quinta-feira, 11 de outubro de 2018

A renovação do Congresso

O desejo popular de renovação da política nacional encontrou no resultado das eleições de domingo passado uma inequívoca expressão. Nada menos que metade da Câmara e 85% do Senado serão de novatos na política ou de políticos que estavam fora e voltaram. Tal desfecho terá enormes consequências e trará muitos desafios para o próximo governo, seja qual for o presidente eleito no segundo turno.


Nem sempre o que se apresenta como “novo” é necessariamente benéfico para o País. O Congresso que emerge das urnas será muito mais fragmentado do que o atual, em pelo menos dois sentidos: o número de partidos subirá de 25 para 30 na Câmara e de 17 para 21 no Senado; e vários dos eleitos se consideram dispensados de seguir as diretrizes dos partidos pelos quais competiram.
Logo, qualquer negociação política será muito mais trabalhosa, porque não bastará acertar-se com os partidos tradicionais para deles obter o voto homogêneo de suas bancadas, em número suficiente para aprovar os projetos de interesse do governo, pois essas legendas perderam muito de sua força. A partir da próxima legislatura, será preciso dialogar com um enxame de parlamentares com interesses muitas vezes distintos dos seus líderes, especialmente dentro dos muitos partidos de escassa representatividade. É preciso lembrar que vários deles conseguiram se eleger a despeito da falta de recursos, direcionados majoritariamente pelos partidos aos medalhões que esperavam se reeleger, mas ficaram pelo caminho. Isso indica que esses novatos podem se sentir fortalecidos para alçar voo autônomo.

Agora mesmo, enquanto alguns dirigentes partidários definiram neutralidade de suas legendas no segundo turno presidencial, vários integrantes desses partidos decidiram apoiar este ou aquele candidato por conta própria. Mantido esse padrão, nenhum acordo com as lideranças partidárias será garantia de nada no futuro Congresso. É um mau começo.

A forma de organização política mais sólida e coesa tem sido a das bancadas temáticas, que em geral defendem pautas corporativas. A despeito da renovação, as frentes parlamentares do agronegócio, dos evangélicos e da segurança pública, base do sucesso do candidato Jair Bolsonaro (PSL) no primeiro turno, devem se manter e se fortalecer. Também os funcionários públicos estarão, como sempre, com presença consistente. Esses grupos podem garantir a governabilidade ou construir sólida oposição ao próximo governo, a depender de quem vença a eleição e qual seja sua agenda. Em um caso ou em outro, é improvável que as corporações bem representadas no Congresso facilitem a aprovação das inadiáveis reformas, mesmo as mais tímidas, o que prenuncia difíceis negociações para o presidente eleito - especialmente considerando-se que nenhum dos dois contendores do segundo turno tem experiência nesse tipo de articulação.

Nesse cenário, não se pode tomar o que é dito no calor da campanha como fato consumado - nem Jair Bolsonaro conseguirá cumprir a promessa de governar sem se submeter a alguma forma de acordo com outros partidos nem o preposto do presidiário Lula da Silva manterá a pureza de sua coligação à esquerda. Nos dois casos, será praticamente impossível pautar o Congresso sem apoio, por exemplo, do famigerado “centrão” - que, malgrado suas consideráveis perdas nas urnas, ainda terá uma bancada de quase 180 deputados.

Junte-se a isso o fato de que já no início da próxima legislatura haverá 32 deputados federais sem partido, que poderão alterar a distribuição de forças no Congresso a depender das legendas às quais resolvam aderir. Esses parlamentares eleitos terão essa mobilidade porque venceram a eleição por partidos que não conseguiram superar a chamada cláusula de desempenho - que atingiu 14 siglas. Pela legislação, políticos nessa situação podem trocar de legenda sem perder o mandato.

Ou seja, o Congresso formado pela ânsia de renovação, na esteira dos escândalos de corrupção e do descrédito da política, é totalmente imprevisível - e isso apenas reforça a necessidade de um amplo compromisso nacional pela governabilidade.

Pensamento do Dia


Distensão rápida, urgente e madura

Sociedade é conflito; é natural que os vários interesses se confrontem. Para negociar o conflito, a humanidade inventou a política. A política é a arte do diálogo, na busca de um consenso possível. Quando não é possível, a política se transforma num instrumento de conquista, manutenção e ampliação do poder, a capacidade de impor aos outros a nossa vontade. É pela política que se altera o status quo, que outros grupos se fortalecem e renovam o poder. Nada disso deveria surpreender, por óbvio que é.

O grande desafio é submeter esse conflito e essa luta às regras do jogo, tornando o jogo civilizado e previsível. De forma que o consenso ou o poder estabelecem as leis e são as leis que definem o jogo. O grande salto humano foi descobrir que tudo isto pode ser feito de maneira natural. Que diferenças são naturais, que a alternância de poder é natural, que a diversidade é positiva e não negativa. Que a civilização é a negação da barbárie e a isto se dá o nome de democracia.

O maior ativo de um país é a qualidade da sua democracia.

No Brasil contemporâneo, a diversidade já não é vista como natural, estabeleceu-se o que tem sido chamado de polarização. O problema não é a polarização e nem o conflito. Mas, a intolerância que transborda de uma relação sem mediação da política. Como num jogo, na democracia, não há inimigos, apenas adversários circunstanciais que formam coalizões também circunstâncias que se alteram a cada mudança da realidade.

A qualidade de sua democracia é o grande nó do país: a política já não é o software que percebe as transformações e rearticula alianças. A unidade se partiu e, no curto prazo, será muito difícil colar.


Nas ocasiões de conflito, operadores da política agem como bombeiros, apagando focos de incêndio espalhados pela sociedade. Bombeiros são imprescindíveis. Em meados da década de 1970, durante o regime militar havia, naturalmente, polarização. Mas, ao contrário de hoje, uma geração de políticos conciliadores, quase provenientes do antigo PSD agia como bombeiros. Algodão entre cristais.

A política não pode perder essa perspectiva nem em seus piores momentos. Arquitetos de pontes e atalhos, canais de comunicação e bombeiros serão sempre fundamentais.

O problema da situação em que vivemos é que esse tipo de político anda escasso no mercado nacional. Procura-se um, com lanterna em plena luz do dia. Quem possuiria trânsito de modo promover pactos mínimos entre os lados? Quem evitaria que polarização na prática se configure como vetos cruzados? O fato é que o diálogo se rarefez até mesmo nas mesas de jantar. Onde tudo se perdeu?

Difícil dizer sem apontar culpados. Foi mesmo uma marcha da insensatez da qual os vários partidos e personagens políticos participaram. Na última eleição, por exemplo, nem a oposição aceitou o resultado e nem o governo fez esforço para reconhecer a oposição como legítima. Aécio Neves foi incapaz de ligar para Dilma Rousseff parabenizando-a pela vitória – ao contrário, contestou o resultado. A inábil Dilma, por sua vez, mordeu a isca. Em seus discursos de vitória e de posse, negou-se a citar e reconhecer a oposição e suas lideranças.

Fecharam-se para o diálogo e, ao final, uniram-se num abraço de afogados.

Mas, é possível que o vínculo mínimo da política, o tênue fio do diálogo, tenha se perdido até mesmo antes: a principiar pela narrativa de “herança maldita” que Lula atribuiu ao antecessor que lhe ofereceu o processo de transição mais civilizado da história do país. Ou até antes, provavelmente antes, num desencontro qualquer na disputa pelas cadeiras de governos e prefeituras.

Não importa quando, o fato é que neste momento não há brechas nos muros que foram erguidos na política e na sociedade; não há canais comunicantes. Saídas estão sendo bloqueadas onde não há extintores de incêndio. Se alguém gritar fogo… A mais urgente tarefa é definir bombeiros políticos, operadores da capazes de criar canais de contato entre os lados. Distensionar, como se disse no passado, antes que os músculos retesem irremediavelmente. Um distensão rápida urgente e madura.
Carlos Melo 

Brasil é vive no centro

Os estrangeiros e os antigos brasilianistas não entendem nada de Brasil. A principal explicação para o fenômeno Bolsonaro é que os brasileiros cansaram de corrupção. Somente em segundo plano é que existe fundamento ideológico de direita e esquerda. A maioria silenciosa brasileira é de Centro, até porque não entende nada de política
Carlos Newton

Sem resposta simples

Vista de Nova York, onde estou palestrando para investidores estrangeiros, a onda que levou Bolsonaro aos seus 50 milhões de votos no primeiro turno é uma jabuticaba política brasileira ou simplesmente a expressão de um fenômeno autoritário com variadas ramificações mundo afora?

Pelo menos três elementos a política brasileira tem em comum com ondas semelhantes na Ásia, Europa e Estados Unidos. Eles são: o descrédito e a desconfiança do eleitor em relação a instituições tradicionais, incluindo perda de credibilidade dos grandes órgão de imprensa; a presença de fortes redes sociais que impulsionam “outsiders”; uma situação de crise ou paralisia na economia (no caso brasileiro, a pior recessão em gerações).

Aos elementos acima teríamos de acrescentar partidos desmoralizados, sistema político destruído, e as consequências da Lava Jato como expressão de indignação e raiva que vem já desde 2013. Ou seja, aos elementos comuns a muitos países somam-se fatores domésticos de alta relevância.


O “fenômeno político Bolsonaro” atraiu enorme atenção fora do Brasil – e dificuldades de interpretação idem. O mínimo denominador comum encontrado entre publicações normalmente divergentes entre si (como The Guardian ou Economist), por exemplo, foi o de ressaltar perigos severos à democracia. A palavra “fascista” aparece em publicações como Der Spiegel, revista importante num país no qual esse vocábulo tem peso muito especial. Mesmo o Financial Times, que provavelmente tem a melhor cobertura do Brasil na grande imprensa internacional, vê na figura de Bolsonaro o prenuncio de tempos duros – a inversão de uma tendência, segundo o FT, que o Brasil também simbolizara ao sair do regime militar há mais de 30 anos.

Para comediantes da telinha americana como John Oliver, a eleição brasileira virou piada pronta, com a exibição das aberrações de propaganda eleitoral produzida por candidatos a deputado, passando por Lula na cadeia (aqui fora se acha mesmo piada que um presidiário surgisse como favorito nas pesquisas eleitorais) e chegando até algumas das frases mais contundentes de Bolsonaro – aqui, segundo o humorista, acaba a graça.

A “guerra cultural” brasileira invadiu também o espectro de opiniões nos Estados Unidos, com o Wall Street Journal reconhecendo em editorial que progressistas no mundo inteiro ingressaram em “estado de ansiedade” desde que os brasileiros deram votação tão expressiva a Bolsonaro. Mas não será o próprio eleitor brasileiro que sabe melhor que ninguém de qual candidato precisa?, indagou o WSJ.

Quanto aos investidores estrangeiros, concentrados em grande número em Nova York, a política brasileira se resume a uma pergunta: “Can he deliver?” – Bolsonaro consegue entregar o que precisa ser feito, na perspectiva de quem pretende pôr dinheiro no nosso país, ou seja, ele consegue as reformas necessárias para atacar a questão do gasto público e a recuperação da capacidade de investimento na economia?

Confesso que não consegui dar a eles uma resposta simples. É óbvio que a onda do fim de semana passado mudou bastante a política e sugere desdobramentos de alcance maior do que a capacidade de se construir maiorias para votações na Câmara dos Deputados. A onda desenha uma oportunidade que pode ser ampliada com o “capital político”, como gostam de dizer os economistas, que Bolsonaro está acumulando.

Soa esperançoso? Depende para trazer resultados de uma capacidade de articulação e liderança políticas que até agora ninguém demonstrou.

Gente fora do mapa

 Os mortos também têm necessidades. E todos merecemos um enterro digno

Sonia Bermúdez, uma cientista forense de 64 anos, luta há décadas para oferecer um enterro digno a quem não pode arcar com as despesas de um sepultamento. Ela é dona de um modesto cemitério em La Guajira, no norte da Colômbia, chamado "Gente como você".
Atualmente, a maioria dos corpos sepultados é de imigrantes venezuelanos, que fugiram da crise econômica em seu país e morreram na miséria na Colômbia.  A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que mais de 870 mil venezuelanos estejam na Colômbia, muitos em situação vulnerável.

Pelo menos 45 morreram em La Guajira desde 2017 – e Bermúdez sepultou 30 em seu cemitério.

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Revendo rumos

A recomposição dos projetos dos candidatos Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, provocada por uma entrevista ao “Jornal Nacional” de segunda-feira, além da boa notícia de que os dois abandonaram publicamente projetos de cunho autoritário, reafirma o peso da opinião pública numa sociedade democrática.

A procura pelos dois candidatos de um eleitor que, no primeiro turno, recusou os extremos que representam, tem mais que o objetivo de obter novos votos. Mostra que entenderam que, mesmo em situações de conflito exacerbado, a sociedade busca caminhos democráticos para resolver suas questões.

Resta saber se os dois candidatos seguirão nesse caminho, não deixando dúvidas sobre seus compromissos com a democracia e a Constituição de 1988. O candidato petista havia anunciado, feito o acordo eleitoral com o PCdoB, que o PT incluiu em seu programa de governo a convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva.


Quando aconteceram as manifestações de rua de 2013, acuada pelo vigor dos protestos, a então presidente Dilma foi à televisão anunciar, entre outras medidas que nunca saíram do discurso, como um pacto nacional pela responsabilidade fiscal, a convocação de um plebiscito para a realização de uma reforma política através de uma Constituinte exclusiva.

Não colocou em prática, por impossibilidade legal no caso da Constituinte, nenhum dos pactos e acabou impedida de continuar na Presidência justamente pela irresponsabilidade fiscal que patrocinou. A convocação de uma Constituinte foi o primeiro passo do então recém-eleito Hugo Chávez, na Venezuela, para avançar sobre os demais poderes, ampliando a força do Executivo.

A “Constituição da República Bolivariana da Venezuela”, promulgada em 1999, primeiro dos 14 anos de governo de Chávez, é considerada o ponto de partida do chavismo.

Também o entorno do presidenciável Jair Bolsonaro andou fazendo propostas que não se coadunam com um ambiente democrático. O vice, general Mourão, sugeriu que uma nova Constituição poderia ser feita por um grupo de notáveis, sem precisar do voto popular, bastando ser referendada numa eleição posterior.

Não existe tal possibilidade, e o mais parecido com isso foi a Comissão Arinos, formada por notáveis que propuseram ao Congresso um novo texto, como base para a nova Constituição a ser promulgada em 1988. Mesmo composta de “notáveis” e tendo suas vantagens, as propostas da comissão foram solenemente ignoradas pelo presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães.

Também a referência à possibilidade de um autogolpe foi rejeitada por Bolsonaro, assim como Haddad rejeitou a afirmação do ex-ministro José Dirceu de que, vencida a eleição, o PT “tomaria o poder”. Mourão e Dirceu falavam da mesma coisa, de extremos opostos.

Os dois candidatos se curvaram à ordem constitucional e prometeram, diante da audiência do “Jornal Nacional”, obedecer à Constituição, que não permite que se use a democracia para atentar contra ela. A questão é saber o alcance e a seriedade desses compromissos.

O ex-presidente Lula fez a Carta aos Brasileiros em 2002 para garantir que manteria a política econômica então em vigor, e respeitaria o equilíbrio fiscal. Cumpriu a promessa durante seu primeiro mandato, mas, quando se sentiu forte, deu início à guinada em direção à “nova matriz econômica” de Guido Mantega, que, aprofundada por Dilma, deu nessa enorme recessão de que ainda não nos livramos, com um déficit fiscal gigantesco.

O programa do PT é a continuidade da política econômica que nos levou aonde estamos, e mais a reafirmação de controles sociais de diversos setores, até mesmo do Judiciário, passando pelos meios de comunicação, que sempre tentaram e não conseguiram, pela reação contrária da opinião pública.

Será preciso que Haddad, se não pode fazer a autocrítica necessária ao PT, abra mão desse dirigismo do Estado para que seu compromisso com a democracia possa ser levado a sério.

Também Jair Bolsonaro tem que desestimular seus seguidores — se não tem controle sobre eles como diz —a usarem a violência para atingir seus objetivos de maior segurança pública e preservação dos valores conservadores. Esses objetivos não podem prescindir da proteção aos direitos humanos, e a maioria não pode submeter as minorias a suas convicções.

Orgulho dos números

Agora a História transformou-se em números, como sempre aconteceu na História, estatísticas, e nas estatísticas tem-se orgulho
Antoio Tabucchi

Bolsonaro e Haddad são dois fantásticos avisos

A Presidência da República oferece àqueles que a exercem uma tribuna vitaminada. Algo que Theodore Roosevelt chamou de bully pulpit —púlpito formidável, numa tradução livre. De um bom presidente, espera-se que aproveite o palanque privilegiado para irradiar bons exemplos. Na corrida pelo trono, Bolsonaro e Haddad ainda não foram capazes de inspirar bons exemplos. Mas tornaram-se ótimos avisos.

Bolsonaro teve duas oportunidades para se manifestar sobre a profusão de casos de violência protagonizados por seus eleitores ou apologistas de sua candidatura. Já houve até o assassinato. O candidato poderia ter declarado algo assim: “O que nos torna civilizados é o respeito às opiniões de quem pensa diferente. Numa democracia, a melhor arma é o argumento. Peço aos meus apoiadores que se municiem de ideias, não de facas, canivetes ou revólveres. Eleito, vou unificar e pacificar o país.”

Indagado sobre a onda de atos criminosos, Bolsonaro preferiu lamentar à sua maneira: “Essa pergunta não tem que ser invertida? Quem levou a facada fui eu. Agora um cara com uma camisa minha comete lá um excesso, o que eu tenho com isso? Peço ao pessoal que não pratique isso, mas não tenho controle. São milhões e milhões de pessoas que me apoiam. A violência vem do outro lado, a intolerância vem do outro lado. Eu sou a prova, graças a Deus, viva disso daí.”


Diante da má repercussão de suas palavras e da continuidade das agressões criminosas, Bolsonaro manifestou-se novamente. Dessa vez, pendurou um par de notas no Twitter.

Numa, imunizou-se: “Dispensamos o voto e qualquer aproximação de quem pratica violência contra eleitores que não votam em mim. A este tipo de gente peço que vote nulo ou na oposição por coerência, e que as autoridades tomem as medidas cabíveis, assim como contra caluniadores que tentam nos prejudicar.”

Noutra, pôs em dúvida a própria existência dos ataques: ''Há também um movimento orquestrado forjando agressões para prejudicar nossa campanha nos ligando ao nazismo, que, assim como o comunismo, repudiamos completamente. Trata-se de mais uma das tantas mentiras que espalham ao meu respeito. Admiramos e respeitamos Israel e seu povo.'' O capitão parecia mais preocupado em salvar votos do que vidas.

Haddad enxergou no desatino retórico do rival uma oportunidade a ser aproveitada. ''Meu adversário diz: ‘Eu não posso responder pelos atos dos meus correligionários’. É como alguém que tem um cachorro bravo, solta da coleira e diz que não pode responder pelas ações do animal''. Insensatez na candidatura dos outros é refresco. O diabo é que Bolsonaro deve sua chegada à antessala do gabinete presidencial, em boa medida, à falta de juízo do petismo.

Tome-se o caso de Haddad. Frequenta a cena eleitoral como um candidato-laranja de Lula. Seu padrinho é um ficha-suja com sentença de segunda instância. Mas Haddad o chama de “preso político”. Com isso, desrespeita o Judiciário. Nesta quarta-feira, em entrevista a jornalistas estrangeiros, o candidato petista teve mais uma chance de se reconciliar com o óbvio. Esbarrou no óbvio, tropeçou no óbvio e, sem pedir desculpas, seguiu adiante.

Recordou-se a Haddad que muitos eleitores da periferia votaram em Bolsonaro por estar descontentes com PT. O que o partido pode fazer para reconquistar essas pessoas? E o candidato: “Olha, acho que são gestos que precisam ser feitos pela classe política em geral, para repactuar a República com essa camada social.”

Instado a falar sobre os erros dos governos do PT na economia e na Venezuela, Haddad disse que já escreveu “ensaios longos sobre os equívocos que nós cometemos.” Não conseguiu reconhecer que os venezuelanos vivem sob um regime autocrático. Citou dois “equívocos”: 1) O excesso de desonerações fiscais concedidas no final do primeiro mandato de Dilma Rousseff; 2) A ausência de uma reforma política.

Abstendo-se de citar os escândalos do mensalão e do petrolão, Haddad acomodou toda a corrupção que marcou as administrações do PT sob o manto diáfano da reforma política. Para ele, o PT “não podia ter esperado o Supremo para pôr fim ao financiamento empresarial de campanha.” Por quê? “Qualquer pessoa podia falar em nome do partido, em nome do candidato, sem que houvesse sistema de filtros e controles.”

Sob Dilma, produziu-se a mais severa recessão da história. Foram ao olho da rua mais de 11 milhões de brasileiros. E Haddad sustenta que o único problema foi o excesso de desonerações do final do primeiro mandato de madame. Sob Lula e Dilma, o acerto das grandes propinas foi negociado no Ministério da Fazenda. Primeiro por Antonio Palocci. Depois, por Guido Mantega. A cúpula petista foi em cana, inclusive Lula. E Haddad passeia pelos escombros morais do petismo como se o responsável pelas ruínas fosse um sujeito oculto: “Qualquer pessoa podia falar em nome do partido…”

Ao lavar as mãos diante das agressões praticadas pelos apologistas de sua candidatura, Bolsonaro revela-se um personagem sem estatura para ocupar o assento de presidente. Ao sonegar uma autocrítica aos brasileiros, Haddad estimula a conclusão de que, eleito, repetirá os desatinos econômicos de Dilma e permitirá que correligionários e aliados voltem a plantar bananeira dentro dos cofres públicos.

A palavra de um presidente da República é o seu atestado. Ou a plateia confia no que seu presidente afirma ou se desespera. A suspeita de que as boas intenções dos presidenciáveis não passam de um disfarce de quem não tem condições de se dissociar da própria precariedade ou da voracidade da banda podre do seu partido conduz o brasileiro a um ceticismo terminal. Daí a conclusão exposta no primeiro parágrafo: Bolsonaro e Haddad ainda não foram capazes de inspirar bons exemplos. Mas tornaram-se ótimos avisos.

É verdade esse 'bilete'

O PT mudou de roupa do domingo para a segunda-feira. Saíram as camisetas “Lula livre” que Fernando Haddad vestiu no primeiro turno nas visitas a Curitiba ou nos caminhões de som pelo Nordeste e pela periferia e entrou o terno alinhado do candidato no Jornal Nacional.

Juntamente com a nova indumentária vieram acenos a um novo programa de governo, novos aliados, pacto contra fake news e até um elogio, vejam só, à social-democracia.

O próprio Lula, que comandou a campanha até domingo direto de Curitiba, por meio de cartas, orientações nas visitas à sede da PF e aparições na propaganda do PT, resolveu sair de cena. Liberou Haddad das visitas por ora.

O problema do PT é que a transmutação é tão repentina, ensaiada e interessada que é difícil de ser crível. Diferentemente das bateções de cabeça entre Jair Bolsonaro e o candidato a vice, Hamilton Mourão, sobre Constituinte de notáveis, no caso do PT a defesa a que se rasgue a Constituição e se escreva outra, sabe-se lá como, está consignada no plano de governo, que foi coordenado pelo próprio Haddad. Mais: foi dita em voz alta por ele em setembro.

Não basta dizer que era “pegadinha do malandro”. O programa de governo do partido será revogado? Só nesta parte ou será inteiramente refeito? Sim, porque ele contém outros pontos claramente autoritários, dos quais já tratei aqui: controle social da mídia e também a mudança nos conselhos nacionais de Justiça e do Ministério Público para torná-los mais “permeáveis” à sociedade (ou ao partido?).

O PT passará a respeitar decisões judiciais? Haddad, caso seja eleito, o fará? Sem compromissos claros, não basta um arremedo de carta ao povo brasileiro. Diante das sistemáticas ações petistas de achincalhe às instituições desde o início da Operação Lava Jato, passando pelo impeachment e atingindo o ápice na condenação e prisão de Lula, a guinada está mais para o meme que vai no título desta coluna.