sábado, 31 de agosto de 2019

Paisagem brasileira


Soldados de Caxias

“Os governos imperialistas aproveitam a crise para lançar uma ofensiva em torno da questão ambiental para atacar a soberania nacional brasileira. Aos incautos que insistem em tutelar os desígnios da brasileira Amazônia, não se enganem: os soldados do Exército de Caxias estarão sempre atentos e vigilantes, prontos para repelir qualquer tipo de ameaça.”

Quem escreveu isso? Assim, ninguém. A primeira frase é do Partido da Causa Operária, um grupúsculo de ultraesquerda (e, nela, depois da “crise”, aparece uma “criada por Bolsonaro”).

Já a segunda é do general Edson Pujol, comandante do Exército, na Ordem do Dia lida no último dia 23. Mas as duas ficam bem juntas, abraçadas no ninho do nacionalismo. A nação, ensinou Benedict Anderson, é uma “comunidade imaginada”. O patriotismo nacionalista, registrou Samuel Johnson, é “o último refúgio dos canalhas”.


A invocação da soberania nacional é o refúgio clássico de governantes quando estrangeiros apontam rupturas dos compromissos internacionais assumidos pelo país, desrespeito às leis nacionais ou violações dos direitos dos cidadãos. Os canalhas perfilam-se à sombra da bandeira sempre que emergem temas diplomáticos globais, como as políticas ambientais e os direitos humanos. Nessas horas, a extrema direita e a esquerda tradicional revelam suas notáveis semelhanças. Então, uns e outros começam a empregar as palavras “imperialismo” e “colonialismo”.

Jimmy Carter assumiu a Presidência dos EUA em 1977 e lançou sua política de direitos humanos, afastando Washington das ditaduras militares do Cone Sul. Ernesto Geisel reagiu rompendo o acordo militar bilateral para “não sujeitar o Brasil à interferência externa”. O general Gregório Álvarez, homem-forte da ditadura uruguaia, tentou costurar um pacto com o Brasil para resistir à “subversão comunista” e ao “desrespeito dos EUA à soberania” dos dois países. Eles só não aplicaram o rótulo de “comunista” a Carter para reservar o espetáculo do ridículo à extrema direita bolsonarista.

A guerra de verdade toma, eventualmente, o lugar da guerra retórica. Leopoldo Galtieri deflagrou a Guerra das Malvinas, em 1982, para unir a Argentina em torno de uma sangrenta ditadura que submergia. “As Malvinas são argentinas —e os desaparecidos também.” A resposta da oposição evidenciou o dilema da esquerda, incapaz de se desvencilhar de seu discurso ritual anti-imperialista. No fim, a ditadura desabou —mas como resultado da humilhação militar.

Soldados de Caxias, soldados de Bolívar. O hino da “luta contra o imperialismo” acompanha as prisões e a tortura na Venezuela chavista. “Esses bandidos vão lá e falam mal do país e ganham milhares de dólares”: Nicolás Maduro utiliza, para as ONGs de direitos humanos, a mesma linguagem que Jair Bolsonaro usa para as ONGs ambientalistas. ONGs formam um universo heterogêneo, multifacetado. Mas, na retórica compartilhada pelo nacionalismo autoritário de direita e de esquerda, todas são agentes do “inimigo externo” pois podem representar contrapontos ao poder estatal.

No G7, com o plano de ajuda para combate a incêndios e reflorestamento, Emmanuel Macron deu um xeque ao rei, prendendo Bolsonaro no canto do tabuleiro diplomático. Depois, sua incauta sugestão de um estatuto internacional para a Amazônia ofereceu aos nacionalistas um atalho rumo ao “último refúgio”.

A Amazônia, no imaginário militar, é o “verde de nossas florestas”, uma das cores da bandeira, e o pilar setentrional da doutrina geopolítica de integração nacional. Os “soldados de Caxias” estão lá, nas largas faixas de fronteiras mortas, nos caminhos líquidos disputados pelo narcotráfico.

A Ordem do Dia de Pujol, tão parecida com o brado insignificante da Causa Operária, era ainda mais previsível que a próxima fagulha de incêndio. Nem por isso deixa de ser uma fuga para o “último refúgio”.
Demétrio Magnoli

O milionário que comprou 7 milhões de hectares na Amazônia por causa do seu cordão umbilical

A guerra em curso contra a destruição da Amazônia brasileira me fez lembrar que, há 20 anos, um dos meus primeiros artigos como correspondente deste jornal, publicado em Madri em 26 de janeiro de 1999, foi sobre uma compra ilegal por parte do milionário empreiteiro brasileiro Cecílio do Rego Almeida, já falecido, de um território de sete milhões de hectares da Amazônia, em Altamira, no estado do Pará.

Aquela reportagem me deu dores de cabeça. A notícia havia sido dada pela imprensa brasileira. Eu a contei para o jornal lembrando que se tratava da aquisição de um território do tamanho da Holanda e da Bélgica juntas. Uma verdadeira loucura que transformou o empreiteiro brasileiro no maior latifundiário do planeta. No seu território, comprado por uma ninharia, corriam 28 rios e havia várias reservas indígenas e aldeia inteiras.


Eram terras do Estado que nunca poderiam ter sido vendidas. Foi preciso a intervenção do então ministro da Justiça, Renan Calheiros, do Governo de Fernando Henrique Cardoso. Verdade ou não, Rego também era acusado de envolvimento em episódios escabrosos como assassinatos, ocultação de cadáveres, atos de escravidão e formação de quadrilhas paramilitares. O novo dono daquela imensidade da Amazônia andava acompanhado então de 14 homens armados e o juiz do caso era escoltado dia e noite por dois policiais.

No território amazônico —que eu nunca soube como o milionário conseguiu adquirir, pois era oriundo de uma família muito pobre que havia enriquecido com contratos de obras de construção com o Estado— havia na época enormes tesouros naturais como reservas de diamantes, ouro e a maior reserva de mogno do planeta, então avaliada em 7 bilhões de dólares.

Meu artigo levou este jornal a publicar um editorial lembrando que, ainda que respeitada a soberania brasileira sobre a Amazônia, aquele santuário ecológico, de algum modo “era responsabilidade de todos” pela importância ambiental que constitui para toda a humanidade.

O empreiteiro e latifundiário Rego devia ter boas relações com o Governo, pois recebi uma carta do então embaixador brasileiro em Madri em que tentava me explicar quais publicações devia ou não consultar e apreciar para o meu ofício de correspondente

Respondi delicadamente que nunca teria me permitido explicar a um embaixador como devia exercer sua delicada missão de diplomata e que eu conhecia meu ofício, pois tinha 30 anos de profissão, dos quais mais de 20 como correspondente. Pouco depois o advogado do novo proprietário dos 7 milhões de hectares da Amazônia me telefonou, fazendo observações sobre minha reportagem. Disse-lhe que a melhor solução seria que ele me organizasse uma entrevista com Rego. Respondeu que ele não queria se encontrar pessoalmente comigo, mas que poderia conversar por telefone. Assim foi. Mostrou-se muito amável e tentou me convencer de que havia comprado legalmente aquele enorme território da Amazônia.

Perguntei-lhe por que queria comprar tanta terra. Respondeu: “Eu nasci lá e minha mãe enterrou o cordão umbilical naquela terra”. Voltei a perguntar-lhe se era necessário adquirir um território como a Bélgica e a Holanda juntas. E me respondeu com candura: “Já que decidi comprar, comprei tudo”.

O que o empresário milionário deveria ter então eram boas informações até dentro deste jornal em Madri. Ele me recriminou que eu tinha escrito o editorial em que se afirmava que a Amazônia era responsabilidade de todos e não apenas dos brasileiros. Expliquei-lhe que neste jornal os editoriais não têm autor. E que a responsabilidade final era do diretor e que ninguém sabia quem os escrevia. E ele respondeu com certo ar de orgulho: “Pois nós sabemos que foi o senhor”. Tinha razão, embora nunca soube como ele ficou sabendo.

Não fiquei surpreso, portanto, que ele tivesse amigos poderosos que o ajudaram a ser dono daquele tesouro de sete mil hectares de uma terra quase sagrada que é de todos os brasileiros e que ninguém tem o direito de se apropriar dela.

Tudo isso para lembrar aos jovens jornalistas brasileiros, aos quais dedico esta coluna, que há 20 anos a questão da Amazônia era tão quente fora do Brasil quanto os incêndios que hoje a destroem e que continua sendo tão mal administrada pelos governos como sempre. Será esta a vez em que a guerra na qual se meteu o presidente Jair Bolsonaro, como um elefante em uma loja de cristais, e que desafiou a diplomacia mundial, que o país tomará consciência do tesouro e da responsabilidade de que deve prestar contas não apenas aos brasileiros, mas ao mundo?

A cruzada do papa pelos povos da floresta

"Nunca os povos originários amazônicos estiveram tão ameaçados nos seus territórios como o estão agora". O presidente Jair Bolsonaro ainda não tinha nem mesmo campanha na rua quando Jorge Bergoglio fez este profético discurso em 19 de janeiro de 2018. Naquele dia, o papa Francisco, reunido com lideranças indígenas em Porto Maldonado, no Peru, deu início aos preparativos para o Sínodo da Amazônia, em outubro próximo, no Vaticano.

O encontro pode fazer do papa o maior anteparo à política de Bolsonaro para a Amazônia. Ao contrário do presidente francês, Emannuel Macron, contido por seus rivais europeus na comedida reunião do G-7, Jorge Bergoglio contará, no sínodo, com bispos de oito países (Brasil, Bolívia, Equador, Peru, Colômbia, Venezuela, Guianas e Suriname) afinados em sua cruzada pela região.


Órgão consultivo do papa, o sínodo discute as ações da Igreja Católica em missões por ele definidas. A nuance de exército eclesiástico é relativizada pelo formato. O papa não participa do encontro e não está obrigado a seguir suas recomendações. No tema em questão, porém, somam-se bispos comprometidos com a região e um papa que, desde o início do seu pontificado, identificou, na questão ambiental, um tema transversal às disputas de cunho moral que dividem o clero.

Com habilidade, o papa cuida para que seu discurso não seja facilmente carimbado. Não se alinha à tese de "pulmão do mundo", que seria engrossada pelo presidente francês mais de um ano depois. Em Porto Maldonado, mostrou-se disposto a "romper com o paradigma histórico que considera a Amazônia como uma despensa inesgotável dos Estados, sem ter em conta os seus habitantes".

Para isso, deu nome a quase todos os bois da floresta, desde a "pressão de grupos econômicos por petróleo, gás, madeira, ouro e monoculturas agroindustriais" quanto o interesse de movimentos que, "a pretexto de conservar a floresta, se apropriam de grandes extensões de terra e a tornam inacessível aos povos nativos".

O sínodo, cujas reuniões preparatórias já entraram no radar da Agência Brasileira de Informações (Abin), não se limita às fronteiras da floresta. Ao fincar estaca no discurso ambiental, o papa também firma sua liderança contra a nova direita mundial e seus principais porta-vozes.

O mais estridente deles, Steve Bannon, conselheiro do bolsonarismo, disse, em entrevista recente ao "National Catholic Register", jornal católico e conservador dos Estados Unidos, que o papa transformou a Igreja Católica num partido político: "Ele [Jorge Bergoglio] hoje é parte do sistema global contra mudança climática. Não é nem mesmo um centro-esquerda, é da esquerda radical. Seu partido político apoia os Verdes, que, para mim, são, essencialmente, um movimento teológico".

Bannon, que busca legitimidade para se arvorar contra o papa em sua origem familiar de imigrantes operários irlandeses católicos da Virgínia, começou a alvejar o papa quando este, em discurso na linha de fronteira do México com os Estados Unidos, durante a campanha de Donald Trump em 2016, disse: "Uma pessoa que só pensa em construir muros, onde quer que estejam, e não em construir pontes, não é um cristão". Sua cruzada em defesa dos imigrantes levou ainda o primeiro-ministro italiano Matteo Salvini, outro consulente de Bannon, a tentar jogar os italianos contra o papa.

O marqueteiro de Donald Trump acusa o papa ainda de ser aliado chinês e partidário do braço católico do 'marxismo cultural', a Teologia da Libertação - "Ele é ao mesmo tempo jesuíta e peronista". Cativa, no episcopado e na política, aliados em torno da ideia de um novo cisma da Igreja, que teria por base as massas operárias que se movem, no mundo inteiro, pelo discurso contra imigrantes.

O cisma que hoje mais ameaça a Igreja Católica, no entanto, é avanço dos pentecostais e seus derivados. Depois de se expandirem dos Estados Unidos para o resto do mundo, tornaram-se ponta de lança da direita israelense sob o pretexto dogmático de que a volta de Cristo à Terra só será possível quando os judeus estiverem assegurados na terra prometida.

No Brasil, espalharam-se pela Amazônia como em nenhuma outra região do país. Foi no Norte que o PT perdeu, pela primeira vez em 20 anos, uma eleição presidencial. Nas contas do demógrafo José Eustáquio Diniz, dos seis Estados em que a proporção de votos evangélicos tem relação mais estreita com o apoio ao presidente Jair Bolsonaro no segundo turno de 2018, quatro (Acre, Rondônia, Roraima e Amazonas), estão no Norte. Os outros dois Rio e Espírito Santo, Estados não nortistas de maior proporção evangélica.

Tem sede em Manaus, por exemplo, o Ministério Internacional da Restauração (MIR), denominação pentecostal que, em 2014, atuou decisivamente em favor de Marina Silva e, em 2018, bandeou-se para o bolsonarismo tendo a atual ministra Damares Alves como uma de suas principais interlocutoras no governo. Dos sete Estados em que o MIR tem sede, quatro (Amazonas, Rondônia, Roraima e Pará) estão no Norte.

Apesar de os primeiros registros de protestantes na Amazônia datarem do século XVI, com as incursões francesas de huguenotes no Maranhão, foi só com o pentecostalismo que, no início do século XX, os católicos passaram a ter, de fato, rivais na evangelização. A conquista se deu paulatinamente à exposição de populações indígenas e ribeirinhas ao avanço de mineradoras, madeireiras e pecuaristas numa região em que o escasso clero católico, há tempos, deixou de dar conta das aflições terrenas de seus fiéis.

Em artigo que esmiúça as práticas religiosas de povos tradicionais da Amazônia, dois antropólogos, Manoel Ribeiro de Moraes Junior e Donizete Rodrigues, associam o avanço do pentecostalismo à assimilação de rituais do curandeirismo e do xamanismo caboclo. As práticas exorcistas de purificação do corpo, as danças e uma atuação assistencial massificada aproximaria mais facilmente os pentecostais das populações indígenas aculturadas do que os católicos. O xamã e o pastor se confundem como operadores de ritos que se dizem capazes de curar, física e espiritualmente, os fiéis.

Para enfrentar o pentecostalismo caboclo e o exorcismo de Steve Bannon, o sínodo está disposto a enfrentar velhos dogmas católicos. O presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e prefeito emérito da Congregação para o Clero, em Roma, d. Claudio Hummes, já reconheceu que uma das soluções pensadas para fortalecer seus exércitos, numa região em que 70% das comunidades não recebem os sacramentos católicos, é a dispensa do celibato na ordenação de padres.

Arcebispo emérito de São Paulo e um dos cardeais mais próximos do papa Francisco, Hummes tem enfrentado ao longo de toda a preparação do sínodo as desconfianças do governo Bolsonaro. Como, além dos bispos e seus auxiliares, o sínodo contará também com representantes de comunidades indígenas e leigos envolvidos com o tema. O governo brasileiro pediu para ter assento no encontro mas o Vaticano não cedeu à presença de representantes oficiais de nenhum governo.

O sínodo enfrenta a retranca governista que o vê como um encontro anti-Bolsonaro destinado à internacionalizar a Amazônia, obsessão histórica dos militares brasileiros. Contra a ideia fixa, a Igreja exibe a Encíclica do Meio Ambiente, inspiradora do encontro de outubro. O texto data de 2015, quando o atual presidente ainda estava no início de seu último mandato como deputado federal e se limitava a brigar com o Ibama pela pesca em área preservada de Angra dos Reis (RJ). São abundantes, ainda, manifestações críticas à política ambiental de governos anteriores, como a do bispo emérito do Xingu, d. Erwin Kraütler, que se insurgiu a contra a construção da usina de Belo Monte - "É um monumento à insanidade" - pelos governos petistas.

O sucesso do sínodo dependerá mais da estratégia da Igreja em se fazer ouvir por aqueles que moram na Amazônia do que de seus embates com o governante de plantão. No discurso de Porto Maldonado, o papa despiu a igreja do discurso catequizante para abraçar a ideia de que são os povos da floresta que hoje têm ensinamentos para o clero: "Nós que não habitamos nestas terras, precisamos da vossa sabedoria e dos vossos conhecimentos para podermos penetrar - sem o destruir - o tesouro que encerra esta região, ouvindo ressoar as palavras do senhor a Moisés: 'Tira as tuas sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra santa'".

Ainda está pouco claro, porém, como se efetivaria a aproximação de um clero sem braços, ante a concorrência de denominações pentecostais mais próximas do bolsonarismo e da efervescência ritualística dos povos da floresta. Ainda que enfrente a concorrência de denominações pentecostais, o papa Francisco tem se distinguido pela aproximação com outras religiões, como demonstrou na busca de diálogo com o Islã.

O que não parece haver dúvidas é que, quando os bispos e as lideranças indígenas se reunirem a partir de 6 de outubro no Vaticano, durante um encontro que tomará três semanas de discussões e votações, os documentos lá produzidos serão um reforço a posições assumidas por um papa alvo de bombardeios dentro e fora da Igreja.

A força do papa como liderança capaz de denunciar a avidez de grupos econômicos sobre a Amazônia, a histeria de entidades conservacionistas que querem fazer dos povos da floresta prisioneiros de seu próprio infortúnio e os interesses de governantes que fazem da pauta ambiental joguete de suas disputas de poder depende, em grande parte, deste sínodo. A ver como o clero católico será capaz de colocar tudo isso, junto e misturado, no púlpito de suas igrejas.

Pensamento do Dia


A perda da esperança

A incongruência desse governo, em dizer-se parte do mundo ocidental e defender posições completamente em desacordo com os legados mais básicos da cultura desse mundo, ficou patente na recente crise das queimadas da Amazônia.

Como se fosse uma síntese de suas convicções mais arraigadas, no mesmo episódio o presidente Bolsonaro menosprezou os problemas do meio-ambiente, embora tenha sido avisado pelos estudos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e entrou em conflito, direto e pessoal, com o presidente Emmanuel Macron, da França, país símbolo das liberdades individuais e dos direitos humanos, legados fundamentais do Ocidente à civilização.


Civilidade que não esteve presente no desacato à primeira-dama francesa, Brigitte Macron. Embora tenha dito que não a ofendeu, Bolsonaro apagou sua mensagem misógina do twitter, numa autoincriminação.

Aproveitando-se de uma demagogia ecológica de Macron, que tentou levar a discussão para o lado da internacionalização da Amazônia, Bolsonaro tirou da manga a carta do patriotismo que, como disse Samuel Johnson, numa versão amenizada, é o último refúgio dos sem argumentos.

Não era preciso, Macron foi isolado pelos demais líderes europeus de peso, como Angela Merkel, da Alemanha e Boris Johnson, da Inglaterra.

Talvez seja a faceta mais nauseante de seu comportamento como chefe de Estado o retrocesso que pretende impingir a uma sociedade que avançou em medidas sociais desde a Constituição de 1988, e nos últimos anos vem ampliando essas conquistas com decisões que nos colocaram no campo de valores comportamentais progressistas contemporâneos.

Falta ao presidente a compreensão de que é o representante de um país, e não de um restrito grupo de apoiadores que comungam seus pensamentos e se apresenta nas redes sociais de maneira acafajestada.

Bolsonaro não leva em conta alguns dos grandes legados das democracias ocidentais: separação da figura pessoal do governante, e suas próprias opiniões, do cargo institucional que representa; separação dos assuntos de Governo e de Estado; separação entre Estado e Religião, qualquer que ela seja. Cotidianamente vai de encontro a tudo isso.

Na visão de seus mentores, como Olavo de Carvalho, o espírito ocidental estaria sendo mitigado por uma política globalista, e é preciso reforçar a herança histórica, cristã, cultural, bem como o papel da família e do estado de direito a partir da tradição do liberalismo dos EUA.

Seria preciso resgatar o passado simbólico das nações ocidentais, mais calcado no imaginário representado por Trump do que pelas democracias européias.

Falando em seminário da Academia Brasileira de Letras, no encerramento de um ciclo coordenado pela escritora Rosiska Darcy de Oliveira intitulado “O que falta ao Brasil?”, o embaixador e ex-ministro Rubem Ricupero fez uma análise sobre o país às vésperas do bicentenário de sua independência.

Seu temor, registrado no título da palestra - Um futuro pior que o passado? – se baseia na história recente, cujo presente vê atingido por “desgraças simultâneas” que produziram o efeito equivalente ao da guerra “sobre uma sociedade até então poupada de catástrofes históricas, como derrotas e ocupações estrangeiras”.

Para Ricupero, “o Brasil jamais tinha passado por retrocesso tão destrutivo na vida das pessoas por meio do desemprego, do aumento da pobreza, do desalento. Nem experimentara nada equiparável ao profundo impacto depressivo dos escândalos de corrupção que destruíram a autoestima de todo um povo”.

Esse passado próximo, lamenta, não acabou de passar, é ainda o nosso presente. “Neste mesmo instante, ele continua a nos fazer sofrer na persistência da estagnação econômica, do desemprego, do retrocesso social, da barbárie das prisões, da corrupção, da destruição da Amazônia, da degradação dos homens que nos desgovernam”.

O que considera “a mais angustiante crise de nossa História”, Ricupero vê agravada “pelo advento de um governo retrógrado, cujo único programa reside na demolição sistemática do passado”.

Mas, o pior, analisa o ex-ministro Rubem Ricupero, é que “perdemos a esperança, isto é, a confiança de que o futuro nos trará remédio às agruras do presente, da mesma forma que antes o presente costumava superar problemas do passado”. 

Capitão provoca a febre e reclama do termômetro

Chefe da maior fábrica de crises do Brasil, instalada no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro especializou-se na produção de instabilidade política. Fornece ao mercado uma insegurança que desestimula investimentos e retarda a recuperação da economia. Nesta sexta-feira, o presidente queixou-se da forma como os jornais noticiaram o crescimento econômico miúdo (0,4%) do segundo trimestre.


Responsável pela febre que retarda a saída da crise, Bolsonaro implicou com o termômetro. Insinuou que os editores de Folha, Estadão e Globo formaram um conciliábulo para injetar pessimismo nas machetes: "Tudo combinado", disse o presidente aos repórteres, na saída do Alvorada. "O editor tem de aprender. Pelo menos não combina, pega mal. Não tem o que falar, não tem o que criticar. É obrigado a criticar. Então, tem o 'mas'".

Perguntou-se a Bolsonaro se ele considera que o pulinho de 0,4% registrado pelo IBGE no segundo trimestre é um crescimento acelerado. O capitão deu o braço a torcer: "Não é rápido. É lógico que é lento, a economia é igual a um transatlântico. Até na nossa casa, quando o pessoal está endividado aí, é devagar. É complicado recuperar".

O que espanta é a capacidade de Bolsonaro de criar do nada as crises que tornam mais lento o que já caminha devagar. A visão turva impede o presidente de enxergar o óbvio: a imprensa não é sócia da fábrica de crises do Planalto. Apenas leva às gôndolas a mercadoria que o governo fornece. Se, de repente, por milagre, o Planalto começar a produzir serenidade, as manchetes mudarão de assunto instantaneamente. Sem a necessidade de combinações.

O que é pior neste governo

Muitas características fazem, do governo atual, ímpar. Gosta de romper com políticas de Estado consolidadas há décadas, por exemplo. Tem dificuldades de lidar com os limites constitucionais impostos ao Poder Executivo. Não se envergonha de nepotismo e tem orgulho de ser obscurantista. Mas, quando passar —e todo governo passa —, uma destas características poderá custar muito, muito caro ao Brasil. É o obscurantismo. Ou, em outras palavras, a repulsa à ciência.

A repulsa à ciência aparece de muitas formas. Quando ministros põem em dúvida aquilo que é consenso entre cientistas, como as mudanças climáticas, é um caso. Ou, então, quando o governo enxerga ideologia em números do IBGE, do Inpe, certamente outros exemplos virão. De uma forma mais ampla, porém, esta recusa da ciência põe em perigo o futuro econômico do Brasil. De duas formas.


A era digital, na qual entramos, é em essência aerada matemática. Os dois braços de avanços tecnológicos nos quais estamos mergulhando —em biotecnologia e em inteligência artificial —têm por pedestal uma matemática muito sofisticada. É ama temática do DNA e ama temática por trás dos softwares capazes de aprender.

Não bastasse, a conclusão de que vivemos um tempo de violentas mudanças climáticas se baseia em modelos matemáticos.

Nunca o Brasil precisou tanto de gente que conhece em profundidade matemática. E isso ocorre justamente quando temos um presidente da República que encontra, nos números, ideologia.

É em cima de conhecimento matemático que produziremos o PIB do futuro. É com base nele que temos a oportunidade de deixar de ser um exportador de commodities e cérebros para nos tornarmos cultivadores de cérebros e exportadores de tecnologia.

Nunca foi tão importante pegar instituições como o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), as melhores universidades federais, estaduais e as PUCs e botar, nelas, todo gás. Concentrar nelas o melhor investimento.

Jamais foi tão relevante pegar experimentos como as Olimpíadas da Matemática e expandi-los, para que possamos descobrir desde cedo as melhores cabeças entre os brasileiros mais pobres, para que possamos —enquanto melhoramos o ensino público —pescar essa garotada e já dar ensino de excelência para eles desde cedo. Precisamos de qualidade em quantidade.

É a recusa dos números em plena era dos números que faz este governo olhar para a Amazônia e nela enxergar terra para pasto, para soja e minas diversas. Não vê a biodiversidade, a riqueza genética, a indústria farmacêutica do futuro, os bilhões e trilhões em patentes. Não se toca dos ciclos das chuvas, ignora que inteligência artificial em conjunto com edição genética permite produzir muito mais com muito menos terra.

Ao invés de promover o encontro entre iniciativa privada e professores universitários, de quebrar o preconceito da academia brasileira com o capitalismo do século XXI, o governo estimula o ódio à educação. Quando podia estar criando formas de estimular a geração de patentes e eliminar a burocracia para seu registro, tornar pesquisadores os grandes propulsores da nova riqueza nacional, o Planalto obscurantista os torna inimigos e, em estudantes, enxerga idiotas úteis.

O Vale do Silício existe por causa da Universidade de Stanford. Boston é um hub tecnológico por conta de Harvard e MIT, e Austin está chegando por causa da Universidade do Texas. A China investiu em formar matemáticos e hoje briga com os EUA. A Coreia do Sul. Quantos anos mais perderemos?

Em tempo: senhor presidente, diferentemente do que o senhor sugeriu e sua máquina de memes espalha, jamais fiz qualquer palestra para o governo federal. Muito menos pago pelo PT.

Brasil social liberal


Transformar Amazônia em dinheiro súbito não é próprio de verdadeiros empresários e governos

A transformação da questão ambiental em vômito de ignorância no templo da natureza preocupa a parte humana do mundo cujo cérebro não foi corroído pelos gases tóxicos da voracidade incondicional de lucros incendiários. Os obtidos à custa do presente e do nosso futuro. Justificar a transformação da Amazônia em dinheiro súbito, porque o país se tornou um entreposto de commodities, não é próprio de verdadeiros empresários e menos ainda de competentes governos. O tempo do desenvolvimento econômico e social não é o tempo do imediato, é o tempo histórico da prudência. Sem consciência do futuro, o atual é pressa tola.

No Brasil, no entanto, não é incomum que o governo e as autoridades, que devem fiscalizar e reprimir os crimes e as atividades antissociais, tenham sempre uma desculpa para o indesculpável. É o caso em relação às queimadas destrutivas do meio ambiente. Este é um momento particularmente significativo dessa violação do dever governativo.


Quando governantes acham que consumir o meio ambiente com a motosserra e as chamas é lícito, para assegurar os ganhos dos poucos em prejuízo dos muitos, e que disso depende o PIB, confessam que o dinheiro de poucos é mais importante do que a vida de todos. Quando dizem que o trabalho escravo, um item amazônico, não é escravo, confessam que a liberdade não é um valor essencial desta sociedade. O que dessa liberdade faz mera liberdade condicional.

Quando proclamam e asseguram que possam armar-se os que quiserem, especialmente no meio rural, onde é alta a violência dos que podem contra os que não podem, revogam o princípio de que é das Forças Armadas o monopólio da violência, para cumprir as leis e assegurar os direitos de todos. E os da própria nação, como sujeito coletivo da nacionalidade.

Os problemas destes dias são apenas a ponta flamejante de um conjunto de desorientações conexas que nos põem aquém da civilização. Estamos no rumo da desordem e da barbárie. Adeus, ordem e progresso.

Bravata e ignorância não resolvem problemas sociais e problemas ambientais. Além dos prejuízos econômicos que no curto prazo acarretará, a conduta brasileira em relação à questão ambiental afetará o setor produtivo, do lucro ao emprego. A desorientação do governo indica uma inclinação que, pelas consequências possíveis, poderá ser interpretada como genocida.

A pátria está em perigo. Atualizando a palavra do botânico Saint-Hilaire, que conheceu o Brasil inteiro como ninguém antes de o Brasil ser independente: ou o Brasil acaba com a saúva da criminalidade ambiental, ou a saúva da criminalidade ambiental acaba com o Brasil.

O empresariado brasileiro, não só o do agronegócio, tem não só o direito, mas o dever de se insurgir contra os negocistas desse novo capitalismo, o neocapitalismo do prejuízo que lhes virá. Capitalismo só vale um: o do lucro com responsabilidade social. O capitalismo é um sistema político de coadjuvantes, não só quem investe e lucra, mas também quem ajuda e quem trabalha. Ao que parece, é possível ganhar muito dinheiro, rapidamente, com a mentalidade anticapitalista desse neocapitalismo emergente, o do lucro de hoje no lugar do lucro de sempre.

A ignorância palavrosa produziu em poucas horas, nestes dias, para o capitalismo brasileiro, um retrocesso e um prejuízo cujo tamanho não será indicado pelos índices da bolsa. O liberalismo econômico de botequim gera uma democracia de bêbados, mas não supre nem sustenta a carência de inteligência e de prudência política e governativa.

Essa espécie de pacto com satanás, de que nos fala Guimarães Rosa, que disso soube como capanga de Manuelzão para aprender as coisas do sertão, como a que se esconde na ambição de dinheiro e de poder, é coisa de gente que não enxerga o que faz.

Disso, ouvi muito nos sertões do Brasil central, caboclos me demonstrando, tim-tim por tim-tim, cumaé que o coisa ruim, o pactário de encruzilhadas e cemitérios, ensina o muito do poder de ganhar em troca da alma do vivente, o prejuízo do finalmente. Mesmo quem não sabe que fez o pacto, está nele em pensamento, palavras e obras. O dinheiro existe para ser possuído e usado, e não para possuir as pessoas que o usam.

Aqueles que se omitem e debocham dos dramas do mundo, em nome do dinheiro fácil, parecem não saber dessas coisas e de seus silêncios ruidosos. Cada árvore tombada e queimada indevidamente, pensando o queimador que o que é de todos é só daquele um, é um ponto a mais para a cota de azeite fervente no tacho em que penam os que mandam derrubar a mata para endinheirar-se. Quando chegar a hora quente dos confins e dos confinamentos, o muito dinheiro não vai refrigerar o modo anticapitalista de ganhar e de gastar. É só esperar.

Besteirol de morte

Só existe maldade, onde há, ao menos, um toque de besteira
Antônio Maria

Por que a floresta amazônica pode se tornar foco de crise entre Bolsonaro e a Igreja

No último domingo, o papa Francisco falou sobre os incêndios na Amazônia, antes de rezar o Angelus com os fiéis na Praça de São Pedro, no Vaticano. "Estamos todos preocupados com os grandes incêndios que se desenvolveram na Amazônia. Oremos para que, com o empenho de todos, sejam controlados o quanto antes. Aquele pulmão de florestas é vital para o nosso planeta", disse o chefe máximo da Igreja Católica.

O discurso do papa tocou em um assunto que é motivo de preocupações a 8.901 quilômetros dali, no Palácio do Planalto, em Brasília. A repercussão internacional das queimadas ao longo da semana passada reavivou no governo de Jair Bolsonaro (PSL) a preocupação com possíveis críticas ao governo brasileiro no Sínodo da Amazônia.

Trata-se de uma reunião de bispos dos países da região amazônica com o papa Francisco para discutir a atuação da Igreja Católica na área.

O encontro acontece de 6 a 27 de outubro, em Roma. Participarão do encontro 102 bispos de nove países, sendo 57 brasileiros. Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Venezuela e Guiana Francesa (departamento ultramarino da França) também enviarão representantes.

Um revés no Sínodo contribuiria para aumentar o desgaste internacional do país. Nos últimos dias, a atuação do governo brasileiro na área ambiental foi criticada por líderes estrangeiros. A crise na Amazônia foi debatida no último fim de semana na reunião do G7, fórum que reúne algumas das maiores economias do mundo.

No começo desta semana, o Itamaraty decidiu suspender as férias de todos os embaixadores brasileiros na Europa e em países que integram o G7. Trata-se de um esforço para responder à crise de imagem provocada pelas queimadas, segundo a agência de notícias Reuters.

Na semana passada, o governo brasileiro despachou para a Itália o novo embaixador brasileiro junto à Santa Sé, o diplomata de carreira Henrique da Silveira Sardinha Pinto - o nome dele foi aprovado pelo plenário do Senado em meados de junho. O diplomata foi instruído a tratar da questão do Sínodo com representantes do Vaticano.

O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, falou sobre o tema ao jornal O Estado de S. Paulo, no começo desta semana. Segundo Heleno, o governo espera que o encontro se limite a questões religiosas - sem fazer críticas a governos específicos ou a políticas públicas dos países da região.

"A nossa expectativa é de que não haja problema para o governo e nem nenhum desentendimento com a Igreja", disse Augusto Heleno ao jornal O Estado de S. Paulo. "Nós temos promovido ótimas reuniões com o Sínodo, não só aqui, mas em Roma, e está se encaminhando para se ter uma atividade dentro do que foi previsto, que não vai exceder os limites do que a Igreja se propôs a fazer. É o que nós esperamos."

O Brasil é o país com a maior população católica do mundo - e embora a porcentagem de evangélicos tenha crescido nos últimos anos, os católicos ainda são maioria. No Censo de 2010, 64,4% dos brasileiros disseram seguir a Igreja Católica. Críticas vindas da Santa Sé costumam repercutir politicamente no Brasil.

Apesar da expectativa de Heleno, o documento preparatório para o Sínodo aborda pontos incômodos para o governo. Chamado oficialmente de "Instrumentum Laboris", o texto de 146 pontos menciona os termos "governo" e "governos" dez vezes. Foi elaborado com consultas às comunidades da região - inclusive com o auxílio de uma organização ligada à Igreja, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Segundo o documento preparatório, as comunidades amazônicas consideram como principais ameaças a seu modo de vida a chegada de madeireiras (legais e ilegais); o assassinato de seus líderes, a caça e a pesca predatórias, a contaminação gerada pelo garimpo e os grandes projetos de infraestrutura - rodovias, ferrovias, portos, entre outros pontos.

"Segundo as comunidades participantes nesta escuta sinodal, a ameaça à vida deriva de interesses econômicos e políticos dos setores dominantes da sociedade atual, de maneira especial de empresas extrativistas, muitas vezes em conivência, ou com a permissividade dos governos locais, nacionais e das autoridades tradicionais (dos próprios indígenas)", diz o ponto 14 do texto, que foi divulgado em meados deste ano.

Henrique da Silveira Sardinha Pinto, o diplomata que representará o Brasil junto à Santa Sé, falou sobre o assunto em sua sabatina na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, no fim de maio.

"O Itamaraty, sim, tem se interessado pelo assunto, tem feito contatos em alto nível na Santa Sé para manifestar a nossa preocupação, o nosso interesse pelo resultado do trabalho que vai ser levado a efeito em Roma. Aguardamos, portanto, com interesse esse resultado", disse ele aos senadores, na ocasião.

"A percepção é a de que nós consideramos que se trata de um evento importante, que chama a atenção do governo, sobretudo, na fase preparatória, na fase mais de base da preparação dos documentos havia conceitos e ideias que preocuparam o governo brasileiro. Isso foi certa forma já expresso por algumas de nossas autoridades", afirmou ele.

Segundo Paulo Fernando Carneiro de Andrade, professor do departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio, o sínodo é uma instituição bastante antiga da Igreja. É uma reunião realizada pelo papa com seus bispos de determinada região ou tema, para definir uma estratégia para a Igreja num determinado assunto. É um encontro mais restrito que um concílio - que abrange bispos do mundo todo.

"O papa Francisco tem reforçado a necessidade de termos uma igreja mais sinodal, isto é, com mais participação dos bispos na orientação da igreja", diz ele, que concluiu o doutorado em Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.

A palavra "sínodo" vem de dois termos gregos: "syn", que significa "junto" e "hodos" - "estrada", ou "caminho". Desde que assumiu o comando da Igreja, em março de 2013, Francisco já realizou dois sínodos: um dedicado à família (2015), e outro aos jovens (2018).

De acordo com Andrade, a realização de um sínodo sobre a Amazônia é coerente com os temas dos quais Francisco tratou em sua carta encíclica Laudato Si' ("Louvado Sejas", em italiano). O subtítulo do texto é "Sobre o cuidado da casa comum". No texto, o papa critica uma busca irresponsável do desenvolvimento econômico e o consumismo exagerado - e faz um apelo contra a degradação ambiental e pela luta contra a mudança climática.

"Normalmente, o sínodo segue esta estrutura: ele parte de um documento de trabalho, o 'Instrumentum Laboris', e é concluído com uma série de recomendações, que dizem respeito à atuação da Igreja. O papa pode responder com uma carta apostólica, por exemplo", diz Andrade. Sugestões feitas durante sínodos resultaram em medidas importantes nos papados de Paulo 6º (1963-1978), hoje canonizado, e de João Paulo 2º (1978-2005), acrescenta ele.

Além de questões sociais mais amplas, o sínodo sobre a Amazônia também tratará de questões organizativas da Igreja. Um dos pontos mais polêmicos é a possibilidade de ordenar como padres homens mais velhos, especialmente indígenas - mesmo que sejam casados - em regiões remotas. O celibato, isto é, a abstenção de relações sexuais, é exigida dos sacerdotes católicos.

Segundo Paulo Suess - teólogo e padre de origem alemã que foi secretário-geral do Cimi - o Sínodo está focado em questões da organização da Igreja na Amazônia. O protestantismo têm crescido na região, diz ele, e por isso é preciso que os católicos reforcem sua presença entre as comunidades locais.

"Precisamos de uma descentralização urgente, e não é a tecnologia que vai resolver isso. É a multiplicação dos ministérios (pessoas com funções dentro da religião). Se colocamos muitos obstáculos para o acesso aos ministérios, o resultado é que teremos poucos ministros. Isso abre caminho para grupos protestantes que, às vezes, agem sem qualquer respeito pela cultura dos povos", diz ele, que é hoje assessor teológico do Cimi.

O cientista social Luis Ventura é um dos coordenadores do Cimi na região Norte do país - e participou do processo de audiências para o Sínodo. Segundo ele, a consulta às populações amazônicas se estendeu de meados de 2018 até março de 2019. Ao todo, mais de 200 encontros foram realizados em vários países amazônicos.

Segundo ele, o governo federal se reuniu com os responsáveis pela organização do Sínodo em várias ocasiões. "Nunca teve nenhuma negativa (a conversar com as autoridades)". "O sínodo não é convocado para atacar nenhum governo. Foi convocado em 2017. Mas quando a Igreja pensa na sua forma de organização e de presença (na Amazônia), não faz isso de forma distante da realidade. Ela olha para a realidade e para os desafios que estão postos", diz Ventura.

As raízes da teoria de conspiração militar em torno da Amazônia

“No Brasil (…), muitos oficiais experientes das Forças Armadas continuam incomodados sobre as questões ecológicas porque eles tendem a associar a defesa do meio ambiente a partidos políticos de esquerda. Ativistas do meio ambiente são ocasionalmente tratados por militares como ‘melancias’, verdes por fora e vermelhos por dentro. Muitos comandantes experientes também se queixam com frequência do que eles enxergam como uma tentativa de governos estrangeiros e ONGs controlarem a exploração dos recursos naturais e ditar políticas públicas por meio de tratados ambientais internacionais ou diplomacia.” 
O trecho acima poderia ter sido retirado de um discurso elaborado por um assessor do presidente Jair Bolsonaro em 2019. Mas se trata da transcrição de um relatório de Inteligência da CIA, o órgão de investigação do governo dos Estados Unidos, sobre a relação dos militares na América Latina com o meio ambiente, redigido há mais de 20 anos, em setembro de 1997, e cujo sigilo foi levantado em 2011.

De lá para cá, pouca coisa mudou no que pensam os oficiais sobre a política global de defesa do meio ambiente. As ofensas públicas do presidente Bolsonaro a Emmanuel Macron e a resposta dos militares à declaração do presidente francês de que a Amazônia é “nossa casa” e seus problemas “dizem respeito” a todos expõem duas ideias há muito propagadas dentro das Forças Armadas: 1) a Amazônia é um território que atrai a cobiça mundial; 2) as exigências ambientais hoje impostas pelos países desenvolvidos são subterfúgios para minar a competitividade dos produtos brasileiros. Outra ideia recorrente é que a concessão de terras às diferentes etnias indígenas que habitam o bioma pode resultar em uma quebra de soberania, caso esses povos resolvam se tornar nações independentes.

O general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante-geral do Exército e assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), rebateu de forma dura o que interpretou como um impropério: “Com uma clareza dificilmente vista, estamos assistindo a mais um país europeu, desta vez a França, por intermédio de seu presidente, Macron, realizar ataques diretos à soberania brasileira”. O general Augusto Heleno, ministro do GSI, reforçou as críticas: “Querem frear nosso inevitável crescimento econômico. Filósofos de barzinho, e até chefes de Estado, que jamais estiveram na Amazônia, propagam suas teses insustentáveis”.


O general Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo, criou uma conta no Twitter para expor sua opinião: “O presidente francês é absolutamente desqualificado para fazer a observação imprópria que fez. A reação brasileira precisa ser contundente em todas as áreas possíveis”. Já o vice-presidente, Hamilton Mourão, referiu-se ao “ecorradicalismo” como “a velha ambição disfarçada por filantropia de fachada”, numa insinuação de que investimentos de países na Amazônia teriam como função maquiar um interesse de quebra da soberania. O atual comandante-geral do Exército, Edson Leal Pujol, que não costuma dar declarações públicas, avisou: “Aos incautos que insistem em tutelar os desígnios da brasileira Amazônia, não se enganem”.

Há diferentes explicações para a origem do pensamento militar, com certo viés conspiratório, de que há uma ameaça à soberania brasileira na Amazônia em razão de investidas retóricas de outros países. O primeiro é o aspecto histórico. Desde o Descobrimento, a região amazônica atraiu a atenção de colonizadores das mais diversas potências do século XVI, com corsários holandeses, franceses e ingleses tentando estabelecer ali zonas de influência. A assinatura do Tratado de Madri, em 1750, que determinou os limites das terras portuguesas e espanholas no oeste amazônico, ajudou a controlar o ímpeto de colonização de outras nações europeias até o barão do Rio Branco concluir, mais de um século depois, a costura fronteiriça da Região Norte com franceses e ingleses. O interesse internacional, contudo, sempre se manteve vivo. Ao longo do século XIX, no auge da Doutrina Monroe (“A América para os americanos”), os Estados Unidos pleitearam junto a Dom Pedro II a navegabilidade internacional dos rios amazônicos, o que diplomaticamente foi descartado pelo monarca.

No curso da história, após o Tratado de Madri, o governo brasileiro lidou com os questionamentos sobre a Amazônia e as ameaças à soberania por meio da via diplomática e aplicando o princípio da dissuasão, conforme mostra o livro do embaixador Synesio Sampaio Goes Filho, "Navegantes, bandeirantes, diplomatas", publicado pela Fundação Alexandre de Gusmão. Na teoria militar, dissuadir consiste em intimidar possíveis adversários com a criação de sistemas de defesa e inteligência que imponham alto custo a uma ofensiva. Quando o embaixador dos Estados Unidos comparecia a audiências com Dom Pedro II e afirmava desejar tratar da navegação internacional pelo Rio Amazonas, o monarca respondia: “Esse assunto não consta de nossa pauta”. Isso era entendido como sinal de dissuasão.

A inclemência da vida na selva também funcionou historicamente como repelente do interesse externo, sobretudo após a construção, pelos ingleses e americanos, da Ferrovia Madeira-Mamoré, no final do século XIX, que ligava o Amazonas a Rondônia. Consta dos registros da época que mais de 30 mil trabalhadores de dezenas de nacionalidades foram vítimas de doenças como malária e febre amarela, além de terem sofrido ataques de tribos indígenas.

Para os militares, as formas de conter as ameaças ao território amazônico foram o povoamento e o desenvolvimento da região, além, sobretudo, de sua interligação com o resto do país. Não à toa, em que pese a saraivada de críticas ambientalistas, uma das principais frentes do desenvolvimentismo militar no período da ditadura foi a construção das rodovias Transamazônica, Belém-Brasília e Cuiabá-Santarém, projetadas para rasgarem o território em toda a sua extensão.

Detalhes dessa política foram minuciosamente descritos em relatórios de Inteligência da CIA enviados ao governo americano em 1972, cujo sigilo foi levantado em 2012. Os objetivos eram faraônicos: 9 mil quilômetros de estrada, 500 mil pessoas assentadas, criação de “agrovilas” em que famílias receberiam terra para plantar, além de sementes, ferramentas, orientação técnica e um salário mínimo por cinco meses. Os preços dos grãos colhidos também seriam prefixados pelo governo por dois anos, e a posse temporária da terra daria direito, ainda, a uma linha de crédito. Cada agrovila comportaria 50 famílias — e 20 agrovilas formariam um centro urbano atendido por escolas, hospitais e outros serviços públicos. A única premissa para que se conseguisse a licença e o crédito era “plantar”. E, para plantar, seria preciso desmatar e queimar.

Sob o escopo da Fundação Nacional do Índio (Funai) ficariam a assistência às comunidades indígenas e sua integração aos polos urbanos que seriam criados. Os incentivos fiscais direcionados ao projeto caberiam à Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). A FAO, agência das Nações Unidas para a Agricultura, ajudaria na orientação técnica. O Banco Mundial, no financiamento das plantações. O relatório da CIA mostra otimismo quanto à construção da infraestrutura, mas ceticismo sobre o projeto agrícola na Amazônia. “Parece que o governo tem a capacidade de levar adiante o plano de rodovias, mas ainda é muito cedo para prever o sucesso dos objetivos do plano de colonização”, diz o documento.

À época, o governo militar foi criticado por ter autorizado as obras sem estudo de viabilidade econômica e pelo fato de as principais rodovias ligarem duas regiões consideradas pobres: Norte e Nordeste. O general Rodrigo Octávio, comandante-geral da Amazônia em 1968, foi um dos líderes do projeto de integração e um dos militares mais entusiasmados com a questão amazônica. Uma frase de sua autoria foi proferida pelo presidente Jair Bolsonaro durante o bate-boca com seu colega francês. “Árdua é a missão de desenvolver e defender a Amazônia. Muito mais difícil, porém, foi a de nossos antepassados de conquistá-la e mantê-la”, afirmou. O general Octávio, contudo, perdeu o prestígio nas Forças quando começou a falar sobre a necessidade da volta da democracia. Foi tirado de postos-chaves e terminou como ministro do Superior Tribunal Militar (STM), onde defendeu a derrubada do Ato Institucional nº 5 e a volta dos poderes dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Não foi atendido ainda em vida.

O povoamento e a exploração da Amazônia pelo regime militar ocorreram em paralelo a um movimento mundial precisamente oposto, de defesa da ecologia. As primeiras pesquisas científicas, ainda na década de 60, já começavam a apontar problemas como o efeito estufa e a poluição. Essa mudança de ânimo não só deu origem a “partidos verdes” pela Europa, como também serviu de estímulo à entrada de grupos de pesquisa e organizações não governamentais de defesa do meio ambiente e da causa indígena em território amazônico. O tema ecologia se impôs na ONU, que se viu pressionada a agir. A Assembleia-Geral das Nações Unidas examinou o assunto pela primeira vez em sua reunião de 1968, quando os projetos rodoviários na Amazônia estavam de vento em popa. O segundo passo foi convocar a primeira conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente, realizada em Estocolmo, em 1972. Houve então um consenso de que todos os países deveriam incutir em seus arcabouços legislativos e institucionais a preservação do meio ambiente. A questão da Amazônia aparece com destaque, e a delegação brasileira, chefiada pelo ministro do Interior, general Costa Cavalcanti, mostrou-se disposta a dialogar, oferecendo-se para sediar a próxima conferência da ONU sobre o tema, que ficou conhecida como Eco-92. Entrava em voga naquele período a tese de que o território era patrimônio da humanidade. Essa abordagem alimentava o grande pesadelo dos militares, a “internacionalização da Amazônia”.

Ao longo da década de 80, a pressão internacional pela preservação do bioma e das terras indígenas se acirrou, com imagens de queimadas tomando o noticiário. Também impactaram a opinião pública mundial os resultados da liberação do garimpo em Serra Pelada, no Pará. Os movimentos indigenista e ambientalista ganharam tal proporção que abaixo-assinados foram feitos na Europa e nos Estados Unidos para que a Constituição de 1988 contemplasse a questão da terra indígena — o que foi visto tanto por militares como por parte da esquerda como uma tentativa de ataque à soberania travestido de defesa da causa dos índios.

O deputado Jarbas Passarinho, ex-ministro do governo militar, foi um dos patrocinadores do artigo 231 da Constituição, que prevê os direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, “competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Já os militares defendiam a tese de que os povos considerados “aculturados”, ou seja, já integrados à cultura local, não poderiam ser contemplados com pedaços territoriais — que terminou derrubada do texto constitucional.

O fracasso da política de desenvolvimento da Amazônia é visto pelos militares como resultado da pressão ambiental internacional, de leis ambientais mais rígidas e da corrupção que permeou o trabalho da Sudam, que concentrava os incentivos à região. Reclamam ainda que o plano de integração feito pelo regime foi paralisado, engavetado e nada foi colocado no lugar. No final da década de 90, outro relatório da CIA sobre meio ambiente no Brasil apontava que, desde a década de 60, um território maior que a França havia sido desmatado dentro da Amazônia.

Hoje, os militares dentro e fora do governo defendem ideias não muito diferentes daquelas dos anos 60. Querem que o Brasil lidere o processo de desenvolvimento da Amazônia e a assistência aos indígenas, além de fiscalizar o trabalho das organizações não governamentais que estão no local. São defensores ainda de que se faça uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre as ONGs da Amazônia. Dizem que não há país no mundo que tenha preservado seu território nativo como o Brasil e que as populações indígenas deveriam ser orientadas a plantar e trabalhar em cooperativa.

Causa incômodo específico aos militares a conexão direta que certos povos indígenas têm com lideranças internacionais. Como certa vez, quando o general Villas Bôas era comandante-geral da Amazônia, em 2013, e soube que o rei Haroldo, da Noruega, visitava o território ianomâmi sem que o Exército tivesse sido avisado. Classificou a situação como exemplar da ameaça de soberania na região.

O temor territorialista se soma a um sentimento de pertencimento em relação à Amazônia muito cultivado no meio militar. “Selva!” é o cumprimento informal entre oficiais que servem na região — e persiste mesmo depois de deixarem os batalhões da floresta, como forma de mostrar que passaram por lá. Quando um oficial se forma na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende, Rio de Janeiro, os primeiros colocados da turma têm o direito de escolher para qual batalhão querem ir. O da Amazônia é, por tradição, o mais disputado. O curso de “guerra na selva” também é considerado um dos mais cobiçados pelos cadetes. Ser comandante-geral da Amazônia é caminho natural para o general que almeja o posto de chefe do Exército. Pesou para que a então presidente Dilma Rousseff escolhesse Villas Bôas como comandante seu desempenho na Amazônia — em especial seus esforços diplomáticos para solucionar situações conflituosas com indígenas.

Enquanto a tendência mundial no mundo militar é a redução de efetivo e a incorporação de tecnologia, no Brasil o caminho é inverso. Existe grande necessidade, nos grotões do país, do trabalho assistencial de oficiais e praças. A chamada “estratégia da presença” é forte sobretudo na Amazônia, em que o Exército tende a ser o único representante do Estado nas áreas mais isoladas. Militares acreditam que foi essa característica que reatou parte das pontes com a sociedade que haviam sido rompidas com a ditadura.

Ao travar uma guerra retórica com a Europa sobre a Amazônia valendo-se da premissa de eventual perda de soberania, o governo brasileiro, apoiado pelos militares, reacendeu o caráter antipreservacionista do Brasil, tão alardeado nas décadas de 80 e 90 e, posteriormente, superado. O economista, ex-ministro e ex-embaixador Roberto Campos, ao responder aos questionamentos conspiratórios sobre os interesses estratégicos dos Estados Unidos na Amazônia, costumava desdenhar: “Tem gente que diz que os americanos querem vir para a Amazônia, mas eles já foram até para a Lua e não vieram para a Amazônia!”. Franceses e alemães, também.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

E o Brasil virou hamburguer

A gente vai ficar aceitando fundo de Amazônia e continuar se prostituindo em nome disso? Aqui é o Brasil, aqui quem manda somos nós. Se quiserem continuar depositando, que continuem. Se não quiserem, um abraço
Eduardo Bolsonaro, deputado (PSL) nascido para a diplomacia

Bolsonaro e Amazônia: crise anunciada

Mais cedo ou mais tarde a coisa iria estourar, todo mundo sabia. E eis que chegou a hora. A Floresta Amazônica está queimando, e Jair Messias Bolsonaro é alçado à condição de vilão ecológico global. O país vizinho, a Bolívia de Evo Morales, também está queimando. Mas ele apaga, ao invés de ficar disparando declarações insolentes e culpando primeiramente as ONGs e depois os indígenas ​pelo incêndio. Embora todos saibam que são os fazendeiros, que gostam de Bolsonaro, que queimam a floresta para abrir novas pastagens.

O mundo tem medo da mudança climática e não consegue entender como é possível queimar uma preciosa floresta para deixar que um boi por hectare paste no lugar durante dois anos. Antes que o solo se torne então inutilizável e uma nova porção de floresta tenha que ser derrubada. Claro, a Europa gosta de grelhar carne brasileira e alimentar seu rebanho com soja da Amazônia. Mas sua produção deve ser sustentável, caso contrário, a Europa perderá sua credibilidade.


Credibilidade, aliás, é coisa que Bolsonaro sequer tem no exterior. Lá, todo mundo sabe que, em 28 anos como deputado, o que ele fez foi principalmente insultar seus adversários políticos. Ele continua fazendo isso agora, e a última que sentiu isso na pele foi a senhora Brigitte Macron. O mundo sabe que Bolsonaro não tem bons modos e que ele até se orgulha disso. Mau comportamento faz parte de seu programa, e com isso ele ganhou todas as eleições a que se candidatou. Isso também não deixa de ser uma proeza.

Falta de bons modos como estilo político pode fazer sucesso, e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, pode em breve até conseguir fechar relativamente bons acordos com China, Coreia do Norte e Irã. Mas Trump, como o homem mais poderoso do país mais poderoso, pode se dar ao luxo de ser um grosso. Mas Bolsonaro? É provável que os europeus descontem nele, o "Trump tropical", sua frustração com o verdadeiro Donald Trump. Este, eles não conseguem pegar, por isso agora pegam a cópia.

E, nesse caso, Emmanuel Macron parece estar fazendo o papel do policial durão, que ataca severamente Bolsonaro. Angela Merkel é a policial boazinha, que tenta trazer Bolsonaro de volta ao barco da parceria civilizada através de conversa e contratos. Mas isso só vai funcionar se o setor agrícola do Brasil, por medo de boicote, colocar pressão suficiente em Bolsonaro. Mas será que ele é sensível a pressão – seja do exterior ou do interior?

Muitos também acreditavam que os superministros Sergio Moro e Paulo Guedes domariam Bolsonaro. O que ocorre é diferente, ambos aguentam de boca fechada os ataques do chefe. Guedes, por acaso, sai do governo quando Bolsonaro matar o acordo UE-Mercosul com suas falas mal-humoradas? E será que Moro sai se Bolsonaro continuar interferindo em suas competências?

Quem ou o que pode fazer com que Bolsonaro busque soluções políticas racionais? Como é possível levá-lo a um consenso construtivo? As ameaças de Macron sobre uma internacionalização da Amazônia são apenas água nos moinhos da paranoia brasileira de que outros países estariam querendo roubar a Amazônia. Por outro lado, não dá para deixar que paranoicos simplesmente façam tudo o que dá na telha, todo enfermeiro sabe disso.

De qualquer forma, interessantes são os reflexos nacionalistas, com afirmações de que não se pode deixar que outros se intrometam em assuntos internos brasileiros como a Amazônia. Não muito tempo atrás, Bolsonaro xingou os esquerdistas na Argentina que sequer foram eleitos. Ele e seu filho Eduardo, que xingou Macron de idiota e está prestes a se mudar para os Trumps como uma espécie de "embaixador au pair", também gostam de fazer campanha gratuita para "Trump 2020". E para o Benjamin Netanyahu, de Israel.

Também na crise de Estado venezuelana, os Bolsonaros já se intrometeram, sussurrando sobre opções militares a partir de solo brasileiro. Eduardo até falou em processar o regime de Nicolás Maduro no Brasil. Isso só para tocar no tema da interferência nos assuntos de outros países. Mas pimenta nos olhos dos outros não arde, como se sabe.

Bolsonaro conseguiu em sete meses estragar o soft power que o Brasil tinha na política ambiental global. Por quê? Porque ele pode.

Pensamento do Dia


A ordem de mordaça do capitão

É absolutamente temerária e espantosa a conduta do capitão reformado Jair Bolsonaro que agora afronta sobranceiramente a lei, peitando sem o menor constrangimento instituições republicanas regentes da vida democrática no País. Ele despiu-se da fantasia de governar para todos. Assumiu de vez a condição de ditadorzinho de araque que quer ver atendidas suas vontades e adotou o lema do “mexeu com minha família, caço e arrebento”. Em poucos dias foi para cima da Polícia Federal, do Coaf e da Receita, atropelando instâncias, demitindo quem o contrariou e até liquidando pura e simplesmente com o funcionamento de alguns desses órgãos. Impôs a ordem da mordaça e tolheu investigações que avançavam sobre o clã familiar — não fosse suficiente já ter, anteriormente, despachado o fiscal do Ibama que o multou, o diretor do INPE que não maquiou números do desmatamento como ele queria e técnicos do IBGE que revelaram o avanço do desemprego. Messias está implacável em seu afã de calar vozes incômodas. Surpreendente que nesse pendor totalitário ele nem se preocupe mais em esconder, de ninguém mesmo, a sua intolerância a resistências, surjam elas de onde for. “Quem manda sou eu, vou deixar claro”, afirmou em um dos rompantes o tal “mito”, venerado por certos seguidores, para logo depois alegar que não é “presidente de banana”. No mandonismo desvairado deixa escapar uma latente insegurança ou, como definiu o ex-ministro Bebianno, mostra “complexos que ele traz do passado”. Também demonstra desprezo pelo profissionalismo ao resolver partir para o tudo ou nada contra aqueles que vinham, essencialmente, fazendo o seu trabalho. Não lhe interessa princípios como esse. Ou entra na linha, e aceita suas determinações e limites, ou fora. É clara a necessidade de autoafirmação e com a soberba aflorando, dia após dia, ele subiu um degrau na escala do caudilhismo. Não bastam mais apenas declarações estapafúrdias. É preciso aniquilar, perseguir abertamente supostos inimigos. A Receita Federal, no seu entender, fez uma devassa absurda na vida financeira da família, inclusive de tios, primos e parentes distantes. Resultado: vai sofrer as consequências. Deve ser fatiada em agências independentes com as portas abertas ao apadrinhamento em postos de comando, cujos nomes eventualmente serão escolhidos fora dos quadros de carreira. O Leão não pode mais “ferir” os interesses de autoridades constituídas – Bolsonaro à frente, além de juízes do Supremo, como Dias Toffoli e Gilmar Mendes, cujos cônjuges também foram, por razões justas (diga-se de passagem), alvo de averiguações. O titular da Receita no Rio de Janeiro, segundo na hierarquia geral, acaba de cair, até por ter permitido controles alfandegários rígidos no Porto de Itaguaí, alvo da cobiça de milicianos cujas supostas relações com a primeira família já foram questionadas. Seria por demais salutar em países civilizados, como se pretende o Brasil, uma ampla liberdade de atuação dos organismos investigadores e de controle. Ninguém deveria ou poderia se sentir à vontade para infringir a Lei em virtude de laços ou conexões com titulares do poder. Mas o mandatário não pensa assim. Parece reger seus atos por outra cartilha. No momento busca aparelhar tribunais, núcleos da polícia, repartições financeiras e tributárias, com seus apaniguados que, ele deseja, lhe prestem vassalagem, sem qualquer independência operacional. A bronca do capitão é maior com assuntos que envolvam os filhos. Eles podem cometer o erro que for, estarão mesmo assim livres de julgamento alheio, imunes. Bastou o Coaf se posicionar contra a decisão do STF de suspender consultas a sua base de dados para identificar corruptos e veio lá de cima a decisão de simplesmente varrê-lo do mapa. Isso mesmo: o Coaf acabou, deixará de existir nos moldes como funcionava. Deu lugar a outro bicho, controlado por instâncias superiores,não mais subordinado ao Ministério da Justiça. Passou ao ambiente fleumático do Banco Central com atribuições, digamos, mais burocráticas, sujeito até a injunções políticas. O que ocorreu de concreto? Seu titular, Roberto Leonel, criticou a ideia da necessidade de autorização judicial para que dados completos sobre as movimentações suspeitas de dinheiro, como no caso do laranjal do primeiro filho, Flavio Bolsonaro, fossem repassados ao Ministério Público. Tamanha “petulância” lhe custou não apenas a cabeça, colocada a prêmio e rapidamente substituída na semana passada, como o castigo da intervenção em toda a estrutura que pilotava. Então fica o aviso: em se tratando de casos passíveis de análise mais aprofundada para checar eventuais desvios, nos Bolsonaros ninguém mexe! Estão blindados. A Polícia Federal do Rio de Janeiro foi outra que se deixou cair na armadilha de incomodar o clã. Deixou correr solto o processo que investigava o citado laranjal do filho Flávio e o superintendente local foi defenestrado da chefia. Jair Bolsonaro queria no seu lugar um amigo dileto, transferido da Amazônia para lá. Veio a reação. Em boa hora. A PF barrou a indicação. Ensaiou um motim. Diretores e delegados ameaçaram entregar os cargos. O presidente refugou. Aceitou outro nome. Mas o clima segue pesado. Procuradores do Ministério Público também enviaram carta aberta com alertas sobre a escolha do novo titular da PGR. Repudiam o preferido do Planalto, de fora da lista tríplice disponível, pela limitada capacitação técnica. Corporações que até aqui se enfileiravam ao lado do chefe da Nação já desprezam abertamente seus métodos e questionam suas escolhas. Muitos começam a discutir se não cabe acusar, na Justiça, os possíveis desvios de conduta dele. Seria um passo para o impeachment. Decerto, o princípio da impessoalidade foi quebrado desde que Messias passou a se imaginar como alguém detentor de um poder supremo inquestionável, um monarca por excelência.

Indústria da tolice é a única que cresce com vigor

Num cenário em que as previsões apontavam para o risco de uma recessão técnica, com dois trimestres consecutivos de PIB negativo, o crescimento de 0,4% no segundo trimestre reduz a taxa de desespero do brasileiro. Os dados do IBGE trazem, aqui e ali, alguns sinais alentadores. Por exemplo: uma lenta recuperação de setores como o da construção civil e a indústria. Mas vale a pena ecoar as palavras do secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, um técnico sempre muito realista. "Não dá para soltar fogos", ele disse.


Do mesmo modo, é preciso realçar que há coisas boas acontecendo no Brasil. As reformas econômicas avançam no Congresso. E existe um pedaço da Esplanada dos Ministérios que carrega o piano do governo. Nesse núcleo, suam blusas e paletós ministros como Paulo Guedes, da Economia, Tarcísio de Freitas, da Infraestrutura, e Tereza Cristina, da Agricultura. São personagens que ajudam a impedir que o ruim se torne ainda pior.

Por último, nenhuma análise da conjuntura econômica seria completa se não levasse em conta o papel desempenhado por Jair Bolsonaro. Quando Bolsonaro tomou posse, projetavam-se taxas de crescimento acima de 2% para 2019. Hoje, a despeito do soluço do PIB no segundo trimestre, as previsões para o ano continuam rodando nas cercanias de 1%. Coisa ridícula. O único empreendimento que cresce vigorosamente no país é a usina de crises do Palácio do Planalto.

Em alguma medida, as crises tolas que o presidente fabrica em escala industrial contribuem para retardar a recuperação dos indicadores econômicos, entre eles os índices de desemprego. A demora custa caro. A economia mundial se deteriorou antes que o Brasil conseguisse exibir uma recuperação pujante. A insegurança que trava os investimentos diminuiria no país se, de repente, por milagre, baixasse no cérebro do presidente um surto de ridículo que o levasse a fechar a fábrica de tolices.

'Incêndios na Europa serão tão devastadores como os da Amazônia'

Marc Castellnou é chefe do Grupo de Ações Florestais (GRAF) dos Bombeiros da Catalunha e há anos trabalha como especialista da União Europeia na luta contra o fogo. Ele alerta que os grandes incêndios da Amazônia não podem ser combatidos somente com meios de extinção e que é preciso abordar uma mudança baseada na prevenção e na gestão da paisagem.

Na Amazônia foram registrados nesse ano 85% a mais de incêndios do que em 2018. Até que ponto isso é extraordinário?

O número de incêndios até agora não é excepcional, mas parece que pode ser até o final do ano. O mês de setembro ainda é faz parte da época de incêndios na região. Há dois ou três focos no Paraguai, Brasil e Bolívia que realmente queimaram muito; são tempestades de fogo que causaram danos de 120 quilômetros na selva e isso, sim, é extraordinário. Mas isso deve ser inserido em um marco mais global: o que acontece na África, Indonésia, Sibéria... e aqui vamos em direção a algo excepcional.

Em que consistem exatamente as tempestades de fogo?

Uma tempestade de fogo é um incêndio de sexta geração, fogos que têm capacidade de criar uma nuvem de tempestade que acaba mudando a meteorologia da região. O incêndio toma o controle da meteorologia da área afetada e não o contrário. São mais caóticos e imprevisíveis e podem chegar a queimar 400.000 hectares em dois dias. Sempre existiram, mas de forma muito excepcional. Agora tivemos três em poucos dias. Não é o que aconteceu nas Ilhas Canárias, mas se deu na Sibéria, Bolívia e Chile.

Esses chamados incêndios de sexta geração podem ser combatidos?

Podemos combater parte dos incêndios, mas não temos recursos materiais para combater todos esses incêndios. E, principalmente, não podemos combater certos níveis de intensidade. Presume-se que o limite é de 10.000 quilowatts por metro, e nessas condições as chamas queimam os bombeiros. Por isso, há um limite físico da capacidade de extinção.

Estamos em um momento de mudança socioeconômica e de mudança climática e precisamos encontrar a maneira de ajudar as matas a adaptarem-se ao clima. No sul do Brasil cortam florestas para plantar soja, uma soja que, é bom lembrar, nós europeus consumimos
Então só o que resta é a prevenção. Como pode ser abordada?

O que precisamos entender é que o que acontece na África e na Indonésia tem um fundo socioeconômico, o do desmatamento, o chamado slash and burn: corta, queima, cultiva e continua cortando e queimando. E isso é a origem desses incêndios. Há muitas regiões de florestas que já não se sustentam pelo clima que precisam suportar, estão estressadas. Os grandes incêndios ocorrem nas áreas de mudança do ecossistema: o limite central do Chile, a parte central de Portugal, o sul da Suécia e Noruega e a selva amazônica entre a selva pluvial e a selva seca... E não podemos esquecer que o Mediterrâneo é outra região de mudança.

A reunião do G7 do último final de semana situou pela primeira vez a questão dos grandes incêndios no topo da agenda política. Isso lhe dá esperanças de uma mudança real?

A solução do G7 não pode ser enviar recursos para apagar as chamas, e sim solucionar o problema socioeconômico desses países. O G7 reage a uma pressão social que há nos países ricos europeus e americanos em relação aos incêndios na Amazônia. Mas a Europa e a América têm incêndios tão grandes como os da Amazônia, que custam muitas vidas com intensidade extrema também consequência da mudança climática.

Então veremos na Europa incêndios das dimensões que estamos vendo na América do Sul?

A região centro-europeia tem verões cada vez mais longos e quentes com invernos moderados e úmidos, o que gera o coquetel perfeito para os grandes incêndios. Isso, que é um pouco o clima de Portugal, está se movendo para o centro da Europa e para a Costa Leste dos Estados Unidos, de modo que não podemos apontar ninguém. É um problema de todos. A Europa Central está ficando com um clima 'portugalizado' e o regime de grandes incêndios de Portugal ocorrerá nessa região. A Europa não tem consciência do problema que terá de lidar. A Espanha é um país com um centro vazio, estamos criando paisagens que queimam mais do que antes.

Ou seja, já não há regiões seguras.

Se a Groenlândia queimou por dois meses, me diga o que não pode queimar. Esses incêndios serão tão devastadores como na Amazônia e na Indonésia. Ocorrerão grandes incêndios na Floresta Negra alemã, os Pirineus podem queimar totalmente, o mesmo em toda a Escandinávia, nas grandes massas florestais das Rochosas e no Canadá. Não podemos apontar a América do Sul, a África e a Indonésia sem ver que em casa temos esses incêndios e que teremos incêndios tão devastadores como os que estamos vendo.

A política pode deter e provocar incêndios?

Proteger as florestas amazônicas deveria ser uma prioridade política global. Após os incêndios de 2004 e 2010 foram tomadas medidas políticas que suavizaram a situação. Agora voltou a piorar, com os meses de junho e julho mais quentes da história. Estamos em um momento de mudança socioeconômica e de mudança climática e precisamos encontrar a maneira de ajudar as matas a adaptarem-se ao clima. No sul do Brasil cortam florestas para plantar soja, uma soja que, é bom lembrar, nós europeus consumimos.

O que pode ser feito para se evitar os incêndios no futuro?

 A era da extinção de incêndios está acabando e está começando a era da gestão da paisagem. Tentar fazer com que as coisas não mudem é cair em armadilhas. A Europa, mais do que olhar para o Brasil, deveria tomar decisões sobre como fazer paisagens seguras daqui a 20 anos. Não há capacidade para extinguir os grandes incêndios, é preciso gerir a paisagem. Os grandes incêndios estão chegando a áreas em que não são esperados. Deixaram de ser a exceção para começar a ser a regra.

É possível viver com segurança ao lado das florestas no Mediterrâneo?

Sim, se tiver uma carga de combustível diminuída. Mas uma floresta não gerida, com falta de espécies e com um ecossistema empobrecido, queimará. A reposta deve ser sempre procurar paisagens saudáveis e, seja por matas maduras e gestão florestal, retirar combustível da paisagem, e isso nunca foi feito nos tempos modernos.

Vilões das queimadas estão no poder

Até onde minha memória alcança — e ela vai longe — se fala em queimadas no Brasil. A diferença entre as queimadas de hoje e as queimadas de antanho é que aquelas tinham autores conhecidos e universalmente execrados, proprietários rurais que recorriam a métodos primitivos e perigosos de limpar suas terras e prepará-las para a produção, e se danasse quem protestasse. O que mudou de antes para agora é que já não se sabe mais com tanta clareza quem são os vilões desse drama.


Na minha remota adolescência, ninguém falava na questão ambiental, fora alguns idealistas esquisitos. Para todos os efeitos relevantes, o ambiente não existia. Hoje “vilão” não é mais o proprietário rural sem consciência do mal que suas queimadas fazem, pode ser um investidor ausente que só vê suas terras em chamas da janela de um avião. Contra os protestos de quem quer a Amazônia como o último refúgio de um mundo que se torna rapidamente irrespirável, ganha força um vilão ao qual só faltava uma coisa para se impor, o poder. Agora, ele está no poder.

À visão romântica de uma Amazônia refúgio impõe-se a do tesouro escondido, muito mais realista e excitante. O que haverá de riqueza sob as árvores da Amazônia, uma vez desmatado tudo e afastados os índios, é difícil de imaginar. Madeira, petróleo, ouro... Nada nos faltará. Salvo, claro, ar.

Falando em memória... Não sei por que, pensei nos Beatles. Já sei por quê. Li numa matéria sobre o mercado editorial que três capas garantem as vendas de livros, no mundo todo: capas em que apareçam Lincoln, Hitler ou cachorros. A matéria não explicava a preferência. Os livros sobre Hitler vendem mais na Alemanha; os sobre Lincoln, nos Estados Unidos; e os sobre cachorros, em toda parte. Comecei a imaginar um encontro de Lincoln e Hitler numa pet shop, mas logo fui tomado por grande melancolia. E os Beatles, por que não eram os mais vendidos? Lembrei que anos atrás o Internacional formou um ataque de jovens que logo ganhou o apelido de ataque iê, iê, iê. Um eco do yeah, yeahyeah dos Beatles, que na época era a referência cultural de uma geração e ninguém mais canta. Enfim, saudade de mim mesmo.

Imagem do Dia


Democracia em tempos de cólera

A tormenta ainda não passou, mas já é possível retirar algumas lições da crise vivida pelo país. A primeira delas é que sabemos muito pouco sobre o que exatamente aconteceu na Amazônia, nos últimos meses.

A procuradora Raquel Dodge fala em uma “ação orquestrada longamente cultivada para chegar a este resultado” e há informações bastante vagas sobre sindicalistas e fazendeiros promovendo o “dia do fogo”. Tudo soa um tanto inverossímil.

Há perguntas reais que precisam ser feitas. Houve relaxamento da fiscalização, por parte de órgãos de Estado? Trata-se de um problema de governança, de omissão criminosa, ou um reflexo perverso do quase “shutdown” da máquina pública, provocado pelo esgotamento fiscal (o mesmo que levou ao corte nas universidades, ao virtual fim do investimento público e vem paralisando a máquina federal).

É evidente que, para os donos da verdade de sempre, já está tudo explicado. Para quem detesta o governo, o que houve foi um “sucateamento do Ibama”, como li em uma publicação aparentemente séria. De uma jornalista influente, li que tudo foi causado pelas falas do presidente, que subliminarmente “incentivaram” os madeireiros e agricultores a tacar fogo na mata.

O governo não fica atrás no campeonato de chutes na Lua. Tudo começou com a negação pura e simples dos dados do Inpe. Nada disso teria acontecido se o governo tivesse simplesmente levado os dados a sério e agido com rapidez. É exatamente para isto que temos um governo.

O que veio depois é apenas loucura. Da culpabilização genérica das ONGs, feita por Bolsonaro, até a criativa provocação de que voltando as demarcações de terras indígenas “o fogo acaba na Amazônia daqui a alguns minutos”.

Vejo nisso tudo uma espécie de fracasso coletivo. A constrangedora incapacidade, nestes tempos de cólera, de se fazer um debate minimamente racional sobre um tema complexo como este.

É um quadro semelhante, ainda que em outra escala, ao que vem acontecendo na educação e no tema dos cortes orçamentários. A truculência de um lado, a irracionalidade e oportunismo político, de outro.

Para quem quiser aprender alguma coisa, a crise nos dá uma aula prática sobre os riscos da democracia digital. Tenho dito e repito aqui: a internet deu poder aos cidadãos e fez explodir o nível de informação disponível e transparência do sistema político, mas definitivamente envenenou a democracia.

O ruído permanente, as fotos fake, o mapa mostrando a Amazônia queimando até o Paraguai, o achismo generalizado, a retórica de fim de mundo. Tudo vindo não apenas do cidadão comum, mas por parte de quem deveria lidar profissionalmente com a informação. Vai aí um quadro sem volta.

A gritaria e a irrelevância se tornaram o novo normal da democracia. O que me surpreende, neste episódio, é a figura do chefe de Estado como protagonista da algazarra digital. O líder latino de traço populista, de um lado, e o líder europeu de centro, aparentemente “racional”, de outro. Suspeito que não deveria me surpreender.

Por último, fica uma lição sobre o comportamento do presidente Bolsonaro, que vai se afirmando, na boa definição de J.R. Guzzo, como uma “máquina de produzir atritos, problemas de conduta e confusões inúteis”.

Não há manual, na ciência política, para explicar onde tudo isso termina, e não se trata aqui de imaginar que teremos, em algum momento, um presidente politicamente correto.

Não elegemos Justin Trudeau, elegemos Jair Bolsonaro. O ponto é que tudo passou um pouco do limite.

Para os apoiadores incondicionais do presidente, não há problema nenhum em seu estilo trombador e suas piadas de gosto discutível, dado que tudo que o grande líder faz está, de antemão, justificado. Para seus odiadores profissionais, tudo já se perdeu.

Como bem disse Noam Chomsky, em uma divertida entrevista a esta Folha, Bolsonaro e Trump são piores que Hitler, que só queria “matar todos os judeus”. Eles querem é “matar toda a sociedade, destruir tudo e ter lucro”. Não entendi exatamente como ter lucro, depois de matar todo mundo, mas deu para perceber o tom da crítica.

Os dois grupos são perfeitamente iguais e não valem nada para o bom debate público, mas a questão prossegue no ar: qual é exatamente o custo político que teremos ainda que pagar pelo destempero e pela instabilidade permanentemente provocada pela retórica presidencial.

E quem sabe, numa versão mais otimista da mesma questão, dirigida não apenas para o presidente: há alguma chance de que esta crise nos ensine alguma coisa?
Fernando Schüler