença, o SUS e a própria medicina, já foi uma demonstração de insanidade, complementada pela produção em massa de comprimidos de hidroxicloroquina nos laboratórios do Exército. Abrir mão do estatuto disciplinar é simplesmente capitular. Se a Bolívia quisesse o Acre e a França o Amapá, iríamos conceder o território só para não criar uma crise maior? No domínio simbólico, abrir mão da disciplina para agradar a Bolsonaro é ceder terreno moral, tão grave como abrir mão de território físico para não criar crises maiores.
Alguns importantes observadores garantem que as Forças Armadas não aderem a uma aventura golpista. Isso me lembra um pouco os argumentos da esquerda, que a cada batalha perdida dizia: não importa, venceremos a guerra. É uma tradução da crença religiosa de que, apesar de todas as quedas e dos sofrimentos, isso nos leva ao reino dos céus.
As coisas chegam já ao absurdo de termos como suspeita de difundir fake news e propaganda antidemocrática uma brigada de artilharia antiaérea. Supostamente deveria estar bombardeando inimigos externos, em caso de guerra, e não disparando tuítes contra adversários do governo, ou mesmo defensores da democracia.
Isso faz parte de um processo que a Procuradoria-Geral da República quer enterrar. Interessante observar como essa instituição também capitulou ao longo do tempo. Bolsonaro escolheu para sua chefia um nome que não estava na lista tríplice. Augusto Aras é um homem agradecido ao presidente e espera dele, na melhor das hipóteses, uma cadeira no STF e na pior, seguir com novo mandato em seu posto atual.
Durante a crise em que Bolsonaro impôs sua vontade ao Exército, dois pesados silêncios foram registrados no campo político. Os presidentes da Câmara e do Senado, ambos eleitos com apoio de Bolsonaro, nada falaram. Forças Armadas, dirigentes do Congresso, Procuradoria-Geral da República, quase como na Venezuela, está tudo dominado pela vontade presidencial.
Como se não bastasse, há o lento processo de sedução das Polícias Militares, que respondem afirmativamente aos acenos de Bolsonaro. Segundo relatos da imprensa, o próprio comandante da PM em Pernambuco ordenou a repressão a manifestantes. Em Brasília, um comandante da PM encerra seu discurso com o slogan do governo Bolsonaro.
Se levarmos em conta o discurso de Bolsonaro de que as pessoas devem ter armas para se rebelar contra governos e sua campanha de combate às urnas eletrônicas, é possível concluir que não aceitará derrota nas urnas. Pode-se pensar que isso seja um problema para 2022. Mas a verdade é que os fundamentos de um governo autoritário já estão sendo estabelecidos no Brasil. Uma política de terra arrasada na cultura, a sistemática destruição de nossos biomas e bandeira branca na porta das instituições, tudo isso já é um sinal de profunda decadência da democracia.
Em países como Israel e Hungria, por motivos diferentes, foi erguida uma frente única agregando forças até mais heterogêneas do que existem no Brasil.
No entanto, aqui ainda não há o sentido de urgência. Reina uma certa tranquilidade, muitos se dedicando aos projetos políticos próprios, sem levar em conta que a posição do Exército indicou uma inflexão radical na conjuntura. Poucos levam em conta que Bolsonaro usa dinheiro público para fazer sua campanha de reeleição. Suas viagens custam caro. Nos lugares onde se manifesta com seus motociclistas, a sociedade local também paga pela segurança. No Rio, os gastos da PM para protegê-lo foram de R$ 645 mil.
Enquanto muitos parecem aceitar silenciosamente esse destino, o governo avança e quer estender sua influência a outros campos. O bolsonarismo quer um novo técnico para a seleção de futebol, o general vice-presidente sugere que Tite deve treinar o Cuiabá.
Brevemente vão nos ensinar como viver. E aí talvez seja tarde demais para resistir.
Talvez fosse mais fácil contestar o governo sem a pandemia. Mas estamos no limiar da terceira onda e parece que Bolsonaro, com sua política sanitária devastadora, compreende a ambiguidade da situação: ao mesmo tempo que lhe rouba apoio político, o vírus retém as multidões em casa.