sábado, 16 de novembro de 2019

A gente somos inúteis

Ao examinar a medida provisória sobre a geração de empregos para jovens, devido aos jabutis incluídos pela equipe econômica no projeto do governo para criar quatro milhões de novos postos de trabalho, é inevitável lembrar do refrão da música Inútil, da banda de rock Ultraje a Rigor. Não só por causa do grande número de jovens nem-nem, fora do trabalho e da escola, sem condições de ingressar no mercado de trabalho devido à escolaridade precária (eram 23% dos 33 milhões de jovens entre 15 e 24 anos), mas também por causa de algumas ideias sem nenhuma chance de serem aprovadas pelo Congresso, como a taxação do seguro-desemprego e a extinção de várias profissões regulamentadas.

A medida provisória acaba com registros profissionais de jornalista, agenciador de propaganda, arquivista, artista, atuário, publicitário, radialista, secretário, sociólogo, técnico em arquivo, técnico em espetáculo de diversões, técnico em segurança do trabalho e técnico em secretariado, entre outros. Se levarmos em conta certas atitudes e declarações do presidente Jair Bolsonaro e a política adotada em relação à educação, à cultura e à imprensa, faz até certo sentido, pois existe realmente uma ojeriza governamental aos profissionais que atuam nessas áreas.

Jornalistas revelam o que certos poderosos não gostariam que fosse de conhecimento público; sociólogos estudam problemas para os quais as autoridades muitas vezes fecham os olhos; arquivistas classificam, preservam e organizam documentos que muitos gostariam que fossem incinerados; técnicos em segurança do trabalho denunciam condições insalubres e desumanas nas empresas; artistas fazem a crítica dos costumes e dos poderes. Por ironia, sobrou até para o empregado do lava-jato. Tudo bem que é preciso modernizar a legislação trabalhista, mas não precisa o governo meter uma mão peluda no mercado de trabalho para precarizar ainda mais profissões que estão passando por grandes transformações devido à revolução tecnológica. O governo deveria se preocupar mais com a sua reforma administrativa e as carreiras do serviço público, pois, essas sim, o mercado não resolve.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já se manifestou sobre a proposta do governo. Disse que vários dispositivos, entre os quais o que acaba com o registro profissional de jornalista, deverão ser retirados. A rigor, esse não é um assunto interditado ao debate, pois a comunicação, com as redes sociais, deixou de ser oceânica para se tornar galática e os jornalistas perderam o monopólio da notícia. Nada acontece sem que um cidadão com o celular ou uma câmera de segurança registre em tempo real. Entretanto, não tem sentido resolver a questão por medida provisória. Na revolução em curso no mundo do trabalho, a maioria das profissões que existirão daqui a 25 anos, provavelmente, ainda não foi nem criada; mesmo entre as novas, algumas terão vida efêmera, como tiveram o fax, o DVD e o iPod.

Não se resolve esse assunto com uma canetada. A medida provisória restringe as profissões àquelas que têm conselhos que as regulamentam, que são justamente as mais corporativistas e que transformaram seu mercado de trabalho em grande cartório. Mesmo as profissões mais valorizadas estão sendo muito impactadas pela inteligência artificial, como as de advogado e de médico. A propósito, a inteligência artificial deveria ampliar o acesso e baratear os serviços, e não encarecê-los ainda mais e elitizá-los, como acontece no Brasil.

O governo fez cálculos cabalísticos sobre a geração de emprego, com base em medidas que, a rigor, não aumentam a produtividade, apenas a exploração do trabalho, como medidas para reduzir indenizações e multas trabalhistas. Acaba até com o seguro para acidentes da trânsito, Dpvat, que é sabidamente impactado pelos acidentes com motoboys. Espera com isso criar 1,8 milhão de empregos por ano, uma meta chutada, que não pode servir para legitimar as maldades da equipe econômica, pressionada a resolver o problema do desemprego pelo próprio presidente Bolsonaro.
 Luiz Carlos Azedo

Quando perder é pecado

O mundo está preso em um sistema de valores que coloca o sucesso acima de tudo, e, por outro lado, condena o fracasso. Perder é o único pecado que no mundo de hoje não tem redenção. Estamos condenados a ganhar ou ganhar. E, bem, ao longo da história muitas pessoas melhores perderam, e isto não lhes tira nem um pouco a razão. Os dois homens mais justos na história da humanidade, Sócrates e Jesus, morreram condenados pela justiça. Os mais justos foram condenados pela justiça. E não deixam de ser justos
Eduardo Galeano

Balas a esmo

Inventamos uma tremenda de uma mentira, a ‘bala perdida’. Quase todas as mortes no Rio são atribuídas a balas perdidas, o que é uma falácia. Não existem balas perdidas. Temos, sim, balas a esmo nesta cidade que já foi o orgulho do Brasil mas que hoje é nossa maior vergonha.

Só neste malfadado ano de 2019 perdemos seis crianças com idades entre doze e cinco anos. Vou repetir para gravar no coração do Leitor: seis crianças. São seis vidas ainda não plenamente vividas cuja morte destruiu também suas famílias.

Bolsonaro veio abraçar as famílias, dar-lhes força? O Witzel se preocupou em saber se as famílias tinham condições de arcar com as grandes despesas dos funerais? Sergio Moro, o herói da Segurança, se explicou?

O governador do Rio diz que a culpa é do governo federal que não controla como devia a entrada de armas e drogas em nossas fronteiras.

O Ministro da Justiça, Sergio Moro, disse: "O governo federal tem combatido duramente o tráfico de drogas e de armas. Não é correto comparar as apreensões dos primeiros cinco meses de 2019 com o total apreendido nos anos anteriores, como faz o governador do Rio de Janeiro ao buscar transferir a responsabilidade dos crimes no estado ao governo federal".
Que tal?


E o presidente da infeliz República (você, Leitor, está comemorando a data, ou, como eu, achou melhor ignorá-la?), o que disse? Nada. As seis crianças mortas não é bem um assunto que lhe interessa, sobretudo agora que os líderes comunistas que ele tanto admira estavam em Brasília. Isso, sim, era assunto importante para ele. (Por falar nisso, como é que ele vai se acertar com Trump, o americano paixão?)

Choro a morte das seis crianças, três meninos e três meninas. Choro a dor de suas famílias. Mas não esqueço que não foram só elas as vítimas dessas balas atiradas de qualquer jeito, sem controle, sem ordem, sem tino. Morrem velhos, adultos, adolescentes, gente boa e gente má, todas as mortes comemoradas pelo governador que afirma que o Rio é uma cidade tranquila, tão segura quanto Paris, New York, Londres.

Segundo essa figura que nos desgoverna, as áreas de interesse turístico estão seguras. Mas para chegar ao Pão de Açúcar ou à Floresta da Tijuca, como fazer, ir voando? Ou atravessar áreas onde o perigo se esconde? Onde as milícias são protegidas pelos mais altos postos da República?

E ainda querem armar mais a população! Se essa não é a ideia mais imbecil que rondou nossos céus, qual será?

Encerro com um pedido a São José, pai do menino Jesus: acalme os corações dos pais de Kethleen, Jennifer, Kauan, Kauã, Kauê e Agatha. Ajude-os, meu bom São José, a vencer essa dor terrível que agora atravessam.

Toffoli comporta-se como um monarca absolutista

Dias Toffoli justificou o congelamento dos processos recheados com dados do Coaf com o argumento de que não se pode conviver com "um Estado autoritário que invada a vida das pessoas". Há dois meses, numa entrevista à Reuters, perguntou-se ao presidente do Supremo Tribunal Federal se sua decisão, tomada nas férias de julho, visava proteger Flávio Bolsonaro. E ele: "É uma decisão em defesa da cidadania, defesa de toda a sociedade". Cabe agora indagar: Quem protegerá a sociedade das decisões autoritárias de Toffoli?

Por uma dessas ironias da história, Toffoli e a República fazem aniversário no mesmo dia. Nesta sexta-feira, a República completa 130 anos. Toffoli, 52. Em data tão especial, o procurador-geral da República Augusto Aras pediu a Toffoli que revogue a ordem que resultou no envio ao Supremo dos dados bancários e fiscais sigilosos de 600 mil pessoas e empresas. Toffoli respondeu com a velocidade de um raio. Indeferiu o pedido de Aras.



Na véspera, instado a explicar por que requisitou ao Banco Central relatórios produzidos nos últimos três anos pelo antigo Coaf e pela Receita Federal, Toffoli mandou dizer que não comenta processos sigilosos. É como se, sob a presidência de Toffoli, o Supremo criasse sua própria monarquia. No sistema monárquico, só uma pessoa usa a coroa, o manto e o cetro. No caso específico, houve uma autocoroação. O presidente do Supremo autoproclamou-se Dom Toffoli 1º.

Como se sabe, há dois tipos de monarquia: as absolutas e as constitucionais. Toffoli optou pelo primeiro modelo. O absolutismo lhe pareceu mais conveniente porque, nesse modelo, o soberano não deve nada a ninguém. Muito menos explicações. A silhueta do monarca já havia se insinuado atrás da toga em março, quando Toffoli 1º determinou a abertura de inquérito secreto no Supremo para apurar ataques à Corte e aos seus membros.

Acumulando os papeis de vítima, investigador e julgador, o Supremo de Toffoli ganhou a aparência de anomalia. A requisição dos dados sigilosos de 600 mil brasileiros potencializou a anormalidade. Toffoli 1º convidou os amigos para celebrar seu aniversário neste sábado. A festa ocorrerá em São Paulo. Deve-se torcer para que, fora das dependências do Supremo, o soberano reencontre nas ruas de São Paulo a República cuja proclamação ele parece ignorar.