quinta-feira, 4 de julho de 2019

Infestação

Uma mentira várias vezes repetida passa a ser uma porção de mentiras
Raul Drewnick

Coerência de Bolsonaro é roleta-russa sem bala

Para Jair Bolsonaro, a coerência parece ser apenas um outro nome para oportunismo. Na reforma da Previdência, o capitão tratou a excepcionalidade dos militares num projeto à parte, entregou à Câmara uma emenda constitucional sobre o resto dos mortais e avisou: "A bola está com o Congresso". Instado a ajudar no esforço para atrair os governadores, informou que não moveria uma palha. Súbito, os policiais chiaram. Exigem tratamento especial, na linha do que foi dispensado aos militares. Percorreram Brasília gritando que Bolsonaro é "traidor".


Impressionado com a algaravia, o presidente da República dobrou os joelhos. Pôs-se a telefonar para parlamentares, entre eles o relator da Previdência, deputado Samuel Moreira. Nesta quarta-feira, ao chegar para uma solenidade do Exército, em São Paulo, deparou-se com um grupo de policiais militares. E protagonizou algo muito parecido com uma versão verbal de um cavalo de pau: "Vou resolver o caso de vocês, viu?" De repente, o que parecia um passe virou bola dividida. Bolsonaro e o seu PSL unem-se numa conspiração contra a reforma do próprio governo.

A naturalidade com que o presidente muda de convicção torna um suplício a rotina do ministro Paulo Guedes, condenado a administrar seus barulhos e seus silêncios. Quando os deputados desidrataram sua proposta, o Posto Ipiranga gritou: "Abortaram a nova Previdência". No instante em que o chefe tenta beliscar mais um pedaço, ouve-se na pasta da Economia um silêncio de velório.

Ao discursar na solenidade do Exército, Bolsonaro disse que Executivo e Legislativo devem adotar proposições que "fujam do populismo". "A reforma da Previdência atenderá a todos", declarou, antes de se dirigir aos policiais: "Fiquem tranquilos meus colegas das forças auxiliares. O sacrifício tem que ser dividido para todos, para que possamos colher os frutos lá na frente".

No mesmo discurso, Bolsonaro afirmou que "o Brasil melhor para todos" é algo que "tem que sair do discurso fácil de político". Maltratados pelo capitão, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e os líderes do centrão já não conseguem reprimir uma espécie de sorriso interior. Avaliam que o presidente discursa como quem brinca de roleta-russa movido pela certeza de que a coerência que manipula está completamente descarregada.

A Nova Amazônia

Estou sentado em um pequeno avião monomotor sobrevoando a Floresta Amazônica. O voo partiu de Jacareacanga, no sudoeste do Pará, com destino a Manaus. É o fim de uma jornada de duas semanas pela Amazônia. A nova Amazônia.

Conheci uma região que está mudando dramaticamente. Uma região sob ataque – não apenas desde que o governo Bolsonaro praticamente a liberou para exploração. Há uma dinâmica na Bacia Amazônica que parece imparável. A lógica de crescimento do capitalismo devora de todos os lados este ecossistema único e tão importante. Os sinais são explícitos.

De dentro da aeronave, olho para a floresta. Repetidamente avisto corredores, que parecem feridas no meio do dossel florestal. São valas de garimpeiros. De cima, parecem pequenas, mas seu impacto é grande.

Os garimpeiros trabalham com mercúrio, metal pesado que causa graves danos ao sistema nervoso humano. Muitos rios da Bacia Amazônica já estão contaminados com mercúrio. Por tal razão, o governo colombiano já proibiu a comercialização de certas espécies de peixes em 2017.

 Mina de ouro abandonada no meio da Floresta Amazônica
Também no Brasil, o problema é cada vez mais conhecido. Em Jacareacanga, às margens do Tapajós, missionários católicos me aconselharam a não comer peixe. Em uma aldeia dos índios Munduruku, o cacique me disse que o peixe não era mais confiável. Há casos de intoxicação por mercúrio relatados nas aldeias indígenas mais remotas, inclusive em crianças.

O paradoxo: os próprios índios Munduruku operam minas de ouro ilegais em suas terras. Eles afirmam que precisam de dinheiro para gasolina, roupas, telefones celulares, etc. Outros grupos indígenas que visitei comercializam ilegalmente madeiras nobres. São as brutais contradições da nova Amazônia.

Durante minha viagem, estive na pequena cidade de Creporizão, localizada às margens do rio Crepori, no Pará. É uma cidade de garimpeiros. Parece ter saído do Velho Oeste, com bares, prostitutas, hotéis e preços exorbitantes. Há 30 anos a região era selvagem. Hoje, 5 mil pessoas vivem em Creporizão, e todos os dias chegam novos aventureiros de todo o Brasil, fugindo da eterna pobreza e com o sonho de enriquecer rapidamente.

Visitei uma pequena mina de ouro na floresta. Cinco homens estavam num buraco de lama e lixiviavam o solo com água. Para extrair um quilo de ouro da terra, eles precisam de 100 gramas de mercúrio, dos quais dois gramas acabam no meio ambiente, afirmaram. Assim, eles contaminam milhões de litros de água. Na Bacia Amazônica existem milhares de minas como essa.

A maiora dos garimpeiros é pobre. Os trabalhadores no buraco ganham entre 4% e 5% do lucro final. Quem enriquece é o dono da mina. Mas esses pobres também são a ponta da destruição da Amazônia. Onde eles aparecem, logo são seguidos por madeireiros, fazendeiros e, por fim, a indústria agrícola, com suas monoculturas que não funcionam sem engenharia genética e centenas de pesticidas, muitos deles proibidos na Europa.

Creporizão está localizada no final de uma estrada chamada Transgarimpeira. Antigamente ela passava pela floresta densa. Hoje passa por pastos e troncos carbonizados de árvores queimadas. Nos locais onde ainda existe floresta, repetidamente, noto rastros mata adentro de veículos pesados. Eles pertencem a madeireiros.

É como em todos os lugares: onde uma estrada é construída, segue a destruição. Esse é o modelo de desenvolvimento do Brasil há 500 anos. Natureza e economia são ainda entendidas como opostas, e não como unidade.

É um pensamento fatal. Os efeitos já são claramente identificáveis. As secas recorrentes no sudeste brasileiro são fruto do desaparecimento da mata no norte. Um estudo de 2016 dos renomados pesquisadores Tom Lovejoy e Carlos Nobre chega a uma assustadora conclusão. Eles estimam que na Amazônia, com uma taxa de desmatamento de 20-25%, um ponto de ruptura poderia ser atingido. Nobre alerta: "A Amazônia não está longe de virar savana."

O presidente Jair Bolsonaro disse: "Quando estive com Donald Trump, conversei com ele que quero abrir para ele explorar a região amazônica em parceria." É o pensamento de um homem do passado. Acredita ainda num modelo de desenvolvimento destrutivo. Consequentemente, ele retirou poder do Ibama e do ICMBio e suspendeu ações punitivas contra madeireiros ilegais. No ICMBio, o comando está agora nas mãos de militares.

A Transgarimpeira encontra em seu extremo oeste a BR-163, a rodovia da soja. Nela trafegam colunas quase intermináveis de caminhões que transportam os grãos do sul para os portos fluviais no norte. Em alguns lugares, os caminhões atolam no meio da floresta.

Numa lanchonete, conheço um homem de 55 anos que veste roupas rasgadas e tem consigo uma bicicleta. Ele disse ser um pequeno agricultor do Mato Grosso indo para Itaituba, no Pará. Conta que não existem mais terras para ele no Mato Grosso, o estado está transformando-se num grande campo de soja. O homem já está pedalando há uma semana. Mais um dia e ele estaria em Itaituba, onde pretende garimpar. Muito se fala das riquezas que a soja cria; pouco dos pobres que ela deixa. Admiro a resiliência desse homem.

Às margens da BR-163 conheço também um criador de gado, que atendeu em 1975 a um chamado da ditadura militar. Na época, os militares queriam colonizar a Amazônia. Seu lema: terra sem gente para gente sem terra. Para eles, os índios não eram gente. Hoje o presidente Bolsonaro compara os índios a "animais no zoológico".

Naquela época o homem comprou 113 hectares de terra por 21 cruzeiros. A propriedade está localizada diretamente na BR-163. Me conta que existem dias em que é impossível conversar com a esposa no terraço, tamanho o barulho dos milhares de caminhões que passam por ali.

No início da minha viagem, estive em Autazes, ao sul de Manaus. É uma região onde atualmente são criados búfalos. Para suas pastagens, florestas são queimadas. E, ainda pior: os búfalos ficam nos rios. Eles arrasam o solo, urinam e defecam na água.

Os indígenas da etnia Mura que vivem na região dizem que não deixam mais seus filhos entrarem nos rios devido à poluição. Caso contrário, ficariam doentes. Eles não podem mais cozinhar com a água, e os peixes estão desaparecidos. Além disso, os búfalos pisoteiam as pequenas plantações dos Mura. "Estamos cercados", disse-me um cacique. Por lutar contra a expansão, ele já recebeu ameaças de morte de um fazendeiro.

No dia seguinte, visitei a cooperativa dos criadores de búfalos em Murutinga. Seu presidente afirmou que os índios não são índios de verdade e que são manipulados por ONGs. Além disso, eles estariam reivindicando terras às quais não teriam direito. Trata-se de argumentos usados por praticamente todos os fazendeiros no Brasil envolvidos em disputas por terras com povos indígenas.

Está comprovado que as reservas indígenas são os últimos bastiões contra a destruição da Floresta Amazônica. Bolsonaro prometeu ao agronegócio não demarcar novas reservas indígenas e abrir áreas de proteção ambiental. Ao mesmo tempo, o Brasil prometeu à União Europeia (UE) que o país cumprirá, no futuro, os rigorosos requisitos ambientais do acordo UE-Mercosul. Provavelmente, ele não sabe como conseguirá agradar a gregos e troianos. Pois não existe uma Amazônia para inglês ver.

Os números falam por si: somente em junho deste ano, o desmatamento na Amazônia cresceu quase 60% em relação ao mesmo período de 2018. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) também apontam que o primeiro semestre de 2019 supera os índices do ano passado. Os números deste ano até junho são superados somente pelos de 2016, que registrou os piores índices para o período desde 2008.

Está claro depois da minha jornada que a Bacia Amazônica não é mais um paraíso intocado, mas uma região econômica dinâmica que está se expandindo de forma imparável e agressiva. O Brasil está perdendo lentamente – mas certamente – um dos seus maiores tesouros. Todo mundo vai perder com isso.
Philipp Lichterbeck

Imagem do Dia

Ponte de pedra medieval (Inglaterra) 

Nós, o povo

Angel Boligan
O presidente Jair Bolsonaro, durante mais uma manifestação a favor de si mesmo, disse que ele está com o povo e o povo está com ele. Ele e o povo são um só. Ponderado, garantiu que até respeita as instituições, como não respeitaria?, mas que acima das instituições está o povo, “meu patrão, a quem devo lealdade”, concluiu Hugo Chávez, minto, Jair Bolsonaro.

Declarações assim traem certo analfabetismo político e flertam com o perigo antidemocrático. O sentimento de que há inimigos e traidores por todos os lados, dentro e fora do governo, que devem ser combatidos, escorraçados, calados, deportados, isso serve para instigar ânimos que teimam em se manter exaltados. Da força de expressão à expressão da força é um pulo.

O deputado que perambulou sem norte durante longos anos nos corredores do Legislativo virou presidente, mas ainda não terminou de aprender que as tais “instituições” não são coisas que atrapalham a política, que contrariam o povo. Antes, é por meio delas, e só por meio delas, que uma política razoável é possível no complexo mundo contemporâneo.

O povo, por sua vez, é uma abstração. Quem é o povo: todos os brasileiros? A maioria dos brasileiros? Apenas os que votaram no presidente? Somente os que lhe são leais? Quem votou nele e se arrependeu ainda é povo, ou perde a condição de povo? Quem concorda com a direção da economia e da infraestrutura, mas discorda dos rumos da política ambiental e de segurança, é meio-povo?

A alternativa ao sistema representativo já foi tentada, e deu errado, em muitos países. A democracia direta, popular e populista, é a menina dos olhos de todo líder autoritário. De todo líder autoritário de esquerda, a propósito. O que nós vemos hoje na Venezuela é efeito dessa concepção política. Dessa ligação direta ao ataque, do goleiro ao centroavante, sem a troca de passes da democracia.

Revolucionários de esquerda e populistas de direita apelam ao povo, à política plebiscitária, à indistinção entre representantes e representados, à confusão entre a vontade das ruas e a vontade de quem diz representar as ruas, às demandas arbitrárias em detrimento da lei e da Constituição. Por isso, as instituições são o mecanismo contra-majoritário por excelência, ou seja, elas servem de anteparo entre as massas e os indivíduos, entre a brutalidade do coletivo e fragilidade da minoria. Minoria que pode ser você, eu, o cristão, o ateu, quem quer que seja considerado inimigo público num dado momento ou contexto. Num país comunista, minoria é o cristão. Cristo e seus doze foram minoria numa Roma idólatra e decadente.

Se tomarmos o modelo americano como paradigma, aprenderemos que lá, mais do que aqui, o que funcionam são as instituições, pessoas à parte. A começar pela Constituição, mais antiga e resiliente do mundo democrático. O que há de invejável nos EUA é a solidez e a constância de seus institutos, mesmo diante de todos os baques econômicos e geopolíticos que sofreram e fizeram sofrer. Da conquista da Independência à Secessão, da Crise de 29 ao Vietnã, da Guerra Fria ao 11 de setembro, do assassinato de Kennedy à renúncia de Nixon, muitos foram os motivos para que as instituições americanas sucumbissem ao populismo imediatista. Não, obrigado, eles disseram.

Notem que nem mesmo o processo eleitoral americano é como o nosso. O sistema proporcional filtra as distorções que o voto direto nos candidatos poderia permitir. Não é curioso que a Hillary Clinton tenha vencido no dito voto popular, mas Trump tenha levado no voto que vale, o dos colégios eleitorais? Assim é e assim fica. Eis a lição de um país que, defeitos à parte, sabe que a liberdade do povo é resultado, e não causa, da solidez das instituições e da equanimidade da lei.

Jair Bolsonaro e sua militância deveriam aprender a sério como funciona a democracia com os irmãos do Norte, em vez de apenas imitá-los no que têm de pitoresco e espalhafatoso. Não adianta nada falar como os EUA e fazer como a Venezuela.

Quando perguntar ofende

É um desrespeito à criação de Chico Anysio e à nova versão comandada pelo filho dele, Bruno Mazzeo, a comparação ao programa "Escolinha do Professor Raimundo" feita pelo presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, Felipe Francischini, à sessão que ouviu o ministro Sergio Moro nesta terça-feira 2.

"Escolinha" é entretenimento, o que se viu na CCJ foi vergonha nacional. Ninguém ali esperava que Moro esclarecesse ou explicasse mais do que já havia dito no Senado sobre os diálogos divulgados pelo site The Intercept Brasil. A ideia de detratores e defensores do ministro era apenas detratar ou defender. E fizeram isso da pior maneira possível: aos desaforos, palavrões e vulgaridades a mancheias.

Para Moro, afora a perda de tempo e de mais um dia de trabalho, foi um ganho. Ganhou na manutenção da fleuma em comparação ao destempero geral, teve a oportunidade de dizer umas verdades a gente cuja cobrança por condutas éticas é no mínimo questionável e saiu ileso no tocante a esclarecimentos devidos a respeito da natureza dos diálogos com procuradores.
Já os deputados perderam ao promover um espetáculo mambembe, inútil para o desdobramento do caso em si e, sobretudo, deletério para um Congresso que busca sua recuperação junto à opinião pública sendo mais ativo, autônomo e sensível às demandas da sociedade.

Silicon Valley, onde ganhar R$ 1 milhão por ano não é suficiente para chegar ao fim do mês

Quis ser Florença e agora corre o risco de se tornar Detroit. Silicon Valley, o Vale do Silício, está morrendo. Sua morte não está sendo muito divulgada, mas a imprensa fala dela sem rodeios há meses. Inclusive o The New York Times, que já lhe dedicou uma série de artigos com pronunciado sabor necrológico. Algumas das principais empresas de tecnologia mantêm a sua sede lá, ao sul da Baía de San Francisco, ao pé da Serra de Santa Cruz, no vale de Santa Clara. Mas o que morreu é a utopia tecnológica do fim do século XX que quis ver em Silicon Valley uma concentração de talento e capacidade de inovação sem precedentes a serviço de uma nova economia capitalista e de um mundo melhor.


Nas palavras do especialista em tecnologia Rob Enderle, “o sonho acabou”. O chamado Silicon Valley agora abriga empresas decadentes, com péssima reputação, em um ambiente de crescente toxicidade. Em um artigo de vocação certamente polêmica escrito para o portal Tech News World, Enderle fala inclusive da elite empresarial do vale como uma casta de homens poderosos e desconectados da realidade que continuam embarcando em “orgias sexuais e narcóticas”, com suas mulheres e funcionárias, como se a era posterior a Harvey Weinstein e o movimento #MeToo não fosse com eles.

Para além da visão apocalíptica de detratores tão ferozes quanto Enderle, há muitas opiniões negativas, mas bem mais moderadas, como as do analista financeiro Scott Maxwell, que atribui a decadência de Silicon Valley “a que não faz mais sentido isolar e concentrar o talento”. Na era das redes sociais, dos smartphones e das videoconferências, pergunta Maxwell, “para que serve se obstinar em abrir uma nova empresa em um lugar onde a concorrência é feroz, os aluguéis muito altos, os salários astronômicos e os impostos desproporcionados?”. Instalar-se no vale é hoje mais uma questão de status do que uma decisão prática. Parece preferível ir a Boulder, no Colorado; a Portland, no Oregon; a Wilmington, em Delaware. Ou mesmo Detroit, cidade defunta até recentemente e novamente pujante. Ou para Cingapura. Maxwell tem muito claro: “Silicon Valley morreu de sucesso. Criou um mundo interconectado no qual não faz mais sentido tentar dar ao talento uma sólida base local”.

“No vale de Santa Clara eram cultivadas as melhores ameixas do mundo”, diz Sal Pizarro, editor e colunista do The Mercury News, um dos principais jornais da cidade californiana de San José, “dos mirantes da Serra de Santa Cruz, ao pé das colinas, ainda se distinguem os grandes cultivos de frutas de Monte Sereno e Los Gatos, abastecidos de água por poços artesianos até bem entrados os anos cinquenta do século passado”. Os fabricantes de computadores e microchips de silício se concentravam no início na faixa norte do condado, no triângulo formado pela Universidade de Stanford e as cidades de Palo Alto e Menlo Park.

A partir desse próspero núcleo, as empresas começaram a se espalhar como uma mancha de óleo em direção ao sul e ao leste, colonizando completamente a então lânguida cidade de San José, e os pequenos enclaves rurais ao seu redor: Sunnyvale, Saratoga, Mountain View, Cupertino... Hoje, esse ambiente densamente urbanizado é a terceira área metropolitana com maior renda per capita do mundo depois de Zurique e Oslo. Mas Pizarro diz não sentir saudade daquela Califórnia, de suas ameixas e coníferas: “Seria absurdo. Também nas colinas de Hollywood se cultivavam laranjas muito boas, mas foi muito melhor para eles quando começaram a fazer filmes”.

Nada drástico parece ter acontecido nos últimos anos. O Vale de Santa Clara continua abrigando as sedes do Google, Facebook, Wells Fargo, Visa, Chevron e muitas outras. Além disso, startups tão promissoras como Gladly, Nurx e Shippo acabam de se estabelecer nos arredores de San José, entre a Serra de Santa Cruz e o sul da Baía de San Francisco. No entanto, a imprensa internacional já considera pouco menos que indiscutível que essa área e sua próspera economia baseada na inovação e na excelência entraram em seu particular momento mórbido, quando o velho está prestes a morrer e o novo ainda não nasceu.

Um artigo do ano passado, publicado no The New York Times por Kevin Roose, fez soar o alarme proclamando categoricamente “o fim de Silicon Valley segundo Silicon Valley”. Sal Pizarro o leu, é claro. Esse e muitos outros. Daí o tom crepuscular de suas palavras. Os artigos não lhe parecem uma cantilena catastrofista. Ele pensa que, de fato, “as empresas de tecnologia mais promissoras dos EUA já não cogitam vir aqui, estão considerando alternativas como Chicago, Boston, Portland, Austin, Colorado, Detroit... em relação às internacionais, provavelmente estão pensando em Pequim, Moscou, Berlim ou Tel Aviv”.

“As coisas não acontecem de verdade até que o The New York Times fala delas em sua primeira página”, brinca o professor universitário de ciência e tecnologia Andrew L. Russell, estudioso do auge e da decadência de Silicon Valley, “mas os sinais do declínio estão aí há muito tempo para quem quiser ver”. Russell os resume com precisão e vigor: “O vale agora é o símbolo dos piores vícios do capitalismo pós-moderno. Gente que ganha verdadeiras fortunas comerciando com sua privacidade, espalhando boatos em suas redes sociais, falsamente democráticas e cada vez mais intrusivas. Quem quer fazer parte disso?”.

Russell escreveu há alguns meses um artigo na revista Fast Companyexplicando por que o Silicon Valley havia deixado de ser “a nova Florença” e estava a caminho de se tornar “a nova Detroit”. Nele recuperou alguns dos argumentos que a ensaísta e professora da Universidade de Stanford Glenna Matthews expusera em seu livro de 2002, Silicon Valley, Women and the California Dream [Silicon Valley, as Mulheres e o Sonho Californiano]. Matthews denunciou na época o desenvolvimento de uma cultura “tóxica”, elitista, patriarcal e racista, que discriminava em termos salariais as mulheres e as minorias étnicas, onde o assédio sexual e trabalhista eram práticas rotineiras e o espírito de comunidade brilhava pela ausência.

Segundo Russell, o declínio que Matthews apontou não parou de se acentuar nos últimos 15 anos. A principal novidade, diz o jornalista de tecnologia Herb Scribner, é que o emprego precário fez sua aparição nas startups do vale. “Facebook e companhia continuam pagando salários iniciais de seis cifras”, explica Scribner, “mas as novas empresas que se estabelecem em Cupertino ou San José estão recrutando jovens recém-formados atraídos pelo prestígio do vale aos quais pagam, às vezes, salários que os condenam a viver mal em um dos entornos urbanos mais caros do mundo”.

Viver mal, nesse contexto, consiste em resignar-se ao fato de que comprar uma casa no vale é impossível para quem não tem um salário astronômico. Em uma pesquisa publicada este ano pelo The Mercury News, grande parte dos moradores do condado de Santa Clara que ganhava entre 200.000 (cerca de 765.000 reais) e 300.000 dólares (cerca de 1,148 milhão de reais) por ano se definia como “classe média”. Pode parecer exagerado, mas como se considerar rico em um ambiente em que abundam bilionários e o preço médio da moradia está entre os mais altos do mundo? O preço médio de uma casa em Silicon Valley é de cerca de 4 milhões de reais e o aluguel gira em torno de 20.000 reais por mês.

O analista financeiro Scott Maxwell tem muito claro: “Silicon Valley morreu de sucesso. Criou um mundo interconectado no qual não faz mais sentido tentar dar ao talento uma sólida base local”

A questão não é quanto dinheiro você tem, mas o quanto você precisa para viver dignamente em um lugar assim. Dadas as circunstâncias, não é estranho que os recém-chegados se contentem em morar em pensões nos bairros populares de San Francisco, como Tenderloin, a uma hora de estrada de seus locais de trabalho. Os antigos antros de prostituição por hora que não faz muito tempo eram o bairro mais degradado da cidade da baía se tornaram residências improvisadas para essa nova ‘elite’ precária da qual fala Scribner.

Andrew L. Russell está intrigado com a ideia de que o Silicon Valley e Detroit possam ser, até certo ponto, vasos comunicantes. Afinal de contas, era disso que tratava o artigo de Kevin Roose no The New York Times que fez soar os alarmes. O artigo falava sobre como um grupo de investidores de tecnologia estava pensando abrir suas empresas em Detroit, atraídos pelo atual dinamismo da cidade de Michigan, que chegou ao fundo do poço nas décadas de oitenta e noventa, mas tenta se recuperar desde então. “Durante a presidência de Ronald Reagan, Detroit se tornou uma cidade fantasma, o símbolo mais eloquente dos estragos da desindustrialização dos EUA”, explica Russell. “Paralelamente, o Silicon Valley se consolidou como a sede de um capitalismo tecnológico mais humano, mais progressista e mais inovador”, acrescenta.

É paradoxal que a decadência do vale de Santa Clara coincida com o novo auge de Detroit, mas tampouco convém levar a metáfora longe demais. Na verdade, tudo aponta para entornos urbanos como Boston, Chicago, Austin ou a área de Nova York que se beneficiarão em maior medida da decadência de Silicon Valley e da iminente dispersão do talento que chegou a se concentrar nele. Para Russell, a prova eloquente do alto grau de “toxicidade” do vale é a enorme proliferação de aterros industriais no condado de Santa Clara. No final, o capitalismo de vanguarda acabou sendo tão pouco respeitoso com o meio ambiente quanto o tradicional. Ou ainda menos.