segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Miséria de Brasil

 


Não há ateus na política

Demonstrações oportunistas de fé no Altíssimo e apreço à baixa gastronomia são tão tradicionais nas campanhas políticas quanto a troca de ofensas entre os novos adversários e de afagos entre os ofendidos na eleição passada.

Deus é testemunha de que, no Estado laico em que vivemos, campanha que se preze tem de ter candidato comendo pastel de feira e/ou em pose contrita — sempre de joelhos, se possível de mãos postas —, invocando a intercessão divina para ganhar mais voto do que peso. Pode até haver ateus em aviões que despencam — na propaganda eleitoral, jamais.

Tecnicamente, Estado e Igreja estão separados no Brasil desde 1891. Mas a atual Constituição foi promulgada “sob a proteção de Deus”. Nas cédulas, há a recomendação de que “Deus seja louvado”. O presidente de turno chegou ao poder com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. É um Deus nos acuda em tempo integral.


Para fazer jus à cidadania brasileira, o Todo-Poderoso teve de se licenciar de suas inefáveis funções e virar cabo eleitoral na peleja de 2022. Ele se sentirá em casa por estar, desde a queda de Lúcifer, engajado nessa luta do Bem contra o Mal. A diferença é que, aqui, o Mal tem o dom da bilocação — está ao mesmo tempo nos dois cantos do ringue.

Michelle Bolsonaro tem dito que “o Brasil é do Senhor”, que “Deus tem promessas para o Brasil”, que “aquele lugar [o Palácio do Planalto] era consagrado a demônios”. Como o inferno são os outros, para Lula, “se há alguém possuído pelo demônio, é esse Bolsonaro”.

O petista atacou o uso da religião por parte de seu oponente: “É heresia falar o nome de Deus em vão como fala esse cidadão (...) que está mais para fariseu que para cristão”. Contudo se permitiu pregar: “A gente tem que olhar a Bíblia e ela tem que ser cumprida”. A que preceitos bíblicos estará se referindo? Aos que punem a homossexualidade e mandam apedrejar mulheres que não chegam virgens ao casamento? Aos mandamentos que condenam o roubo, o falso testemunho? Deve-se obediência coletiva a livros sagrados apenas nas teocracias — o que não é o caso. Porém levantamento feito pelo GLOBO revela que são 902 os candidatos que se declararam sacerdotes ou integrantes de ordem ou seita religiosa — um quarto a mais que em 2018. Majoritariamente evangélicos, vêm reforçar a bancada do dízimo — conservadora e pouco sensível a questões ligadas à laicidade do Estado ou à tolerância para com a fé alheia.

Rezam as feiquenius difundidas por bolsonaristas que, em caso de vitória do PT, “brasileiros serão impedidos de falar em Deus” (restrição que viria a calhar em relação aos que exercem cargos públicos) e que “templos serão fechados”. Interditar estabelecimentos caça-níqueis, que enriquecem os empresários da fé com “doações” obtidas mediante fraude, venda de caneta ungida (para passar em concurso) e de grão de feijão que cura Covid-19 seria uma ação legítima contra o estelionato. Mas, para dar cabo dos vendilhões do templo, só Jesus na causa.

Quando se faz o diabo para conseguir votos, lambuzar-se na gordurama do pastel de feira por puro populismo chega a ser um pecado menor.

Poder dos insensatos

Não é minha intenção discutir convosco os danos causados à liberdade humana e as possibilidades de justificação pela razão de Estado. Mas o combate pela verdade científica, afastado dos problemas concretos da vida cotidiana, deveria ser considerado intocável pelo poder político. Não será de bom aviso deixar que os servidores sinceros da verdade vivam em paz o tempo necessário?
Albert Einstein, "Como Vejo o Mundo"

O coração de D. Pedro I simboliza a necropolítica no Bicentenário

Ganha um pastel de Belém quem souber onde fica a Rua D. Pedro I no Rio de Janeiro, a cidade que acolheu o jovem príncipe no exílio, em 1808, e o transformou no primeiro imperador do Brasil, às vésperas de completar 24 anos, em 7 de setembro de 1822. Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon era herdeiro da casa real portuguesa, filho de D. João VI, regente de Portugal, e da princesa espanhola Carlota Joaquina, que viriam a se tornar rei e rainha de Portugal em 1816, com a morte da rainha Maria I.

O seu protagonismo político na formação do Brasil como nação não pode ser ignorado nas comemorações do Bicentenário da Independência. Com esse objetivo, amanhã, chega ao Brasil o coração de D. Pedro I, que será exposto no Palácio do Itamaraty, em Brasília, como ponto alto das comemorações oficiais do Bicentenário da Independência. A data magna também servirá para a realização de grandes manifestações de apoio ao presidente Jair Bolsonaro e seu projeto de reeleição; a unidade nacional e a coesão social de nosso país estão fora de questão. Essa forma de comemoração merece uma reflexão crítica, porque simboliza o sequestro da identidade nacional e do nosso futuro pelo presidente Jair Bolsonaro com propósitos eleitorais e regressistas.

Quase como uma piada pronta, a morbidez da programação reforça a ideia de que vivemos tempos de “necropolítica”. As negociações para o empréstimo do coração levaram cerca de quatro meses e envolveram o governo português, a Câmara do Porto e representantes da Irmandade da Lapa, entidade religiosa que guarda a relíquia. Mantido em um pote de vidro, imerso numa substância dourada, o coração do D. Pedro será recebido no Palácio do Planalto com honras de chefe de Estado, com salvas de canhão e escoltado pelos Dragões da Independência; depois, ficará em exposição pública no Palácio do Itamaraty.


Até o começo de 1821, D. João VI manteve D. Pedro afastado da política. Com a Revolução Liberal do Porto, foi obrigado a voltar a Lisboa e deixou-o como príncipe regente do Brasil. Essa ação fez com que assumisse protagonismo político, convertendo-se em líder da Independência, em contraposição às Cortes portuguesas, que exigiam sua volta ao país. Em 9 de janeiro de 1822, D. Pedro anunciou sua permanência no Brasil, evento que ficou conhecido como Dia do Fico.

Daí em diante, o processo de ruptura se acelerou, e a hostilidade nas relações entre Brasil e Portugal aumentou. Em 7 setembro de 1822, Dom Pedro estava em viagem a São Paulo e, no trajeto Santos-São Paulo, próximo ao riacho do Ipiranga, recebeu uma carta assinada por sua esposa e por José Bonifácio, seu conselheiro pessoal, com as novas ordens enviadas por Portugal. D. Pedro aproveitou a situação para declarar a independência. Em 1º de dezembro de 1822, D. Pedro foi coroado imperador.

Ao contrário de todos os demais países das Américas, que se tornaram republicanos a partir da independência — com exceção do México, que teve três impérios brevíssimos —, o Brasil optou por uma monarquia, que nos legou um Estado historicamente constituído e nossa integridade territorial, embora a nação fosse ainda um projeto em construção. A razão de ser da nossa monarquia estava mais associada à manutenção da escravidão e ao projeto de reunificação do Império colonial português, cuja personificação seria o próprio D. Pedro I.

Seu autoritarismo e intransigência resultaram na sucessão de crises que marcaram o Primeiro Reinado. D. Pedro fechou a Constituinte de 1823, rasgou a chamada Constituição da Mandioca e nos outorgou a Constituição liberal de 1824, na qual o direito à propriedade privada foi introduzido com o claro objetivo de blindar a escravidão.

A insatisfação foi enorme. No Nordeste, deu origem a uma revolta de caráter separatista, a Confederação do Equador. D. Pedro I decidiu declarar guerra contra as Províncias Unidas em virtude de uma revolta em curso na Cisplatina. A guerra afetou a economia brasileira e resultou na independência do Uruguai. A derrota moeu a popularidade de D. Pedro, que perdeu apoio dos militares e da população pobre. O assassinato do jornalista italiano Líbero Badaró, que lhe fazia dura oposição, em novembro de 1830, em São Paulo, tornou a situação insustentável.

D. Pedro I foi acusado de proteger os assassinos do jornalista, e o confronto entre seus defensores e críticos nas ruas do Rio de Janeiro explodiu em março de 1831. A Noite das Garrafadas fez com que renunciasse ao trono, em 7 de abril de 1831, para que seu filho, Pedro de Alcântara, pudesse assumir quando completasse 18 anos.

Em 1831, D. Pedro I mudou-se para Portugal com o objetivo de participar da Guerra Civil Portuguesa e defender o direito de sua filha, D. Maria II, de assumir o trono do país. Lutou contra o seu irmão D. Miguel pelo trono e venceu esse conflito. Maria foi restaurada no trono de Portugal em 1834, e D. Miguel fugiu em exílio. Durante a guerra, D. Pedro I contraiu tuberculose, doença que se agravou e o levou à morte em 24 de setembro de 1834.

No Brasil, o conturbado Período Regencial que se seguiu à abdicação de D. Pedro I, até o Golpe da Maioridade de D. Pedro II, em 1840, foi fundamental, porém, para consolidar a União e plantar, no parlamento brasileiro, as sementes do nosso federalismo e, nele, em contrapartida, a cultura de conciliação de nossas elites. D. Pedro jamais recuperou sua popularidade.

A personalização do poder

Abro a reflexão com uma questão: que programa de governo o eleitor enxerga no perfil dos candidatos à presidência da República? A imagem que chega aos segmentos sociais é a de que o candidato A é esquerdista, o candidato B é direitista, o candidato C é centrista, outros candidatos são amorfos, inodoros e insossos, ou seja, “não fedem nem cheiram”, como se diz na linguagem popular.

Até que, para uns, há certos desdobramentos. Ele dá bolsas de auxílio (Bolsonaro), o outro criou uma bolsa para as famílias (Lula), aquele ali é boquirroto (ou será que todos são boquirrotos?). Sob essa sombra esgarçada, são conhecidos candidatos e candidatas, mas nenhum deles é embrulhado em um pacote de ideias sobre as demandas nacionais. A mídia noticiou sobre o plano de um protagonista (Ciro), mas a informação se diluiu na algaravia deste início de campanha eleitoral.


O fato é que a política ganha a aura da personalização. O voto é dado a beltranos e sicranos, não a programas, projetos, ideários. Daí a dualidade que temos de enfrentar: Lula versus Bolsonaro, Ciro e Tebet contra os dois, os outros – poucos sabem seus nomes – a favor de si mesmos, eis que a campanha oferece um palco para que possam ser conhecidos.

Essa é a política estática, que se amarra na árvore do grupismo, do companheirismo, das claques, milícias e militantes.

Um pouco de conceito.

A sociedade pós-industrial abre o teatro da espetacularização. No Estado Espetáculo, emerge o fulanismo. Por meio da legislação eleitoral, os contendores entram na moldura das candidaturas, passando a povoar os amplos espaços dos meios de comunicação. Alcançam, em função de intensa exposição pública.

A mídia tem interesse em endeusá-los, glorificá-los ou mostrar seus “pecados”, principalmente em momentos de tensão e transição, quando rixas e querelas acendem fogueiras e formam “exércitos” em seu entorno.

As trupes dos dois principais candidatos cumprem o roteiro da peça, organizando uma comprida agenda pelo território, com direito a investidas dos “guerreiros” sobre os combatentes, como se viu, esta semana, no cercadinho do Palácio da Alvorada. O presidente Bolsonaro, chamado por um trombeteiro de “tchutchuca do Centrão”, avançou sobre ele para tirar-lhe o iphone. Uma cena hilária. Eleição é também comédia.

Já Luiz Ignácio é mostrado como uma pessoa “tomada pelos demônios”, flagrado em um candomblé, dançando com pais de santo. Coisa natural, manifestação típica da cultura afro-brasileira, que os evangélicos de Bolsonaro, a partir da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, denunciam como ritos do demônio.

Emergirão fatos do passado. Estrepolias, gafes, frases fora do contexto fazem parte da narrativa eleitoral. Ciro Gomes, então, é alvo predileto dos captadores de flagrantes polêmicos.

Volto aos conceitos. Na sociedade de massa, o poder escapole das estruturas clássicas de autoridade e converge para pessoas e grupos. O processo é simbólico: personaliza-se o poder, expressando a propensão das comunidades para encontrar a figura do pai, do irmão protetor, do grande amigo, do guerreiro, do vilão, do larápio, do mocinho e do bandido. Nos dutos da sociedade pós-industrial, estas figuras, muitas sem carisma, se apoiam na bengala do populismo.

E os partidos? Ora, são domínios de A, B e C. Escopos doutrinários? Ora, são substituídos por visões estreitas e individualistas.

Esse cipoal puxa a degradação da política. A estampa dos homens públicos se apresenta esboroada. A canalhice e mediocridade inundam os espaços públicos. A despolitização e a desideologização se expandem.

O que fazer para limpar a sujeira que borra a imagem do homem público? Primeiro passo: o homem público deve cumprir rigorosamente o papel que lhe cabe. Segundo: punir os que saem da linha. Terceiro: revogam-se as disposições em contrário.

Está tudo dominado

"Elite Capture", do filósofo nigeriano-americano Olúfémi O. Táíwò, é um livro interessante. O texto é daqueles bem militantes, contrastando um pouco por minha preferência por obras mais analíticas. Mas Táíwò, que é professor na Universidade Georgetown, levanta problemas relevantes, que frequentemente passam despercebidos.

Para Táíwò, está tudo dominado. Para início de conversa, as estruturas sociais são desenhadas para sempre favorecer as elites. É o que ele chama de capitalismo racial. Mas, como se isso não bastasse, vemos agora essas mesmas elites se apropriando da política de identidade, originalmente um movimento de resistência, para fazer avançar seus interesses, num fenômeno que o autor batizou de política de deferência.


Hoje, a fina flor do capitalismo mundial, isto é, grandes bancos e "big techs", não só encampa o discurso identitário como também promove a elite dos grupos marginalizados a posições privilegiadas. Os diretamente envolvidos ganham. Os empresários sinalizam sua virtude, os promovidos ficam com a promoção, mas a maior parte dos marginalizados continua marginalizada. No Brasil, as cotas em universidades fazem um pouco isso. A sociedade fica com a sensação de dever cumprido por ter instituído essa política e os bons estudantes negros ganham vagas em boas escolas. Mas os mais discriminados, isto é, o garoto negro que não consegue concluir o ensino fundamental e acaba em subempregos ou no crime, continua quase tão discriminado quanto seus trisavós escravizados.

O que me incomodou no livro é que Táíwò não deixa muito espaço para respostas que difiram da sua. Precisamos necessariamente ver os empresários como cínicos tentando faturar em cima dos movimentos identitários? Não dá para imaginar que um "capitalista" considere o racismo imoral e esteja disposto a agir contra ele, embora sem deflagrar um movimento revolucionário, que é o que o autor cobra?