sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Vidas importam pouco para o governo de Jair Bolsonaro

Há mais mortes em países onde armas de fogo estão ao alcance da maioria dos cidadãos. Pois o presidente Jair Bolsonaro quer facilitar ainda mais o acesso dos brasileiros a armas. Por aqui, cerca de um milhão de pessoas dispõem de armas legalizadas.

Não há comprovação científica de que a cloroquina e outras drogas curem as vítimas do coronavírus. Pois Bolsonaro insiste em defender “o tratamento precoce” que em nenhuma parte do mundo foi adotado por ser claramente ineficaz.


Só vacinas funcionam contra o vírus. Mas em sua live semanal no Facebook, Bolsonaro voltou a duvidar da eficiência delas, riu quando o diretor-geral da Agência Nacional de Vigilância Sanitária disse que se vacinará, e negou que fará o mesmo.

Por temer que os vídeos onde ele recomenda o uso da cloroquina sejam apagados, e outras provas destruídas, o Ministério Público Federal providenciou o download deles. Bolsonaro e o ministro Eduardo Pazuello, da Saúde, estão sendo investigados por isso.

Levantamento feito em 2019 pelo jornal Folha de S. Paulo mostrou que a média de mortes nas estradas brasileiras caiu aproximadamente 22% nos trechos em que há radares de velocidade após a instalação dos equipamentos.

Naquele ano, o primeiro de Bolsonaro na presidência da República, ele tentou acabar com os radares, mas esbarrou na Justiça. Ontem, prometeu:

“Era uma festa no Brasil. Tínhamos mais de 8 mil pontos [de radares], conseguimos passar para 2 mil. Eu quero zerar isso daí, porque não deu certo”.

É ou não é o governo da morte?

Imagem do Brasil

 


A teia armada de Bolsonaro

Jair Bolsonaro foi chamado de genocida e fascista em plena Câmara dos Deputados e reagiu com um alegre "Nos vemos em 22!". É o seu estilo. Não só nenhum conceito o abala —uma zebra se abala ao ser chamada de zebra?—, como está convicto de sua reeleição em 2022. Talvez com razão, porque vive em campanha desde a posse, a 1º de janeiro de 2019 —o que inclui apunhalar aliados, corromper as instituições e tapear os que, bovinamente, acreditam nele. Enquanto isso, e sem que se perceba, tece uma vasta urdidura armada para, de um jeito ou de outro, se perpetuar no poder.

Sua atração por oficiais de baixa patente, PMs, bombeiros, delegados e investigadores, por exemplo, não é um desvio suspeito como parece. Bolsonaro os vê como sua tropa de choque numa eventualidade. A cada formatura de cadetes ou baile de sargentos a que comparece, planta a sedição —os milicos sabem bem o que é isso. E não descansará enquanto não minar a autoridade estadual sobre as polícias Civil e Militar, drenando-as para si, com o que, no caso de um possível confronto, elas atirarão a seu favor.



A obsessão em promover a compra e o porte de armas pela população também não se refere à nossa segurança pessoal —você se vê reagindo a um arrastão em seu prédio?—, nem é um mimo aos "colecionadores" de fuzis e matadores de jacarés. É para armar os seus 30% de seguidores.

Seria um acaso que ele e seus filhos tivessem tantos milicianos, pistoleiros e armazenadores de munição como funcionários, vizinhos de condomínio ou parças de churrasco? Getulio Vargas, por razões higiênicas, deixava esse contato a cargo de Gregorio Fortunato. Os Bolsonaros dispensam intermediários.

E ele já tem gente infiltrada em todas as repartições federais, monitorando decisões, medidas, contratações. Se você trabalha numa delas, o home office tem pelo menos esta vantagem —poupa-o do mau cheiro.

O estreito caminho pela frente

As eleições no Congresso nos remetem a uma situação relativamente familiar: o mecanismo do “toma lá da cá”, que muitos supunham estar esgotado na política, voltou ao centro da cena. E desta vez com poucos esforços para disfarçar. O governo destinou mais de R$ 3 bilhões de verbas aos parlamentares e Bolsonaro confessou que iria influenciar a escolha num Poder que deveria ser independente.

Para quem vive há muitos anos o processo político brasileiro, é como se um ciclo se encerrasse. As relações fisiológicas degradam a política nacional e criam condições para que surja alguém prometendo tudo mudar e trazer consigo uma “nova forma de fazer política”.

Ao cair de cabeça no velho fisiologismo, Bolsonaro não somente reconstrói uma cena política que estamos cansados de ver. Há diferenças agora. Como ele e outras figuras, como Wilson Witzel, eram os arautos de uma “nova política”, é possível esperar que a própria ideia de novidade radical entre em decadência, o que, aliás, de certa forma já foi revelado em algumas cidades nas eleições de 2020.

Um dos subprodutos da vitória de Bolsonaro no Congresso foi desmantelar o centro. Em política, talvez isso não signifique um mundo que desmorona, como no verso de Yeats – “the center will not hold”. Significa apenas que aumentam as possibilidades de polarização.

Afinal, o centro, que foi implodido por Bolsonaro, acabaria se rompendo de qualquer forma. Não há consistência nesses partidos e, estrategicamente, o melhor seria um racha, com o lado da oposição democrática tentando se viabilizar na própria sociedade.



Quando Bolsonaro se elegeu, as barreiras de contenção de suas tendências autoritárias seriam o Congresso e o STF. Agora seu candidato obteve 302 votos, seis a menos que o necessário para aprovar uma emenda constitucional. Por essa e muitas razões, a democracia brasileira ficou mais vulnerável. Dificilmente serão considerados os crimes de responsabilidade que se sucedem na condução da pandemia. O negacionismo de Bolsonaro tem agora uma base parlamentar.

Aliás, uma demonstração disso foi a festa para 300 pessoas na comemoração da vitória de Arthur Lira, em Brasília. Horas depois de dizer em discurso que era preciso vacinar, vacinar, vacinar, o novo presidente comemorava com grande número de pessoas sem máscara.

Isso não é um detalhe. A posição negacionista se estende também ao combate ao uso de máscaras, consideradas por alguns “mordaças ideológicas”. É algo tão característico de escolhas políticas que nos Estados Unidos Joe Biden decretou o uso obrigatório de máscara em propriedades federais.

É necessário concluir que a mudança no Congresso, apesar da retórica, pode fortalecer a política negacionista. Nesse caso, não se trata mais de ameaça à democracia, mas do avanço de uma política que mata.

É evidente, hoje, que dois tipos de contenção foram necessários. Um para evitar a ruptura democrática, que se tornou menos viável para Bolsonaro após a prisão de Fabrício Queiroz. Mas continua sendo necessária a contenção da política que contribui para a morte de milhares de pessoas.

O STF avançou nisso, sobretudo no momento em que definiu a responsabilidade conjunta de União, Estados e municípios. Tentou avançar em alguns outros pontos, como a exigência de uma política de proteção às populações indígenas, e solicitou também um plano nacional de vacinação. Onde foi necessário investigar diretamente a responsabilidade pelas mortes de Manaus, determinou uma investigação policial.

Mas o Congresso, disperso, agiu pouco. Aqui e ali entrou com denúncias no Supremo, mas não considerou uma tarefa coletiva deter a política de Bolsonaro e oferecer uma alternativa que pudesse salvar vidas, e não exterminá-las.

O que será agora da ação do Congresso na pandemia, com o poder nas mãos de aliados de Bolsonaro? Uma das saídas é a oposição reconhecer suas dificuldades e tentar viver este novo momento com habilidade para unir e coragem para combater os erros do governo.

Neste momento em que o poder no Congresso se concentra nas mãos de aliados de Bolsonaro, um caminho é buscar o equilíbrio por meio do encontro com a sociedade. Há pelo menos três temas que podem fortalecer esse encontro: a luta contra a pandemia, um processo organizado de vacinação e uma renovada ajuda emergencial aos milhões que ainda precisam dela.

No caso da ajuda emergencial, pode até haver uma convergência com o governo, mas é possível deixar claro que a oposição pressionou. Da mesma forma, o governo pode se convencer a vacinar, sob intensa pressão. No tratamento da pandemia as diferenças são abissais, intransponíveis. O governo nega sua importância, investe em remédios ineficazes, subestima testes e deixa que se estraguem, não sequencia nem rastreia novas variantes. E quando são descobertas, como no caso de Manaus, não existe um esboço de plano nacional para conter seu impacto.

É preciso simultaneamente evitar o sacrifício produzido pelo negacionismo e coletar provas de sua ineficácia, para ser responsabilizado adiante. Se o Congresso o blindar, existe o Supremo, se o STF não o punir, há o Tribunal Internacional.

A perda de espaço num Congresso fisiológico é menos importante do que o encontro da política com o sofrimento humano. Basta olhar para fora.

Dança macabra sobre mais de 200.000 corpos brasileiros


“Zig e zig e zig, morte em cadência…
Golpear uma cova com seu calcanhar,
A morte à meia-noite toca uma melodia para dançar,
Zig e zig e zag, em seu violino”.

Henri Cazalis, em seus versos que inspirariam o poema sinfônico de Camille Saint-Saëns, jamais imaginou que estaria narrando uma cena do século 21, em plena pandemia e num longínquo território do planalto central.

Mas a realidade é que seu poema não passa de uma paródia antecipada da realidade do Brasil atual.

As cenas que o Brasil conheceu, com a festa para 300 pessoas promovida nesta semana por Arthur Lira ao ser eleito presidente da Câmara de Deputados, são um insulto às milhares de famílias brasileiras que ainda buscam forças e razão para viver diante da perda de seus avós, filhos, esposas ou amigos queridos.

Imagens ofensivas, que geram náuseas. Uma comemoração do sepultamento de valores. Uma festa para iniciar uma procissão com o caixão de instituições. Danças para mandar um recado de que, em meio à corrupção de ideais, a democracia pede oxigênio.

São cenas que chocam diante da ousadia em desafiar um vírus, o bom-senso, a ciência e a decência.

Não bastou termos um dos maiores números de casos da covid-19 do planeta. “Zig e zig e zag, a morte continua rasgando incansável seu instrumento”.

Não bastou um Governo que promoveu políticas deliberadas para permitir a circulação do vírus e desmontou estruturas destinadas para lidar com a saúde. “Zig e zig e zig, Que Sarabanda!”.

Tampouco bastou “passar a boiada”, forjar planos de poder, silenciar minorias pelo abandono e asfixiar sonhos. “Zig e zig e zag, vemos na banda o Rei brincar com o vilão!”.

Numa festa que foi um retrato da decadência moral, ecoava pelos salões um dos trechos finais do poema de Cazalis: “Viva a morte”.
Jamil Chade

Como a China fez Bolsonaro comer em sua mão

Até uns meses atrás, o presidente Jair Bolsonaro era contra qualquer tipo de vacinação contra o coronavírus. Especialmente se a vacina fosse da China. Seu governo, disse ele categoricamente em outubro, não compraria a Coronavac. Bolsonaro chegou a suspender temporariamente o processo de registro do imunizante junto à Anvisa. Repetidamente, seu filho Eduardo e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, se revezaram para atacar a China como o culpado por trás da pandemia.

Mas agora está tudo calmo. Bolsonaro e sua claque interromperam suas investidas contra Pequim e a vacina chinesa. A razão: as entregas de insumos por parte da China para a produção da vacina no Instituto Butantan, em São Paulo, não se materializaram. A produção, que havia acabado de começar, corria o risco de parar. E isso se tornou um problema existencial para o presidente populista de direita.

Porque, por um lado, seus índices de aprovação caíram abruptamente com o fim do auxílio emergencial. Por outro, cada vez mais brasileiros querem ser vacinados. As condições catastróficas em Manaus e a fraca gestão da crise por parte do ministro da Saúde podem ter contribuído para isso. O Brasil é hoje um dos países com o menor número de pessoas que se declaram antivacina do mundo.



Tudo isso parece ter causado uma mudança de sentido em Bolsonaro. Agora o governo está se esforçando para obter vacinas. Mas isso é complicado quando você já destruiu pontes, como com a China. Oficialmente, o presidente recorreu ao governo em Pequim para obter novos ingredientes de vacinas. Quando as autoridades chinesas anunciaram novos suprimentos, Bolsonaro lhes agradeceu gentilmente pela boa cooperação.

Mas tudo isso não saiu de graça. Nos bastidores, o ministro das Comunicações, Fabio Faria, teve que mexer os pauzinhos. Pois não há dúvidas sobre o que a China espera em troca de entregas rápidas de vacinas: o acesso irrestrito da Huawei na licitação da rede G5. O governo brasileiro tem até agora se recusado a admitir a empresa estatal chinesa, assim como muitos outros países ocidentais, especialmente os Estados Unidos. A acusação é de que que a China usaria a tecnologia para fins de espionagem.

Mas, desde o final da semana passada, isso parece não ser mais um problema. A Anatel, órgão regulador das telecomunicações, declarou, de repente, unanimemente que não havia objeções ao envolvimento da Huawei. E no caso de o governo Bolsonaro mudar sua política em relação à Huawei, como já fez algumas vezes, foram tomadas providências: os suprimentos semanais da China para a produção da vacina provavelmente ainda serão existencialmente importantes até o fim do ano, para que a campanha de vacinação não pare. Os leilões para a rede móvel devem ser realizados em paralelo, o mais tardar na metade do ano. É difícil pensar em uma moeda de troca diplomática melhor para fazer com que outro governo cumpra sua parte.

No futuro, é provável que as escolas diplomáticas em todo o mundo analisem em detalhes a estratégia da China em relação ao Brasil nos últimos meses. É uma jogada de mestre como Pequim, a partir de uma posição de fraqueza, domina agora as relações com o Brasil. Afinal, a pandemia começou sua propagação global na China. E a China é dependente das commodities agrícolas do Brasil.

Mas agora a influência política chinesa no Brasil é maior do que nunca. Bolsonaro caiu na armadilha. Pequim agora também decide sobre sua sobrevivência política.
Alexander Busch

Pensamento do Dia

 


O direito de saber se sobrepõe ao do esquecimento

O STF julgará a partir de hoje, se não houver interrupção, um tema fundamental para a manutenção da liberdade de imprensa: o que vem sendo chamado de “direito ao esquecimento”. O julgamento foi motivado por uma ação movida por familiares de Aída Cury, violentada e assassinada em 1958, num crime que chocou o país e virou tema de um programa da Rede Globo, meio século depois (o Linha Direta). Os irmãos de Aída Cury não gostaram de ver o crime relembrado em rede nacional e pediram indenização à emissora. Perderam em todas as instâncias e o caso foi parar no Supremo.

As implicações de uma decisão que chancele o “direito ao esquecimento” pode criar sérios entraves à liberdade de imprensa porque suspeitos de quaisquer crimes investigados pela polícia ou descobertos por repórteres investigativos, bem como criminosos que já receberam veredicto, encontrarão nesse entendimento uma forma de evitar que os seus nomes sejam citados em reportagens e uma brecha para que eles venham a ser cancelados em sites de busca — aliás, isso já vem ocorrendo isoladamente, por ordem de juízes de primeira instância. No limite, reivindicarão que os seus nomes sejam apagados até mesmo dos arquivos dos veículos de comunicação. No limite, igualmente, o jornalismo investigativo, nos seus diferentes campos, será inviabilizado por editores temerosos de processos de todo tipo.

O relator da ação que chegou ao Supremo é Dias Toffoli. Curiosamente, em 2009, ano em que foi empossado ministro, almocei com ele em São Paulo, na qualidade de redator-chefe da revista Veja. Abordamos assuntos gerais, como geralmente ocorre nesses encontros protocolares entre autoridades e diretores de jornal. Um deles foi o caso de uma condenada por fraudes na Previdência. A senhora cumprira a pena e refizera a vida. Estava, portanto, quite com a Justiça. Jamais havia contado à filha que viria a ter anos depois sobre o delito cometido e a pena que lhe fora imposta. No entanto, a filha descobrira tudo por meio do arquivo digital da Veja, recentemente lançado. A senhora, então, resolveu exigir na Justiça que a reportagem de anos atrás fosse retirada do ar.

Expressei a Toffoli a minha preocupação com as eventuais repercussões de uma decisão favorável à senhora. Afirmei que cancelar a notícia no arquivo digital equivaleria a entrar numa hemeroteca com a coleção da Veja e rasgar as páginas com a notícia. Não era questão de comparar o alcance do digital em relação ao do papel, mas de validar ou não um ato de censura, o que feria a Constituição.

Não sei, obviamente, qual será o voto de Toffoli no julgamento de hoje, mas ele me forneceu naquela ocasião um argumento para que a reportagem sobre a fraudadora fosse mantida no ar. “A filha dela tem o direito de saber sobre a sua própria mãe, e esse direito se sobrepõe ao do esquecimento”, disse ele. Achei o raciocínio fantástico. Saí do almoço com boa impressão do então novo ministro do Supremo. Uma década mais tarde, quem tentou cancelar notícia foi ele. Pois é.

É disso que se trata: do direito de os cidadãos saberem. O nome disso é história. O jornalismo é apenas o primeiro rascunho da história (a definição é de um editor americano) e, como tal, também faz parte dela, seja nos seus acertos como nos seus erros. Um erro histórico dos jornais brasileiros foi o das reportagens sobre a Escola Base, na década de 1980. Repórteres e editores compraram a versão de um delegado de que crianças eram abusadas pelos donos do estabelecimento e eles se viram jogados no inferno. É um erro que merece ser eternizado como alerta para nós, jornalistas, e não cancelado.

Pegue-se agora um acerto que envolve a imprensa nas duas pontas: o do assassinato da repórter Sandra Gomide, em 2000, pelo então diretor de redação do Estadão, Antônio Pimenta Neves. O crime foi amplamente noticiado, sem nenhum corporativismo da parte dos jornais. O assassino terá o direito de solicitar que os registros sobre a sua abominação sejam apagados? No paralelo direto com o processo dos irmão de Aída Cury, a família de Sandra Gomide poderá impedir que se reconte a execução covarde sofrida por sua filha?

Manter viva a memória de crimes — e, no caso, está-se falando do que passou a ser chamado de feminicídio — é preservar no longo prazo parte importante da história do cotidiano, dos usos e costumes de um povo, da sua evolução ou involução, do funcionamento ou disfuncionalidade das suas instituições. No curto prazo, é acender o farol da vigilância e fazer profilaxia. O sensacionalismo indevido em torno de um crime de sangue não é defensável, claro. Mas não é disso que trata ou deveria tratar o julgamento no STF sobre o “direito ao esquecimento”. É de liberdade de imprensa que se está falando, do direito de os cidadãos serem informados e lembrados, da impossibilidade de a verdade ser tutelada, por mais doloroso que isso possa ser para indivíduos que se sentem condenados a uma “pena perpétua” por terem entrado no noticiário (a vedação da “pena perpétua” é a justificativa para o “direito ao esquecimento”). O interesse social deve prevalecer.

Não apaguem a história ou o esboço dela, o jornalismo. Inclusive porque só vai piorar a tendência nacional de esquecer a cada 15 anos o que aconteceu nos últimos 15, como disse Ivan Lessa.

Mario Sabino

Síndrome do cunhado

Muito se falou no chavão “criminalização da política” como uma das justificativas para a sucessão de fatos que levou à eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

Trata-se de uma leitura bastante rasa e condescendente com a roubalheira que os políticos promoveram como se não houvesse amanhã, ao longo de sucessivos mandatos e que, quando foi descoberta, gerou, sim, uma onda de compreensível indignação com a classe política.

Acontece que os políticos não só não perceberam isso a tempo, como menosprezaram os efeitos que isso teria. Cansei de ouvir de próceres de vários partidos, da esquerda à direita, em 2018, as seguintes avaliações:

1) corrupção nunca foi fator decisivo para eleição, bastava ver que Lula tinha sido reeleito em 2006 mesmo com o mensalão;

2) redes sociais nunca elegeram ninguém;

3) Bolsonaro desidrataria quando começasse o horário eleitoral, pois as eleições ainda seriam definidas pela equação clássica: tempo de TV, coligação forte e grana.

Bolsonaro fez um rocambole de tudo isso, regou com leite condensado, e a política, além de criminalizada, ficou humilhada no cantinho do pensamento.

Eis que, mais de dois anos e quase 230 mil mortos pela pandemia depois, os políticos do autoproclamado centro democrático estão marchando docemente para o cadafalso, atrelando seu destino ao de Bolsonaro.



Para o presidente do DEM, ACM Neto, Bolsonaro não é um extremista. Como chamar alguém que desdenha uma pandemia, que frequenta e incentiva atos pelo fechamento do Supremo e do Congresso, que aparelha instituições como a Polícia Federal e o Coaf, que investe por meio de decretos contra a pauta de direitos humanos e de defesa do meio ambiente, que acusa fraude eleitoral sem provas e insinua dois anos antes que isso pode ocorrer se não houver voto impresso?

O que precisará acontecer para que o presidente brasileiro seja reconhecido como o que é: um expoente de uma cepa de políticos de corte neopopulista que usa de expedientes como a propagação de fake news, o enfraquecimento deliberado da imprensa e do sistema de freios e contrapesos da democracia e a difusão do ódio para se manter no poder?

Diante do cálculo de curtíssimo prazo de líderes como ACM Neto, que priorizam a aproximação a um presidente mal avaliado e mal-intencionado à construção de uma alternativa sólida e viável de poder que tire o país dessa encalacrada social, econômica e institucional em que está enfiado, Bolsonaro vai ganhando, justamente dos políticos a quem desprezou em 2018, um passaporte de vida fácil para 2022.

Acontece que, como escrevi aqui na quarta-feira, a vida real caminha de forma bem diferente do minueto desconjuntado da política. Na Bahia de ACM Neto, faltam vacinas, faltam leitos de UTI, falta comida, falta auxílio emergencial e falta base social para o bolsonarismo. Em nome de que, então, o presidente do DEM opta por implodir a própria legenda, depois de um sucesso nas urnas? O tempo vai responder em nome de quê.

Enquanto isso, graças a análises equivocadas como essa, Bolsonaro, o “não extremista”, vai se comportando depois das vitórias congressuais que lhe foram dadas de bandeja como o cunhado folgado que chega na casa do outro e tira o sapato com chulé, coloca o pé em cima do pufe, faz uma piada homofóbica com o sobrinho e assalta a geladeira para acabar com a cerveja.

Quando a classe política resolver reagir, pode ser tarde, como viram os atônitos integrantes do Partido Republicano, que não contiveram o também extremista Donald Trump e o deixaram questionar as eleições, incentivar a invasão do Capitólio e desgastar uma democracia sólida como a americana.

Por aqui, o centro com vocação para cunhado bonachão não aprendeu absolutamente nada nos últimos anos.

A hora da verdadeira oposição

O chavismo estabeleceu uma sólida ditadura na Venezuela não apenas como resultado da truculência golpista do falecido caudilho Hugo Chávez e de seu impiedoso herdeiro, Nicolás Maduro, mas também – e talvez principalmente – pelo sucesso do assalto promovido pelos gângsteres bolivarianos às instituições de Estado. E esse assalto foi bem-sucedido, entre outras razões, pela ausência de uma oposição organizada, unida e com propósitos claros.

O tenebroso exemplo venezuelano deve ser lembrado justamente no momento em que o bolsonarismo avança insidiosamente sobre as instituições democráticas brasileiras. Cada dia que passa sem reação à altura desse desafio ajuda a consolidar esse desmonte do sistema de freios e contrapesos, que limita o poder numa democracia representativa.

Tal como ocorreu na Venezuela, a oposição a Bolsonaro claramente perdeu-se em lutas internas, movidas por objetivos imediatos e paroquiais, que só dizem respeito aos interesses eleitorais de seus caciques, sem qualquer conexão com os anseios da sociedade.

A mediocridade das forças que poderiam obstar a marcha bolsonarista permitiu que o presidente Jair Bolsonaro, malgrado suas inúmeras agressões à democracia e seu criminoso desserviço ao povo em meio à pandemia de covid-19, conseguisse eleger seus candidatos ao comando da Câmara e do Senado.

Para adicionar insulto à injúria, vários parlamentares supostamente de oposição aderiram às candidaturas patrocinadas por Bolsonaro, ávidos por participar do festim governista no Congresso e por obter espaços nas Mesas Diretoras e nas comissões. Nem na Venezuela a oposição foi tão pusilânime.

Os partidos com maior consistência ideológica – PSDB, DEM e PT – parecem perdidos com questiúnculas de poder e profundas contradições internas, que embaralham seu discurso e enfraquecem a mensagem com a qual pretendem motivar o eleitorado.

Com a fragilização desses partidos tradicionais, restam no horizonte político pouco mais de duas dezenas de legendas que só existem para aproveitar as oportunidades fisiológicas abertas pelo governismo. Há de tudo nesse balaio: de partidos cujos proprietários foram condenados por corrupção a agremiações que se alugam para quem pagar mais. No topo de tudo, temos um presidente da República que já foi de oito partidos e hoje nem partido tem, o que dá a exata medida do menosprezo bolsonarista pelo debate partidário próprio das democracias.


O que une esses indigitados é sua absoluta indiferença às necessidades do País e sua associação com lobbies empenhados na manutenção de privilégios. Para eles, a democracia é mero instrumento de apropriação do poder e de suas benesses.

Para interromper essa putrefação da democracia, é necessário que haja uma oposição digna do nome. Para começar, é preciso ser oposição de verdade, sem hesitação.

“Do meu ponto de vista, o PSDB deveria ser mais claramente de oposição”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em entrevista ao "Estado", na qual avaliou, de modo sombrio, o comportamento de seu partido na eleição para o novo comando do Congresso. “A força do presidente da República é muito grande e é muito difícil ganhar uma eleição no Congresso contra o presidente. Mas, se não vai ganhar, é para marcar posição. Acho que o PSDB ficou um pouco esvaecido lá”, disse FHC, num diagnóstico que serve para os demais partidos de oposição.

Para o ex-presidente, é a própria sobrevivência do PSDB que está em questão. “Em política, ou você tem posição clara ou fica difícil. O povo não é bobo. A gente pensa que a população não percebe, mas percebe. Se você não toma posição no momento oportuno, quando chega a hora H é tarde.”

FHC advertiu que “o PSDB precisa tomar rumo, precisa ter uma palavra afirmativa forte” – do contrário, corre o risco de acelerar seu “ciclo descendente”. Ou seja, o PSDB e os demais grandes partidos de oposição talvez continuem a existir, mas perderão a razão de sua existência caso se permitam confundir com as siglas que mercadejam votos e só pensam na próxima eleição. É tudo o que o Chávez de Eldorado quer.