segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Decretos sobre armas violam a Constituição; que Congresso ou STF os derrube

O presidente Jair Bolsonaro, vejam que espetáculo, prestou tal serviço às milícias e ao narcotráfico que Marcelo Ramos (PL-AM), vice-presidente da Câmara, homem do Centrão, protestou. O deputado acertou no que disse, mas falta acertar no que não disse. Já chego lá. Anotem de saída: partidos, qualquer um que queira ter comportamento decente e entidades da sociedade civil com legitimidade para tanto têm de entrar com Ações Diretas de Inconstitucionalidade no Supremo para impedir a aberração.

O que fez aquele a quem os tolos chamam "mito"? Baixou na noite de sexta os decretos 10.627 a 10.630, que alteram os de número 9.845 a 9.847, de junho de 2019, mais o 10.030, de setembro daquele ano. Eles dizem respeito a posse e a porte de arma e à compra de munições.

Atendendo ao que prometeu à sua milícia de psicopatas nas redes sociais — e não há modo mais preciso nem mais suave de dizê-lo —, o presidente decidiu incrementar a formação de arsenais privados no Brasil. E tudo no conforto da clandestinidade. Ganham os milicianos e os narcotraficantes. Caso os novos decretos passem a vigorar no Brasil, teremos as seguintes maravilhas:

1 - Cada indivíduo poderá comprar até seis armas de fogo — antes eram quatro. Categorias especiais, como policiais, membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e até da Receita terão direito ainda a adquirir outras duas de uso restrito — de mais grosso calibre e maior poder de fogo.

2 - Os ditos colecionadores, atiradores e caçadores (CACs) poderão formar seus arsenais sem qualquer registro no Exército, o que hoje é obrigatório. Os indivíduos do primeiro grupo podem ter 10 armas; os do segundo, 60; os do terceiro, 30. A autorização só passa a ser necessária acima desses limites.

3 - Os CACs não mais precisarão de laudo psicológico emitido pela Polícia Federal. Para ter direito a adquirir esse arsenal, basta que um clube de tiro ateste, por exemplo, que a pessoa é uma usuária regular de armas. Seis idas anuais a um desses estabelecimentos bastam.

4 - É importante destacar que Bolsonaro obrigou o Exército a revogar portaria que impunha o rastreamento de armas legais. Assim, ainda que as ditas-cujas sejam legalmente adquiridas, poderão ser livremente vendidas a criminosos. Milicianos e narcos aptos a ocupar posições de chefias terão seus peões listados entre "colecionadores", "atiradores" e "caçadores". E o Exército nada terá a fazer.

Os CACs (colecionadores, atiradores e caçadores) já podem hoje comprar mil munições para armas de uso restrito e 5 mil para armas de uso permitido. Para os ditos "caçadores", a quantidade pode dobrar; para os atiradores, quintuplicar.

5 - Atenção! Os atiradores terão direito de comprar insumos para recarga — sim, você entendeu direito: poderão fabricar a sua própria munição. E também isso não estará sujeito a prévia autorização do Exército, desde que seja de até 2 mil cartuchos para arma de uso restrito e de cinco mil para as de uso permitido. Quem controla? Ninguém.

6 - Você acha arriscado que as pessoas andem portando uma arma? Pois, agora, serão duas.

Essas são algumas das aberrações. Adolescentes de 14 a 18 anos poderão participar de clubes de tiro esportivo usando armas de terceiros. Não há limites para a iniquidade.

Voltemos ao vice-presidente da Câmara.

É importante lembrar que esses decretos, assim como os anteriores, baixados por Bolsonaro, regulam a lei 10.826, conhecida como "Estatuto do Desarmamento". E não porque ela proíba a pessoa de ter arma — isso é uma mentira! —, mas porque estabelece algumas precondições que buscam evitar o que os decretos de antes e de agora possibilitam: a formação de arsenais privados.

Decretos regulamentam leis e lhe dão, em muitos aspectos, concretude. Eles não podem desrespeitar ou negar o espírito das mesmas. O deputado Marcelo Ramos escreveu no Twitter:

"Mais grave que o conteúdo dos decretos relacionados a armas editados pelo presidente é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo. O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando PL a Câmara."

O deputado tem razão numa coisa: Bolsonaro vai além do que lhe cabe nos decretos porque, na verdade, estes negam o espírito da lei. Entendo, do ponto de vista formal, quando ele afirma ser isso "mais grave do que o conteúdo". Esse conteúdo, no entanto, transforma o país num faroeste. O Congresso até pode votar essas aberrações, claro! Mas a ele cabe legislar, não a Bolsonaro.

Sim, Câmara e Senado podem derrubar decretos presidenciais por meio de Projeto de Decreto Legislativo, que exige maioria simples desde que esteja presente a maioria absoluta de parlamentares em cada Casa.

O outro caminho para obstar essas aberrações, parece evidente, é mesmo recorrer ao Supremo com Ação Direta de Inconstitucionalidade. Os projetos de Bolsonaro não regulamentam a Lei 10.826. Eles a destroem. E, por óbvio, o presidente está legislando.

Há mais. Estabelece o Artigo 144 da Constituição:

"A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio".

Ao permitir a formação de arsenais privados clandestinos, ao arrepio de qualquer controle, o senhor Jair Bolsonaro está agredindo um fundamento constitucional.

'Ciência' armada


'Fique em Casa' foi um erro
Luiz Eduardo Ramos, general-ministro da Secretaria de Governo

Bolsonaro vai passar

Talvez a culpa seja do cancelamento do carnaval, dias de alegria, mesmo fugazes, em que “uma ofegante epidemia” invade o corpo e a alma da nossa “pátria-mãe tão distraída”. Em vez de folia, peito apertado, coração doído, bolso e barriga vazios, incertezas.

Imersos em uma polipandemia - na qual ao vírus implacável somam-se um presidente da República abjeto e incapaz e um desgoverno jamais visto -, aos brasileiros resta o "Vai Passar" do genial Chico Buarque. Se naqueles tempos derrotou-se a ditadura militar, não será um cordão de negacionistas despreparados, que digladia com inimigos inexistentes e tenta aplainar o planeta com rolo para massa, que conseguirá destruir o país e toda a energia vibrante que ele tem.

Pode parecer pura alegoria diante do acúmulo das más notícias dos últimos tempos. Mas em dias turbulentos, em que tudo pode sempre piorar, temos de ser capazes de identificar os brilhos de sanidade e resistência que podem fazer história. Os profissionais da saúde e a ciência, em especial a velocidade com que as vacinas contra a Covid-19 foram desenvolvidas, abrem essa ala.



Em um país acostumado a ser “subtraído em tenebrosas transações”, uma pequena luz vira farol. Ainda que poucos, exemplos da última semana animam.

Se por um lado vê-se um Augusto Aras na Procuradoria-Geral da República, que age mais como advogado do presidente Jair Bolsonaro do que como defensor público, por outro está o ministro Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas da União. Na sexta-feira ele apertou o cerco para que o Ministério da Saúde e o Exército expliquem, tintim por tintim, as estripulias com a cloroquina da indicação oficial de uso, sem aval da Anvisa e de toda a comunidade científica, à produção pelos fardados, com compra superfaturada de insumos.

No Senado, nem Rodrigo Pacheco (DEM-MG), eleito presidente da Casa com o apoio de Bolsonaro, conseguiu evitar o desastre do ministro Eduardo Pazuello, que, convidado para falar sobre as ações de combate à pandemia e com isso evitar uma Comissão Parlamentar de Inquérito, espantou até aliados fiéis.

Tropeçou nas suas próprias palavras, disse, desdisse e negou que dissera o que já havia dito. Mentiu, confundiu. Abriu a porteira para a necessária e agora inevitável CPI da pandemia, o que é uma excelente notícia.

No STF, ainda que Ricardo Lewandowski tenha pedido vistas ao voto do relator Luís Roberto Barroso, contrário à defesa do deputado Arthur Lira (PP-AL), desnuda-se a face perversa do recém-eleito presidente da Câmara, acusado por sua ex-mulher, Julianne Lins. A possibilidade de remissão da notícia-crime ao Juizado de Violência Doméstica, retirando a denúncia dos casos protegidos por foro especial mesmo depois de Lira assumir a principal cadeira do Legislativo, é um alento, uma luz.

Também vem do Supremo a decisão que reafirma a obrigatoriedade do uso de máscaras em áreas de acesso público -  estabelecimentos comerciais e industriais, escolas, templos religiosos - e nos presídios, medida vetada por Bolsonaro em agosto do ano passado.

A votação enterra um dos pilares do negacionismo frente à pandemia. Isso depois de a ideologização do uso da máscara chegar ao absurdo de visitantes do Planalto serem aconselhados a retirá-la antes de se encontrar com o presidente. Na última reunião ministerial, só Tereza Cristina, da Agricultura, e Paulo Guedes, da Economia, usaram a proteção.

Depois de desdenhar da vacina o quanto pode, Bolsonaro correu para importar, a qualquer preço e condições, uma pequena partilha do imunizante para que pudesse aplicar a primeira dose antes do arquiinimigo João Doria, que, goste-se ou não dele, tem todos os méritos pela vacinação no país.

Espremido pela realidade, que não comporta chacotas e invencionices, Bolsonaro teve de ceder. Não por crença, mas por cálculo político. Ao apoiar a imunização de sua mãe nonagenária, o presidente sinalizou em favor da vacina. Aparentemente, não temeu que ela virasse jacaré.

São pequenas vitórias, mas elas exibem o valor da luta. Longe de pregar a inação, o “vai passar” é a certeza de que, com a fibra de muitos, não há mal que sempre perdure. A pandemia vai passar. Bolsonaro vai passar.
Mary Zaidan

Brasil é de morte

 


A espantosa descoberta de Lady Montagu

Em tempos de pandemia, cercado pelo rumor da batalha, venho encontrando algum consolo na leitura de ensaios históricos. Comprei “Dez drogas — As plantas, os pós e os comprimidos que mudaram a história da medicina”, de Thomas Hager (publicado pela Todavia em março de 2020), na esperança de que o passado da medicina me ajudasse a compreender um pouco melhor a tragédia do presente. 

Continuo sem compreender. Contudo, aconselho a leitura. Mesmo para leitores mais atentos e conhecedores do tema, o ensaio de Hager traz revelações interessantíssimas. No segundo capítulo, “O monstro de Lady Mary”, Hager apresenta uma figura incrível, que só há alguns anos começou a ser mais conhecida e apreciada. Trata-se de Mary Montagu, nascida em berço de ouro, na alta aristocracia britânica. O primeiro marido, Edward Wortley Montagu, foi em 1716 nomeado embaixador da coroa inglesa em Constantinopla, capital do grande Império Otomano. A mulher insistiu em acompanhá-lo. 

Demonstrando uma disponibilidade para escutar e compreender o outro, que era algo raro nessa época, em particular por parte de viajantes europeus, Lady Montagu fez amizade com várias senhoras da aristocracia turca, as quais lhe abriram as portas para a intimidade dos haréns e dos famosos banhos termais. A jovem inglesa surpreendeu-se com a liberdade das mulheres turcas. Fez outras descobertas. Uma delas iria mudar a história da medicina na Europa. 

Em criança, Mary teve varíola. Escapou por um triz da terrível doença, mas ficou para sempre com as suas marcas. A varíola, hoje considerada extinta, fez mais mortes na Europa do que a peste negra. Estranhamente, não era um problema em Constantinopla. Lady Montagu descobriu que as senhoras turcas organizavam uma cerimônia simples, durante a qual as crianças eram inoculadas com pus da varíola de um paciente com um caso moderado. As crianças desenvolviam febre, mas logo recuperavam. Mary submeteu o filho pequeno ao procedimento. Este acabaria tornando-se um grande viajante e aventureiro — e jamais contraiu varíola. 

Durante anos, Mary tentou convencer os céticos e preconceituosos cientistas ingleses do sucesso do método turco. Finalmente, triunfou. Contudo, quem acabou ficando com todos os créditos pela invenção da vacina foi um médico inglês, Edward Jenner, nascido quase 50 anos depois de Mary ter feito seu filho ser vacinado pelas sábias mulheres turcas. 

O ensaio de Hager me levou a procurar a correspondência de Lady Montagu. Algumas das melhores páginas testemunham o espanto de Mary ao descobrir os banhos turcos, nos quais centenas de mulheres, senhoras e escravas, todas igualmente nuas, conversavam, enquanto bebiam café ou tomavam sorvete. “Quando estamos todos nus, só os rostos importam”, escreveu a inglesa numa das cartas que enviou da Turquia.

O caso de Lady Montagu ilustra com perfeição a forma como os europeus distorceram durante séculos a história da ciência e do pensamento: aquilo que os europeus não conheciam não existia. Mostra também que houve exceções. Honra lhes seja feita. 

Desigualdade digital


Os impostos que os ‘youtubers’ não pagam todos nós acabamos pagando
Gabriel Zucman, economista francês

Distantes do senso comum

Quanto maior a desarmonia social, mais distante o senso comum, ponto na régua dos hábitos e costumes da sociedade. E tal dissenso nos leva a um ciclo de intensa dissonância cognitiva, caracterizada por incertezas, polêmicas, um tempo de desolação.

Querelas acentuam as diferenças. Antes, dois temas exibiam conflitos: futebol e religião. Hoje se fazem presentes na política, nos governos e, claro, na crise sanitária.

O que gera essa paisagem? Não há um aspecto, um eixo-mor, a menos que agrupemos os principais fatores em torno do "Produto Nacional Bruto da Felicidade (PNBF)". Que junta dinheiro no bolso, barriga satisfeita, exemplares transportes coletivos, alimento barato, casa habitável, água encanada, esgoto e eficientes hospitais e maternidades, vacinas rápidas e para todos, enfim, satisfação coletiva. Esses aspectos apontam para o bom senso.

Ademais, conforme Guy Debord, em seu livro "A Sociedade do Espetáculo", toda a vida “nas sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”. No mundo atual, o que mais importa aos representantes é aparecer, dourar a imagem, fazer cópia do original. “A ilusão é sagrada e a verdade é profana”, arremata Debord.

Tempos de conflito e de ódio destilado pela política utilitarista, que se banha nas águas franciscanas do “é dando que se recebe”. Simon Bolívar, há mais de dois séculos, ecoava seu lamento: “Não há boa-fé na América, nem entre os homens, nem entre as nações. Os tratados são papéis, as Constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia, e a vida um tormento”. Emboscadas e traições na política nunca foram tão avassaladoras. A morte de mais de mil pessoas por dia no Brasil nem comove mais.

Pior é a resignação. “Ah, não há jeito de melhorar, devemos nos acostumar; ele vai ser reeleito facilmente; essas oposições partidárias são fracas e não resistem a um rolo compressor”. A linguagem social ruma para o conformismo e a leniência. “Se os maiorais roubam, por que não eu”? Forma-se uma camada de desonestidade, a partir do exemplo de cima. O novo triângulo que se desenvolve nas democracias - políticos, burocratas e círculos de negócios – reforça a “tecnodemocracia”.

E onde estão as vacinas éticas e morais de que nos fala o padre João Medeiros Filho, em celebrado artigo no jornal Tribuna do Norte (RN): “Além das vacinas contra a epidemia que grassa pelo Brasil, necessita-se também imunizá-lo contra o ódio, radicalismo, egoísmo, interesses escusos, desrespeito, injustiças e mentira. Incontestável que a fragilidade da saúde pública é um problema crônico, que se arrasta há décadas. Não faltam alertas e denúncias de profissionais e líderes. Não se improvisam soluções duradouras, nem existem respostas automáticas e mágicas. Urge uma dose maior de solidariedade e otimismo. É necessário crescer no altruísmo, inoculando na sociedade mais respeito, diálogo e amor.”

Tarefa para gerações. A elevação moral de um povo ao mais alto grau civilizatório não será alcançada sem a base da cidadania: Educação. Sem isso a Civilização não avança. 

Corrida contra o tempo para julgar os cúmplices do Holocausto

O tempo foi o melhor aliado dos cúmplices do Holocausto. Passados 76 anos do final da Segunda Guerra Mundial, milhares de participantes nas atrocidades e colaboradores necessários dos que as executavam morreram sem precisar responder à Justiça. Mas alguns deles ainda estão vivos, e as autoridades alemãs continuam tentando fazer com que se sentem no banco dos réus e assumam sua culpa. Não se trata somente de perseguir os que ordenaram as acusações maciças, apertaram o gatilho e escoltaram a golpes de fuzil os que morreram nas câmaras de gás. Um escritório com sede na cidade alemã de Ludwigsburg há uma década rastreia arquivos e colhe depoimentos de testemunhas para poder levar a julgamento os cúmplices: guardas sem patente, pessoal administrativo, secretárias. Pessoas que sabiam, e aceitaram, que trabalhavam em campos de concentração nos quais morriam pessoas diariamente, às vezes assassinadas a sangue frio e outras por doenças e inanição.


É uma corrida contra o tempo, reconhecem todos os entrevistados para esta reportagem. Nesta semana, a Promotoria de Neuruppin apresentou formalmente sua acusação contra um homem de 100 anos, antigo guarda do campo de concentração de Sachsenhausen, 35 quilômetros ao norte de Berlim. Ele é considerado cúmplice do assassinato de 3.518 pessoas entre 1942 e 1945, os anos em que trabalhou lá. Também há alguns dias outra Promotoria, a de Itzehoe, apresentou seu caso de acusação contra Irmgard F., uma mulher de 95 anos que foi secretária do comandante do campo de concentração Stutthof, perto de Gdansk, na Polônia ocupada pelos nazistas. Seu caso é insólito, por se tratar de uma mulher —pouquíssimas foram julgadas— e porque era menor. Peter Müller-Rakow, promotor-chefe de Itzehoe, afirma que o caso está aberto há cinco anos e precisou de “investigações extremamente complexas”, como tomar depoimentos nos Estados Unidos e em Israel.

As duas investigações tiveram a ajuda de historiadores, confirma Cyrill Klement, promotor-chefe de Neuruppin, para determinar com exatidão, com a ajuda de documentação, em que data os acusados trabalharam nos campos e a quais informações tinham acesso. Uma avaliação médica concluiu que o homem de 100 anos está em condições físicas e mentais de lidar com um processo judicial, ainda que se chegar a esse ponto as sessões na sala serão mais curtas do que o habitual. No caso de Irmgard F. será um juizado de menores a decidir se abre o julgamento contra ela. É acusada, diz Müller-Rakow, de “ajudar os responsáveis do campo na matança sistemática de prisioneiros judeus, guerrilheiros poloneses e prisioneiros de guerra russos soviéticos em sua função de taquígrafa e secretária do comandante entre junho de 1943 e abril de 1945”.

A historiadora Astrid Ley, adjunta à direção do Memorial e Museu de Sachsenhausen, não se lembra de nenhum outro caso de mulheres processadas como cúmplices de assassinato nas últimas décadas —após o conflito foram julgadas por crimes de guerra dezenas de guardas de campos femininos como Ravensbrück— e o atribui ao fato de que havia poucas funcionárias. As tarefas administrativas, por exemplo, costumavam ser de responsabilidade dos homens, militares da SS, da mesma forma que a vigilância. Ley diz que, da mesma forma que os homens se voluntariavam para trabalhar nos campos para evitar ser enviados ao front, as mulheres preferiam estes trabalhos às fábricas. Eram mais bem pagos, não havia escassez e ofereciam uma vida no campo, longe dos bombardeiros de cidades, como Berlim e Hamburgo. “Antes de ir não sabiam o que iriam encontrar”, admite Ley, “mas quando viam muitas ficavam, e não é verdade que eram forçadas, que acabariam internadas caso se rebelassem, como alegaram nos julgamentos; conhecemos numerosos exemplos de jovens que saíram e não sofreram represálias”.

O Escritório Central para o Esclarecimento dos Crimes do Nacional-socialismo de Ludwigsburg investigou mais de 7.000 casos desde sua criação, em 1958. Mas só voltou seu foco aos cúmplices há relativamente pouco tempo. “Um erro”, afirma o advogado Cornelius Nestler, que representou vítimas do Holocausto em vários processos. Durante décadas, afirma, o escritório não investigou os colaboradores, os que fizeram parte da máquina do horror nazista. Até 2011 ninguém havia sido condenado por cumplicidade. Mas então foi a julgamento o caso de John Demjanjuk, de 91 anos, antigo guarda no campo nazista de Sobibor, na Polônia ocupada. Era um simples vigilante voluntário, sem patente. Foi extraditado dos Estados Unidos, onde havia se exilado, e condenado a cinco anos de cadeia como cúmplice de 28.000 assassinatos, os ocorridos enquanto trabalhou lá. Não foi provada sua relação direta com nenhum crime concreto, mas não foi preciso: bastou provar que sabia do horror diário do campo.

A sentença mudou tudo. Foi como uma prorrogação para continuar procurando os culpados, todos eles. O escritório de Ludwigsburg tem uma dúzia de investigações abertas que enviará às Promotorias do local de residência dos acusados quando estiverem concluídas. “Os guardas das SS se certificavam de que os prisioneiros não escapassem. Se sabiam que ocorriam assassinatos maciços organizados, portanto, cometeram crime de cumplicidade”, afirma Nestler sobre o caso do homem de 100 anos. O mesmo argumento vale à secretária de Stutthof: “Se ajudou o comandante a organizar os assassinatos, foi cúmplice”. O assassinato não prescreve e já era punível, como a cumplicidade, quando os fatos aconteceram, acrescenta.

Nestler acha complicado a mulher ser condenada à prisão. Primeiro, porque se trata de um juizado de menores e, segundo, porque “a menos que os acusados estejam em uma forma extraordinária para sua idade, é complicado que sequer sejam julgados”. O advogado Christoph Rückel, que participou no ano passado do julgamento de um homem de 93 anos, Bruno Dey, não o descarta. Um juizado de menores condenou Dey, que foi guarda em Stutthof com 17 e 18 anos, a cinco anos como cúmplice do assassinato de mais de 5.000 pessoas. Nesse campo, o primeiro estabelecido pelos nazistas fora da Alemanha, em 1939, calcula-se que morreram por volta de 65.000 pessoas, quase a metade judeus. “O senhor continua se considerando um observador, mas foi um apoio desse inferno criado pelos homens”, lhe disse a juíza. Rückel, que representou as vítimas, afirma que esses esforços, mesmo tardios, são importantes para os sobreviventes e suas famílias. “Agradecem enormemente que o ocorrido durante o período nazista continue sendo investigado”. Também a sociedade em seu conjunto: “Demonstram que a Alemanha não se entrega no momento de esclarecer seu passado”.

A História se repete como farsa

Em janeiro de 1970, sendo ministro da Justiça Alfredo Buzaid, o governo militar editou o Decreto-Lei n.º 1.077, estabelecendo a censura, visando a “preservar a moral e os bons costumes”. O obscurantismo cresceu no governo seguinte com Armando Falcão no Ministério da Justiça, quando se montou plano de combate sistemático a publicações “obscenas e subversivas”, propondo aplicar a Lei de Segurança Nacional, pois a censura e a “benigna” Lei de Imprensa seriam insuficientes na guerra psicológica adversa (confira-se: Douglas Atilla Marcelino, Subversivos e Pornográficos: censura de livros e diversões nos anos 1970).

Livros extraordinários foram proibidos e inquéritos policiais-militares, instaurados por crime contra a segurança nacional, como sucedeu com Rose Marie Muraro (A Mulher na Construção do Mundo Futuro), Renato Carvalho Tapajós (Em Câmara Lenta) e Lourenço Diaféria, sendo os últimos até presos.



Em maio de 2018 escrevi nesta página que com Bolsonaro haveria risco da volta da ditadura. Hoje o ministro da Justiça revive Armando Falcão, aplicando a Lei de Segurança Nacional a críticas jornalísticas.

Em parecer conjunto ofertado ao Conselho Federal da OAB, Alexandre Wunderlich e eu analisamos a origem e o significado do conceito de segurança nacional, como próprio de regime autoritário, razão por que deve haver nova lei de defesa do Estado.

Segurança nacional vinha a ser uma estratégia para garantia da consecução dos “objetivos nacionais permanentes”, visando, primordialmente, a assegurar a mantença do regime militar por via da contenção de qualquer efetiva oposição nos campos político, econômico, psicossocial e militar, reprimindo opiniões, emoções e atitudes contrárias ao sistema vigente.

A Lei de Segurança Nacional hoje em vigor, editada em 1983, guarda graves resquícios autoritários, bastando lembrar que os artigos 16 e 17 admitem ser a lei apropriada para tutela do regime excepcional vigente.

Numa democracia, a crítica ao presidente não se inclui como lesão ao Estado de Direito, pois não abala a estrutura do sistema democrático, inserindo-se no campo da liberdade de expressão como questão de interesse público. Essa teleologia não corresponde à postura do ministro da Justiça ao representar para enquadramento de crítica como crime contra a segurança nacional ou crime comum.

Hélio Schwartsman, em artigo na Folha de S.Paulo (Por que torço para que Bolsonaro morra), pondera que o presidente, em seu negacionismo, prejudica a vida de muitos, argumentando que, sob a ótica do consequencialismo, o sacrifício de indivíduo pode ser válido, se dele advier um bem maior.

O ministro da Justiça viu nesse texto, cujo título é de mau gosto, crime contra a segurança nacional onde há mera avaliação crítica, longe de causar qualquer abalo à estrutura democrática.

Foi, aliás, nesse sentido a decisão do ministro Mussi, do STJ, ao apreciar habeas corpus: “Não é possível verificar, em análise preliminar, que tenha havido motivação política ou lesão real ou potencial aos bens protegidos pela Lei de Segurança Nacional, capaz de justificar o eventual enquadramento de Schwartsman”.

Sem aprender a lição, o ministro de Justiça requisitou inquérito contra o advogado Marcelo Feller em vista de opinião exarada em debate na televisão sobre a frase do ministro Gilmar Mendes de estar o Exército se associando, na pandemia, a um genocídio. Para o advogado, “o discurso e a postura do presidente da República são diretamente responsáveis por pelo menos 10% dos casos de covid no Brasil”. É, aliás, o entendimento de muitos infectologistas.

O procurador federal João Gabriel Morais de Queiroz solicitou o arquivamento do inquérito, com judiciosas considerações:

“A lei de segurança não pode ser empregada para constranger ou perseguir pessoa que se oponha licitamente externando opiniões desfavoráveis ao governo (…) a lei de segurança nacional, como instrumento de defesa do estado, deve ser reservada para casos extremos(…)”. A Justiça Federal arquivou o inquérito.

Mas o incansável ministro da Justiça requisitou inquérito policial pelo crime de induzimento ao suicídio contra os jornalistas Ruy Castro e Ricardo Noblat, que replicara artigo de Ruy no qual se aventava ser o suicídio a forma de o presidente Trump entrar para a História como herói, tal como Getúlio Vargas, argumentando que “se Trump optar pelo suicídio, Bolsonaro deveria imitá-lo”.

O ministro viu nessa frase “desrespeito à pessoa humana, à nação e ao povo de ambos os países”. E mais: um crime de induzimento ao suicídio, que vem a ser criar na mente da vítima a vontade firme de se aniquilar, atuando no plano psíquico com potencialidade para a levar ao suicídio.

A requisição de inquérito por crime de induzimento ao suicídio, em vista de ideias jocosas em artigo de jornal, seria apenas de um ridículo atroz se não consistisse em abuso de poder do ministro da Justiça, por perseguir criminalmente críticos do governo com tipificação penal forçada de fato absolutamente anódino.

Até quando?