segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Casa do Brasil

 

                                 Anderson Tozato


Um feliz 2023

E 2021, o ano que parecia não acabar, passou. O prenúncio que deixa não é conciliável com os votos protocolares de feliz ano novo. O melhor desejo é o de que cada um consiga cultivar em si o propósito de sublimar os revezes buscando a renovação no espírito, se munindo de persistência e determinação para quitar os restos a pagar.

A expressão não é uma apropriação casual da terminologia orçamentária nacional, pois o principal combate será nesse campo em que os recursos foram empregados sem qualquer vínculo com as necessidades do país (des) orientados por uma gestão ideológica e eleitoreira, de complexa reversão.

O restos a pagar tornou-se mecanismo de gestão e produziu um orçamento paralelo que impôs o chamado teto de gastos, sepultado por Arthur Lira e entorno.

O país está aos cacos em todos os planos – político, econômico, sanitário, social e moral. A pandemia teve no governo federal um cúmplice infiltrado no organismo social a boicotar os esforços pela sua regressão. Ao inverso da cronologia humana o método cumpriu uma escala do idoso ao infantil, estágio em que se desenvolve hoje a batalha entre a imunização e o contágio estimulado.


A União, assim definida juridicamente, é uma abstração só percebida como coletora e distribuidora de impostos. Não tem CEP, lá o carteiro não passa. Ninguém mora na União, mas em ruas, cidades, sejam capitais ou municípios, onde o cidadão convive e se reconhece no ambiente social. E onde cumpre as leis que regem a vida em sociedade.

Mas a União, em ironia com o sinônimo solidário que carrega o vocábulo, fez da rede que contorna e tece as relações entre indivíduos, um só fio desencapado. Não foi elo, mas separatista, elegendo Estados e municípios como adversários.

Em cada esquina, restaurante, bar padaria ou quitanda, a milícia antivacina, máscara e prudência produz conflitos – e até mortes como uma variante a ampliar as estatísticas macabras da Covid.

O Brasil chega doente a 2022. O ano de um semestre, encurtado pelas eleições e Copa do Mundo. O Congresso Nacional, com lideranças pífias, confirmou a máxima de Ulysses Guimarães, ditadas aos que o procuravam para se queixar do Parlamento. “Você está pessimista porque ainda não viu o próximo”.

O Executivo nada produziu no plano das reformas chamadas estruturais, mas contribuiu muito para piorar o varejo. O ministério da Saúde fez de seu título uma ironia histórica.

O da Economia passou o mandato mudando contas de padaria. Sua única previsão correta foi a da morte de milhares de pequenas empresas. Encerrado o ano mandou o médico com os remédios ao velório para a missa encomendada.

O Judiciário foi o muro de contenção de um roteiro desgovernado e indiferente à Constituição. Foi tão importante que seus próprios males ficaram em segundo plano.

As eleições vêm aí e na hipótese otimista de que o calvário vivido oriente o voto cidadão, mais adequado será desejar ao país um Feliz 2023, pois o ano que começa hoje será ainda de muita luta e espírito de sobrevivência.

A máquina brasileira de fazer tragédias

Neste espaço, tenho escrito semanalmente artigos analíticos sobre Direito. Em razão do fim do ano, pensei fazer um balanço a respeito do tema, mas não deu.

As ultrajantes enchentes que nesta semana massacraram o Estado da Bahia me fizeram notar o quão irrelevante seria falar de Direito, enquanto o ano de 21 era ainda martelado por mais uma tragédia.

Tragédia, aliás, esperada.

Digo esperada porque o Brasil é um prodígio construtor de desastres. Nós praticamente temos uma linha de produção. Nesse quesito, somos – e muito – organizados. Miséria, desigualdade, falta de educação são colocados a todo momento em um mesmo recipiente, deixados marinando pelo descaso das autoridades até o ponto certo e… voilà!


Acidentes de todos os tipos são alimentados pela inoperância da administração pública, represas apresentam infiltrações e rachaduras sob o silêncio bem pago de empresas corruptas, epidemias se instalam em meio à estupidez grosseira de um presidente que foi – e continua sendo – omisso.

Parte significativa de nossos mortos pela Covid foi enterrada nesse ano em razão da vacinação tardia da população. E pretende o governo federal – com o perdão do trocadilho – repetir a dose, com a hesitação demonstrada em relação à vacinação infantil, enquanto cresce o quadro mundial de hospitalizações e mortes de crianças em decorrência da doença.

Os alagamentos da Bahia não serão os únicos desse verão. Ainda contaremos muitos mortos afogados e soterrados pela lama dos solos e da gestão pública dos governos estaduais e municipais de nosso país.

A marcha previsível e ininterrupta dessas tragédias que vão sendo sorrateiramente gestadas em silêncio, como os tumores dentro de organismos doentes, nos dá a percepção nítida de que este ano foi mais um dentre os demais, e que os demais serão mais um dentre tantos outros.

E que os tantos outros não serão nenhum, enquanto nos faltar um mínimo de civilidade, de interesse pelo próximo, pelo todo, pelo comum. Nos faltar a ponte civilizatória que Heidegger tão belamente diz prometer mais vida, por se abrir do dia a dia do eu para o dia a dia do mundo.

O governador da Bahia, Rui Costa, a respeito da postura de Bolsonaro ficar alheio aos alagamentos, brincando em um parquinho de diversões em Santa Catarina, disse que esperava dele mais humanidade.

Esperava-se também, governador, mais gestão pública na Bahia, maior preparo para as recorrentes tragédias. No entanto, sem dúvida, enquanto faltar a um presidente eleito o gesto humano mínimo pouco se poderá esperar de qualquer um, de qualquer coisa.

Só importará o balanço do carrossel do presidente no parquinho, girando em torno de seu próprio umbigo, montado sobre uma parcela considerável da população, que gira também neste carrossel, sendo motor potente dessa máquina brasileira de fazer tragédias.

Serial killer


A tragédia brasileira não é fruto de apenas um crime, e sim de crimes em série, alguns dos quais estão sendo cometidos neste exato momento, para acobertar os crimes do passado.

Como Bolsonaro se comporta e o que ele parece

Debrucei-me esta madrugada sobre uma versão em papel do Dicionário do Aurélio à procura de uma palavra que definisse com razoável precisão como Bolsonaro se comporta, e o que parece.

Pensei em classificá-lo de debochado. Debochado com a cara de todo mundo. Deboche quer dizer devassidão, libertinagem, e logo concluí que está muito aquém do que o país assiste.

Detive-me na palavra escárnio. Gosto dela. É sonora, insolente, redonda. Para pronunciá-la, é preciso abrir os lábios e mostrar os dentes com expressão de cólera ou de riso.

Ocorre que escárnio dá impressão de ser uma palavra mais pesada do que é. Não corresponde aos seus sinônimos mais usuais. Escárnio quer dizer menosprezo, zombaria, desdém.


Pulei a palavra pequenez. Não está à altura da façanha protagonizada por Bolsonaro. Passei ao largo de descabido. Que apenas quer dizer inconveniente, impróprio, inoportuno.

Por comum e vulgar, não perdi tempo com sem-vergonha. Vi-me tentado, confesso, a trocá-la por sem pudor, sem brio – mas esses são termos que soam até elegantes, digamos assim.

Esbarrei na palavra reles. Sem dúvida, é ordinária, vil a maneira como o presidente se exibe. Empurra o país para o rés-do-chão, expressão que me encanta desde a adolescência.

Vagabundo? Se aplicado com sentido pejorativo, e eu jamais faria isso, quer dizer desprovido de honestidade, que age de modo desonesto; malandro, canalha.

Com sentido usual, vagabundo é quem não trabalha ou não gosta de trabalhar; vadio. De fato, pegar no pesado não é com Bolsonaro. Ele ama divertir-se. Sai de férias até quando não deveria.

Voltei algumas páginas do dicionário e pus os olhos em patifaria. Deus seja louvado! Imagino finalmente ter encontrado a palavra certa para definir o desempenho de Bolsonaro – patifaria.

Autor de patifaria é patife. E patife, segundo o Aurélio, quer dizer velhaco, pusilânime, covarde, alguém capaz de mandar às favas todos os escrúpulos para alcançar seus objetivos.

Mesmo assim… Chamar Bolsonaro de patife ainda me parece pouco.

Desordem e regresso?

Tenho procurado, mas ainda não encontrei alguém tranquilo quanto à disputa presidencial em que nos iremos engajar dentro de dez meses.

Não tendo a “terceira via” até agora dito a que veio (ou virá), o enredo será igual ao de 2018. Teremos Lula pintando Bolsonaro como um desequilibrado, Bolsonaro pintando Lula como ladrão e milhões de brasileiros concordando em que ambos estarão certos. Nesse quadro, só os muito obtusos não percebem quão escassa é a chance de conservarmos o que nos resta de normalidade econômica, política e moral.

Relembremos que, décadas atrás – com mistificações ideológicas recobrindo um tênue fundo de verdade –, quisemos crer que nossa linha evolutiva seria mais no sentido da civilização que no da barbárie. Euclides da Cunha quis acreditar que éramos um país fadado a se civilizar. Que, no longo prazo, nosso destino seria um convívio político pacífico, não um país resvalando para a rispidez e a violência; para a ordem e o progresso, não para a desordem e o regresso. Hoje, se tivermos juízo, devemos olhar para trás com tristeza e para a frente com preocupação, muita preocupação, porque outra rodada de Lula x Bolsonaro, com certeza, nos manterá afundados no atraso por muitos anos, talvez décadas.


A afirmação acima não é arbitrária. Não resulta de uma incorrigível propensão ao cassandrismo. Resulta da simples constatação de que não foram processos culturais espontâneos, uma microtrama social que mal chegamos a compreender, o que nos fez sair dos trilhos. Foi uma espantosa sequência de desatinos perpetrados pelos principais líderes políticos, como tratarei de exemplificar em seguida.

Em 1930, ao chegar ao Rio de Janeiro, Getúlio Vargas com certeza revirava os escaninhos de sua mente em busca de uma imagem do poder que acabara de conquistar pela força, e logo se encantou com a cena dos cavalos gaúchos apascentando-se ao redor do obelisco. A ideia do “mando”, ali à sua frente, bem concreta, deve ter lhe parecido mais palatável que a de reinstalar imediatamente as abstrações de um Estado constitucional. Procrastinando o retorno do País à normalidade jurídica, instigou São Paulo à luta armada e, pior, deixou entrever um veio profundo de sua índole política. Estava plantada nossa primeira polarização. A divisão do País em duas partes rancorosas.

Em novembro de 1937, valendo-se da popularidade que granjeara ao suprimir a intentona comunista, Getúlio decretou o autogolpe, outorgou uma Constituição de brincadeirinha e saiu calmamente para um jantar na embaixada da Argentina. Em 1948, indagado pelo jornalista Samuel Wainer sobre o papel que esperava desempenhar na eleição presidencial de 1950, ele respondeu: “Voltarei, mas não como político. Voltarei como líder de massas”. Tal frase dispensa interpretação. Aí está dito, com todas as letras, que a imagem dos cavalos ao redor do Obelisco não lhe saíra da cabeça; sagrado pelas urnas, não hesitaria em atropelar as instituições.

Ocorre que, uma vez rompido o fio invisível da normalidade política, a contraposição não tarda a se manifestar. Investindo-se de imediato na posição de contraponto antigetulista, Carlos Lacerda replicou com estardalhaço em seu jornal: “O sr. Getúlio Vargas não deve se candidatar à presidência da República. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve ser empossado. Empossado, devemos fazer de tudo para derrubá-lo”.

O que acima vai dito e mais o onipresente veneno da guerra fria são suficientes para relembrar os anos 50 do século passado.

Em 1961, o desmiolado Jânio Quadros renunciou à suprema magistratura, nutrindo a fantasia de que voltaria nos braços do povo, livre das amarras constitucionais. Ficou dependurado numa teia de aranha, mas o resultado de sua loucura, como sabemos, foi outro desatino: o veto de uma parte das Forças Armadas à posse de João Goulart, legitimamente eleito como vicepresidente. O espectro da guerra civil foi afastado por uma fórmula parlamentarista moderada, a ser submetida a plebiscito em 1965. Inconformado com as diáfanas restrições a que o parlamentarismo supostamente o submetia, Goulart manobrou dia sim e outro também para se livrar dela, antecipando o plebiscito para janeiro de 1963, no qual teve êxito. Desfeita, assim, a conciliação de 1961, Jango deixou-se encantar pela sugestão que lhe levaram alguns conselheiros: plenamente reintegrado na função presidencial, cumpria-lhe dar uma satisfação ao País. Essa foi a origem das reformas sem pé nem cabeça que tentou pôr em prática, radicalizando outra vez o quadro político.

Essa cascata de desvarios levou ao golpe militar que durou 21 anos e do qual só conseguimos sair graças à ação de líderes moderados e hábeis. Em seguida, o governo Fernando Henrique operou o milagre de controlar uma superinflação que já durava 33 anos. A transição para o governo Lula foi ordeira, tranquila e racional. Mas Lula, como sabemos, é uma mescla de dr. Jekyll e mr. Hyde; Bolsonaro é o que é. Esta, caros leitores e leitoras, é a passarela. Deixemos a banda passar.

Pensamento do Dia

 


O Papa-Figo no Alvorada

Gilberto Freyre enxergou com insuperável acuidade os fatos sociais. No livro Assombrações do Recife velho, explorou personagens sobrenaturais que povoam a vocação mística da cidade e seus efeitos sobre o imaginário popular.

O Papa-Figo, figura tenebrosa, tratava a doença do soturno lobisomem com fígados de criancinhas. Dizem que, atualmente, o lobisomem mora no Palácio da Alvorada e o Papa-Figo é o mais eficiente formulador e executor dos programas de governo.


Controverso e polêmico é dizer quase nada de Gilberto Freyre e da obra monumental que mudou e segue influindo a perspectiva de pensar o Brasil. A atração dialética do autor pelos “antagonismos em equilíbrio”, permite que, sobre ele, tudo possa ser dito e sentido: a emoção dos afetos e desafetos; admiração dos discípulos e a ira dos contrários; etiquetas das demências ideológicas. Tudo, menos indiferença ao patrimônio que legou aos saberes universais.

Não cabe em rigores metodológicos: ao da prosa científica, aliviava com a leveza da construção poética; não se submetia a pré-conceitos: versátil e plural reinventava e religava conhecimentos, criando uma espécie de ecossabedoria. Confessadamente vaidoso, reconhecia, segundo testemunho de Edson Nery da Fonseca, que “a verdadeira ciência é humilde”.

Ninguém olhou e enxergou o fato social com tanta acuidade: desde descrever a relação do senhor do engenho com a rede, até lançar luzes sobre as possibilidades de uma civilização tropical mestiça.

Nada escapava à percepção e aos significados freyrianos: o poder do patriarca, o recato oprimido das sinhás, o odor sensual da mucama, a imponência da arquitetura e do mobiliário, a mancha melânica, o jenipapo na bunda dos meninos brancos, marca da ancestralidade negra, o hábito indígena dos banhos diários e a culinária com o sabor especial dos temperos raciais no reinado do açúcar.

Em Assombrações do Recife Velho (1955, várias edições, Global, 2012, formato ePup), reencontro meus primeiros medos. A matéria-prima vem do imaginário popular, contadores de histórias e cantigas de ninar (boi da cara preta). O sobrenatural assustador é um traço da vocação mística e histórica do Recife, repleta de revoluções, fantasmas de padres executados, casas e sobrados mal-assombrados (Teatro Santa Isabel) nome de bairros e ruas que guardavam relatos aterradores (Afogados, Chora-Menino, Encruzilhada, Encanta-Moça).

Dentre as 27 histórias, a que mais apavorava às crianças, era a lenda do Papa-Figo. Conta-se que um sujeito rico estava com uma doença desconhecida e incurável: à noite virava lobisomem de quem todo mundo tinha medo. Procurou um misterioso negro velho que receitou: “Ioiô, somente fica bom comendo “figo” (corruptela de Fígado) de menino corado e gordo”. O curandeiro pegava os meninos, enfiava num saco pendurado nas costas e servia ao “paciente”.

O homem ficou bom. A história ainda me dá arrepios. Dizem que no Palácio da Alvorada mora um lobisomem. Não acredita nos avanços da ciência. Nem precisa. O Papa-Figo é um consultor eclético que define as políticas do governo.

Ditadura bananeira


Parece que vivemos uma ditadura branca, uma coisa estranha, onde ele (Bolsonaro) decreta e tem que ser como ele quer. Mesmo em assunto em que ele não entende, quando estão morrendo milhares de pessoas. Essas distrações dos líderes na sua própria cobiça, a distração do sofrimento das pessoas, estão me deixando muito entristecida
Lya Luft ("Votei na falta de coisa melhor e me arrependi muito")

Quanta dor

Algumas histórias são eternas. Uma em especial costuma ser relembrada a cada fim de ano graças ao livro de memórias de Bruce Bairnsfather, o capitão britânico na Grande Guerra de 1914-1918 que mais tarde se tornaria um celebrado cartunista europeu. Era seu primeiro Natal naquele conflito mundial que eliminou mais de 21 milhões de vidas, e o narrador tremia de frio numa trincheira enlameada da Bélgica. Ele e seus companheiros do Primeiro Regimento Real passavam dias e noites agachados, num ciclo interminável de insônia e medo, biscoitos azedos e cigarros inutilizados pela chuva. “Lá estávamos, naquela cavidade de argila, a léguas e léguas de casa... sem a menor chance de poder sair dali exceto de ambulância”, descreveu ele. Mais provável que fossem mortos.

Perto das 22h do dia 24, Bairnsfather percebeu um ruído novo no campo de batalha de Ploegsteert, vindo dos boches (como os Aliados chamavam os inimigos alemães). Afinou o ouvido e percebeu, em meio a sombras noturnas, um murmurar de vozes. Seus companheiros também estranharam. Perceberam então tratar-se de cantorias — os temidos soldados do Exército alemão, também entrincheirados e invisíveis, entoavam canções de Natal! Os britânicos decidiram cantar de volta. E subitamente ouviram alguém do lado inimigo gritando algo confuso, em inglês carregado de sotaque germânico. “Venham para cá”, dizia o boche. Um dos sargentos britânicos respondeu: “Nos encontramos a meio do caminho”.


E assim foi. Feito catadores de caranguejos saindo dos manguezais do Delta do Parnaíba, recrutas encharcados dos dois lados começaram a emergir de suas trincheiras e a se olhar como o que eram: apenas homens, homens jovens longe de casa mandados para a guerra. Houve apertos de mão, oferecimento de tabaco e vinho (as provisões dos alemães eram bem melhores que as dos Aliados), e as cantorias bilíngues se estenderam noite adentro. Em troca de cigarros, os ingleses cortavam o cabelo dos alemães. “Naquele dia não disparamos um só tiro, parecia um sonho.”

Também em outros campos de batalha naquele inverno sombrio, pequenos bolsões de soldados franceses, alemães, belgas e britânicos pararam de se matar por um dia no Front Ocidental e voltaram a ser gente. Segundo narrativa de um tenente alemão do 134º Batalhão de Infantaria, Kurt Zehmisch, até mesmo uma bola de futebol murcha se materializou numa unidade britânica, e uma partida improvisada em condições gélidas fez a festa. Entre os muitos relatos daquela trégua espontânea, um soldado irlandês de outra unidade, em carta ao jornal Irish Times, descreveu “uma multidão de oficiais e soldados, ingleses e alemães, agrupados em torno dos muitos soldados mortos que haviam sido recolhidos e alinhados respeitosamente”.

Nos quatro anos seguintes, a Grande Guerra seguiu seu curso de mortandade até então inédita, propiciada pela produção em massa de artefatos bélicos como aviões e armas capazes de fazer 500 disparos por minuto. Nas centenas de conflitos armados posteriores, nunca mais houve espaço para uma trégua como a daquele Natal de 1914.

Em artigo sobre o episódio, para o site do canal History, o escritor A.J. Baime e o historiador Volker Janssen chamam a atenção para um soldado alemão em especial, que desancou seus irmãos de farda por terem aderido à trégua. “Algo assim jamais deveria ocorrer durante uma guerra. Vocês não têm mais nem um pingo de sentimento de honra alemã?”, indagou o recruta. Seu nome: Adolf Hitler.

Essa longa digressão sobre um episódio ocorrido há mais de cem anos tem o propósito de lembrar-nos que já fomos melhores. E que precisamos sair da trincheira do medo não para uma trégua que seria tão pouco duradoura como a de 1914, mas para votar por um Brasil menos indecente em 2022. O espetáculo de Grand Guignol exibido pelo governo Jair Bolsonaro neste fim de ano ofende qualquer norma de civilidade. Pouco tem de humano o espécime que cavalga jet skis da Marinha, visita parque de diversões e joga na Mega-Sena da Virada enquanto uma parte do país pede socorro. O Brasil já teve um leque bastante improvável de chefes de nação — inclusive a galeria militar cujo programa de manutenção no poder incluiu matar seus adversários políticos. Ainda assim, Jair Bolsonaro consegue ser único — seu ostensivo desprezo pelo povo que governa, pela dor do outro, é maníaco. E lugar de maníaco é no manicômio, não na Presidência da República. Que venha 2022.

Que tipo de gente somos?

As palavras, assim sozinhas, guardam histórias e significados. Muitas vezes, conceitos inteiros – que estruturam o mundo que conhecemos – nos são apresentados pelo mergulho naquelas poucas letras que, juntas, e há muito tempo, construíram sentidos específicos. Não por acaso, muitas vezes a etimologia nos é apresentada na nossa experiência escolar. Seja nas aulas de ciências ou biologia em que conhecemos aquele tanto de espécies de vida, cujos nomes científicos (difíceis de serem lembrados, mas que muitas vezes explicam características centrais desses seres) nada mais são do que palavras de origem grega e/ou latina. Seja nas aulas de história e sociologia, em que conceitos como democracia e república são trabalhados a partir da origem dessas palavras – o que, uma vez mais, também nos ajuda a entender os significados desses termos.

Pois bem, nos últimos tempos, uma palavra de origem grega tem ganhado algum destaque nas redes sociais: APOROFOBIA. O sufixo "fobia" nos é conhecido e é frequentemente utilizado para designar medo exagerado ou aversão a algo. Aracnofobia é o medo de aranhas e outros aracnídeos. Claustrofobia é o pavor que algumas pessoas sentem de lugares fechados. O prefixo vem do grego á-poros e significa pobre, desamparado. Sendo assim, aporobofia nada mais é do que o pavor de pobres.


Vejamos bem, não estamos tratando do medo da pobreza. O que, em certa medida, seria legítimo, já que a pobreza é uma situação de penúria na qual muitas pessoas se encontram e da qual todos querem fugir. Estamos falando aqui de uma palavra utilizada para designar o pavor, a intolerância aos pobres, ou seja: a aversão às pessoas que se encontram em estado de penúria.

Não podemos ser ingênuos e imaginar que esse tipo de medo seja recente na história da humanidade. Muito pelo contrário. No entanto, o uso recorrente de uma palavra específica para designá-lo diz muito sobre o mundo em que vivemos. Ou melhor, diz muito sobre o tipo de gente que somos. Gente que tem medo de pobre.

Esse medo não fica num cantinho profundo do nosso ser, escondido pela vergonha de podermos ser tão mesquinhos e repugnantes a ponto de sentirmos medo de pessoas pobres. Não. A aporofobia é ação e prática cotidiana. E recentemente tem se materializado numa série de intervenções urbanas em espaços públicos. Lojas e bancos instauraram estacas ou pedaços de concreto e ferro para evitar que pessoas pobres durmam em suas marquises durante a noite. Prefeitos e governadores têm instalado esses mesmos instrumentos debaixo de pontes e viadutos com o mesmo fim: espantar os pobres.

Vale pontuar, uma vez mais, que essas ações se dão em espaços públicos, que podem e devem ser usufruídos por toda a população, independentemente de sua condição. Desse modo, o que estamos presenciando são posturas políticas que querem limar os pobres desses espaços. Uma versão abjeta da máxima: "O que os olhos não veem, o coração não sente".

Impedir que pessoas pobres (muitas vezes em estado de miséria) se abriguem em marquises ou, literalmente, debaixo da ponte, não faz com que a pobreza deixe de existir. E, na verdade, essa não é a preocupação de quem tem aversão a pobre. Estamos tratando de ações que têm um objetivo simples de limpar os espaços, impedindo que pessoas pobres estejam neles. Se essa limpeza significar a morte dessas mesmas pessoas pobres, azar.

E quando essas ações têm a anuência ou são praticadas por pessoas que representam o Estado, elas ganham o status de política pública. Vivemos num país em que representantes do poder Executivo nas suas três esferas – municipal, estadual e federal -– elaboram e executam políticas públicas baseadas na intolerância aos pobres, em vez de desenvolverem ações que efetivamente combatam a pobreza. Essas políticas públicas antipobres se efetivam tanto por meio dessa desprezível "limpeza urbana" quanto da demora do Estado no auxílio à população do sul da Bahia, que nos últimos dias foi ceifada por enchentes que destruíram cidades inteiras, deixando dezenas de mortos e milhares de desabrigados.

O ano de 2022 está logo ali, se anunciado. Será um ano de muitas recordações do passado, quando comemoramos 200 anos de nossa Independência. Mas, por ser um ano eleitoral, 2022 também será um momento de exercício do voto. Um ano de escolhas políticas, decisões que irão projetar nosso futuro. Por isso pergunto: que tipo de gente nós somos? Pessoas que têm aversão aos pobres, ou pessoas que querem combater a pobreza? Que tipo de sociedade queremos construir?

Para este ano que se inicia, desejo que possamos ser a mudança que queremos.