Perto das 22h do dia 24, Bairnsfather percebeu um ruído novo no campo de batalha de Ploegsteert, vindo dos boches (como os Aliados chamavam os inimigos alemães). Afinou o ouvido e percebeu, em meio a sombras noturnas, um murmurar de vozes. Seus companheiros também estranharam. Perceberam então tratar-se de cantorias — os temidos soldados do Exército alemão, também entrincheirados e invisíveis, entoavam canções de Natal! Os britânicos decidiram cantar de volta. E subitamente ouviram alguém do lado inimigo gritando algo confuso, em inglês carregado de sotaque germânico. “Venham para cá”, dizia o boche. Um dos sargentos britânicos respondeu: “Nos encontramos a meio do caminho”.
E assim foi. Feito catadores de caranguejos saindo dos manguezais do Delta do Parnaíba, recrutas encharcados dos dois lados começaram a emergir de suas trincheiras e a se olhar como o que eram: apenas homens, homens jovens longe de casa mandados para a guerra. Houve apertos de mão, oferecimento de tabaco e vinho (as provisões dos alemães eram bem melhores que as dos Aliados), e as cantorias bilíngues se estenderam noite adentro. Em troca de cigarros, os ingleses cortavam o cabelo dos alemães. “Naquele dia não disparamos um só tiro, parecia um sonho.”
Também em outros campos de batalha naquele inverno sombrio, pequenos bolsões de soldados franceses, alemães, belgas e britânicos pararam de se matar por um dia no Front Ocidental e voltaram a ser gente. Segundo narrativa de um tenente alemão do 134º Batalhão de Infantaria, Kurt Zehmisch, até mesmo uma bola de futebol murcha se materializou numa unidade britânica, e uma partida improvisada em condições gélidas fez a festa. Entre os muitos relatos daquela trégua espontânea, um soldado irlandês de outra unidade, em carta ao jornal Irish Times, descreveu “uma multidão de oficiais e soldados, ingleses e alemães, agrupados em torno dos muitos soldados mortos que haviam sido recolhidos e alinhados respeitosamente”.
Nos quatro anos seguintes, a Grande Guerra seguiu seu curso de mortandade até então inédita, propiciada pela produção em massa de artefatos bélicos como aviões e armas capazes de fazer 500 disparos por minuto. Nas centenas de conflitos armados posteriores, nunca mais houve espaço para uma trégua como a daquele Natal de 1914.
Em artigo sobre o episódio, para o site do canal History, o escritor A.J. Baime e o historiador Volker Janssen chamam a atenção para um soldado alemão em especial, que desancou seus irmãos de farda por terem aderido à trégua. “Algo assim jamais deveria ocorrer durante uma guerra. Vocês não têm mais nem um pingo de sentimento de honra alemã?”, indagou o recruta. Seu nome: Adolf Hitler.
Essa longa digressão sobre um episódio ocorrido há mais de cem anos tem o propósito de lembrar-nos que já fomos melhores. E que precisamos sair da trincheira do medo não para uma trégua que seria tão pouco duradoura como a de 1914, mas para votar por um Brasil menos indecente em 2022. O espetáculo de Grand Guignol exibido pelo governo Jair Bolsonaro neste fim de ano ofende qualquer norma de civilidade. Pouco tem de humano o espécime que cavalga jet skis da Marinha, visita parque de diversões e joga na Mega-Sena da Virada enquanto uma parte do país pede socorro. O Brasil já teve um leque bastante improvável de chefes de nação — inclusive a galeria militar cujo programa de manutenção no poder incluiu matar seus adversários políticos. Ainda assim, Jair Bolsonaro consegue ser único — seu ostensivo desprezo pelo povo que governa, pela dor do outro, é maníaco. E lugar de maníaco é no manicômio, não na Presidência da República. Que venha 2022.
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