segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

A espantosa descoberta de Lady Montagu

Em tempos de pandemia, cercado pelo rumor da batalha, venho encontrando algum consolo na leitura de ensaios históricos. Comprei “Dez drogas — As plantas, os pós e os comprimidos que mudaram a história da medicina”, de Thomas Hager (publicado pela Todavia em março de 2020), na esperança de que o passado da medicina me ajudasse a compreender um pouco melhor a tragédia do presente. 

Continuo sem compreender. Contudo, aconselho a leitura. Mesmo para leitores mais atentos e conhecedores do tema, o ensaio de Hager traz revelações interessantíssimas. No segundo capítulo, “O monstro de Lady Mary”, Hager apresenta uma figura incrível, que só há alguns anos começou a ser mais conhecida e apreciada. Trata-se de Mary Montagu, nascida em berço de ouro, na alta aristocracia britânica. O primeiro marido, Edward Wortley Montagu, foi em 1716 nomeado embaixador da coroa inglesa em Constantinopla, capital do grande Império Otomano. A mulher insistiu em acompanhá-lo. 

Demonstrando uma disponibilidade para escutar e compreender o outro, que era algo raro nessa época, em particular por parte de viajantes europeus, Lady Montagu fez amizade com várias senhoras da aristocracia turca, as quais lhe abriram as portas para a intimidade dos haréns e dos famosos banhos termais. A jovem inglesa surpreendeu-se com a liberdade das mulheres turcas. Fez outras descobertas. Uma delas iria mudar a história da medicina na Europa. 

Em criança, Mary teve varíola. Escapou por um triz da terrível doença, mas ficou para sempre com as suas marcas. A varíola, hoje considerada extinta, fez mais mortes na Europa do que a peste negra. Estranhamente, não era um problema em Constantinopla. Lady Montagu descobriu que as senhoras turcas organizavam uma cerimônia simples, durante a qual as crianças eram inoculadas com pus da varíola de um paciente com um caso moderado. As crianças desenvolviam febre, mas logo recuperavam. Mary submeteu o filho pequeno ao procedimento. Este acabaria tornando-se um grande viajante e aventureiro — e jamais contraiu varíola. 

Durante anos, Mary tentou convencer os céticos e preconceituosos cientistas ingleses do sucesso do método turco. Finalmente, triunfou. Contudo, quem acabou ficando com todos os créditos pela invenção da vacina foi um médico inglês, Edward Jenner, nascido quase 50 anos depois de Mary ter feito seu filho ser vacinado pelas sábias mulheres turcas. 

O ensaio de Hager me levou a procurar a correspondência de Lady Montagu. Algumas das melhores páginas testemunham o espanto de Mary ao descobrir os banhos turcos, nos quais centenas de mulheres, senhoras e escravas, todas igualmente nuas, conversavam, enquanto bebiam café ou tomavam sorvete. “Quando estamos todos nus, só os rostos importam”, escreveu a inglesa numa das cartas que enviou da Turquia.

O caso de Lady Montagu ilustra com perfeição a forma como os europeus distorceram durante séculos a história da ciência e do pensamento: aquilo que os europeus não conheciam não existia. Mostra também que houve exceções. Honra lhes seja feita. 

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