quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Brasil, país de futuro

 


O dinheiro que veio de estranho lugar

Ainda hoje, a história da gastroenterologia debate o caso que assombrou especialistas. Porque ele passou a fazer parte dos anais científicos. Jamais se viu coisa igual. Curioso, anômalo, singular. Tudo começou em calma madrugada, durante a pandemia de coronavírus. Um senador terrivelmente medíocre, mas unha e carne com o presidente da nação, sentiu cólicas intestinais tenebrosas. Foi ao banheiro, nada. As dores aumentaram. Chamaram o Sistema Popular de Medicina, do qual aliás o senador tinha desviado Himalaias de verbas, uma vez que tinha se formado nas melhores universidades do ramo, as cariocas, e o político foi levado ao hospital para uma lavagem ou enema ou clister.

Quando veio a reação, os médicos se entreolharam, fascinados. Mais que isso, às gargalhadas. Ajustaram fortemente as máscaras por causa do cheiro e chamaram colegas, laboratoristas, enfermeiros, auxiliares. Nunca ninguém tinha visto aquilo, ficaram maravilhados. Em lugar da habitual massa que costuma sair de condutos próprios, atravessando pequeno orifício circular existente há milhões de anos nos seres humanos, o que estava sendo expelido aos borbotões? O quê? “Não é possível”, disse o diretor. “Só não grito milagre porque sou terrivelmente ateu.”

Dinheiro. Dinheiro vivo jorrava. Cédulas e cédulas do mais alto valor que a nação hoje fabrica. As lindas notas de 200 reais com o lobo-guará. Foi a primeira vez que aquele corpo científico viu uma nota de 200. Estavam em circulação, porém ninguém as tinha recebido. Havia filas quilométricas nos bancos e caixas eletrônicos tentando pegar alguma. Mas eram mais inacessíveis que o pagamento emergencial para a covid. A coisa parecia reviver a galinha dos ovos de ouro. Ou tinha-se a sensação que o rei Midas da Frigia, levado pelo gênio da garrafa, Wassef, escondia-se na barriga do senador.

Trouxeram baldes com detergentes e desinfetantes e todos – com alguma repugnância, parece que o senador tinha comido lixo – começaram a apanhar as notas, colocando-as de molho a fim de eliminar resquícios, chamados vulgarmente de bosta. Mesmo nome daquele candidato político de Bauru, ou o Merda, de Dobrada, ambos do interior paulista. Isso é que é lavagem de dinheiro, comentavam, receosos que a Polícia Federal chegasse. Ninguém levantou a possibilidade de ficar com aquele mundo de notas que fluía gastricamente.

Decidiram que, antes que o ministro da Economia soubesse e criasse novo imposto, que não ia cheirar bem, correram e depositaram tudo em nome de uma organização social. A imprensa repercutiu. O nome do senador – político do clero subterrâneo – viralizou, ele foi celebrado pelos seus pares e eleito presidente do Senado. Motivo: fenômeno da ciência, estudado por revistas como a Lancet, o Journal of Organic Chemistry, Annual Reviews, Nature Science, New England Journal of Medicine.

Prêmios Nobel de Medicina e Ciência foram chamados. Vieram, avaliaram e disseram que era assunto para escritores como Gabriel García Márquez e Luis Fernando Verissimo, Antonio Prata, Sergio Abranches, Antonio Torres, Alberto Mussa e Loyola Brandão, ou historiadores como Lira Neto e Heloisa Starling. Márquez já morreu, os outros não deram retorno. Todos senadores, parlamentares, ministros, políticos, o Centrão inteiro, o trio O1, O2, O3 procuraram o senador a fim de que ele revelasse a fórmula do que comia e se tornava dinheiro vivo. Modesto, ele confessou: “nada mais do que o frugal, o mesmo que o Supremo come, lagosta, caviar, faisão, escargô, patê da campagne, foie gras chaud, presunto Pata Negra, javalis da Pomerânia”.

A vida do senador passou a ser um agito. Fêrvo, como se diz em Araraquara. Todos se postaram à porta do seu banheiro, para ver o que tinha sido produzido. A família não aguentava mais a pressão, não havia sossego. Pastores de mil religiões exigiam sua presença a fim de relatar o que consideravam milagre de Deus. Passou a receber boletos exigindo pagamento do dízimo. A Receita Federal revisou suas declarações, viu que ele jamais declarou o que evacuava, foi processado, multado. Não suportando mais, o senador pediu habeas corpus ao Supremo e sumiu. Como o traficante André do Rap. Igual ao Queiroz, protegido por Wassef, o bom samaritano.

Este episódio entrou para os Anais da Medicina. Filólogos, etimologistas e gramáticos admitem que a palavra Anais nunca foi tão apropriada.

Marcha, soldado

Se os militares fossem tão argutos como se julgam, já teriam percebido que Freud explica. Jair Bolsonaro está tendo a oportunidade de descontar as humilhações que sofreu em sua medíocre carreira no Exército e se vingar dos oficiais que um dia bramiram na sua cara por alguma corneta que tocou errado ou cavalo que deixou de lavar. Na condição de presidente da República, donde chefe supremo das Forças Armadas, é a sua vez de bramir contra militares de alta patente, vários na ativa.

A própria militarização que está promovendo no governo —quase 7.000 milicos infiltrados em entranhas influentes da administração— serve a esse fim. Com ela, Bolsonaro mostra que pode ser generoso, dando-lhes confortáveis sinecuras, nomeando-os para funções incompatíveis e concedendo-lhes benefícios que nega aos servidores civis, mas que também pode tirar-lhes tudo isso quando quiser. E, para provar, dedica-se a devolver o dedo na cara apontando-o para os generais “de sua confiança”.



É a tática de Bolsonaro para reduzir seus generais a recrutas. Insulta-os ou induz seus jagunços a insultá-los. Daí obriga-os a engolir as ofensas ou arranca-lhes os botões. O primeiro a aprender com quem estava falando foi o general Santos Cruz, rapidamente expelido. O general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde que não sabia o que era o SUS, é outro que acaba de cair em si. Na única medida autônoma e sensata que tomou, de apoiar a compra de vacinas para a imunização dos brasileiros, foi quase fuzilado por Bolsonaro, que lhe impôs desdizer-se e se acoelhar para não ser demitido.

Há dias, o general Luiz Eduardo Ramos foi dormir com as orelhas ardendo e ainda se desculpou por ter sido grosseiramente ofendido. E haverá outros. Os bragas, helenos e mourões que se cuidem.

É o cabeça de papel dando ordens de marcha-soldado a homens que trocaram o mandar por obedecer —e logo a quem.

A metafísica da cueca

“Estamos em tempos de cuecas”, diz Fuldêncio Silva, meu velho companheiro do Bar do Soares, aqui de Niterói, levantando um trago de cachaça de olho zombeteiro no meu uísque.

– Aliás – continua ele, sério como um ministro prestes a ser desmoralizado pelo frenético presidente absolutista –, a cueca é uma veste metafísica. Ela faz parte das indumentárias da intimidade, essas roupas que, mesmo fabricadas com os mais caros tecidos, são ocultas e desnudam. Está em oposição ao conjunto das vestes reais ou talares.

É triste constatar que muitos dos nossos dirigentes estão de cueca. Cuecas não foram feitas para guardar coisa alguma, mas para ocultar e proteger o hemisfério do nosso corpo concebido como o mais complicado. Calcinhas despertam luxúria, cuecas encarnam a vulgaridade masculina. Elas cobrem o equador moral – os genitais e a intrigante bunda que, perdoe-me o trocadilho, abunda com sua igualmente potente metafísica o nosso imaginário ou filosofia. No Brasil, existem filósofos da bunda, bem como, muitos bundões...

– Uma filosofia de bunda ou da bunda? – perguntei, provocador.

– Os dois lados competem sem saber que são interdependentes. Pois o que é um intenso simbolismo senão uma metafísica? Algo que a educação reprime, mas que a política realizada com feroz egoísmo, invejável desatino e admirável ambiguidade é rotina no Brasil?

E a cueca – prosseguiu Fuldêncio – tem afinidade com personagens curiosos e obviamente anormais: os “políticos” que, salvo um ou outro, ofendem a política e caracterizam esse extraordinário momento, no qual as cuecas retornam à cena, ativando identidades corporativas senatoriais, já que o ridículo de um senador com dinheiro na cueca afeta a corporação da qual ele faz parte, salvando ou desmoralizando a categoria. Lembro – avançou o expositor – que a cueca esteve na esquerda petista e hoje integra o bolsonarismo.



A cueca na sua metafísica nacional esconde um pedaço do corpo e serve para guardar dinheiro escuso. Esse produto da politicagem em família, que os antigos equacionavam com aquilo que a bunda produz como o maior símbolo de impureza. Pois o dinheiro guardado apodrece. Vira excremento – esse tesouro do diabo – e dos políticos imorais que sodomizam o Brasil. Entre nós, até a cura vira uma patologia política...

A cueca, como as luvas, o sapato e o chapéu, sinaliza as fronteiras do corpo. O chapéu é como a coroa ou o halo dos reis e dos santos. As luvas protegem nossas delicadas mãos, alérgicas ao trabalho físico a ser feito por escravos. As roupas transcendem a utilidade e adquirem contornos metafísicos. Elas protegem e acusam imoralidades. É o que ocorre quando a roupa de dentro é posta do lado de fora. Ou quando a cueca senatorial escandaliza porque virou carteira de dinheiro. Em vez de intermediar a sujeira interior e limpeza exterior, ela comprova o quanto vilipendiamos a nobre e honrada arte da política. Maquiavélica, é claro, mas com lógica e senso de serviço senão ao príncipe, pelo menos à pátria. Nada é mais selvagem do que flagrar senadores com mochilas e cuecas cheias de dinheiro!

– Aliás, foi Chaplin quem me mostrou a importância cósmica do traseiro. Ele possuía uma perfeita consciência de que todos iriam rir da figura pomposa, narcisista e autoritária caindo de bunda num chão nivelador e igualitário!

A vergonha está na cara, mas nada é mais indigno do que um chapliniano pé na bunda. Aliás, é o que merece essa brincadeira errática de Bolsonaro com o autoritarismo.

É patético, continuou Fuldêncio Silva, ver um traseiro fora de hora ou, inversamente, mostrá-lo para um desafeto, fazendo o que os americanos chamam de “mooning” – um “aluamento” – revelador de desprezo. O insulto está em mostrar que o inimigo não merece a nossa cara (repositório de vergonha, honestidade e honra), mas o lado mais oposto do nosso corpo. Essa máscara rabelaisiana que, como uma cara, tem bochechas, olho, tenta falar e, no Brasil, não teria gênero. Por isso, pode ser degustada como comida por quem a aprecie.

– Jamais havia pensado nisso – ouviu-se em torno da mesa.

– Pois é! Vivemos num país que fala muito e pensa pouco. Sobretudo sobre si mesmo – arrematou o sempre raivoso Mario Batalha com sua careca na qual reluzia o meu sorriso, pois havia, finalmente, encontrado o assunto da crônica.

Memento mori

Legiões acampadas. Entusiasmo nas centúrias extasiadas pela vitória. Estandartes tomados aos inimigos são alçados ao vento, troféus das épicas conquistas. O general romano atravessa o lendário rio Rubicão. Aproxima-se calmamente das portas da Cidade Eterna. Vai ao encontro dos aplausos da plebe rude e ignara, e do reconhecimento dos nobres no Senado. Faz-se acompanhar apenas de uma pequena guarda e de escravos cuja missão é sussurrar incessantemente aos seus ouvidos vitoriosos: “Memento Mori!” — lembra-te que és mortal!

O escravo que se coloca ao lado do galardoado chefe, o faz recordar-se de sua natureza humana. A ovação de autoridades, de gente crédula e de muitos aduladores, poderá toldar-lhe o senso de realidade. Infelizmente, nos deparamos hoje com posturas que ofendem àqueles costumes romanos. Os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião.

É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais.

Tão logo o mandato se inicia, aqueles planos são paulatinamente esquecidos diante das dificuldades políticas por implementá-los ou mesmo por outros mesquinhos interesses. Os assessores leais — escravos modernos — que sussurram os conselhos de humildade e bom senso aos eleitos chegam a ficar roucos.

Alguns deixam de ser respeitados. Outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas. O restante, por sobrevivência, assume uma confortável mudez. São esses, seguidores subservientes que não praticam, por interesses pessoais, a discordância leal.

Entendam a discordância leal, um conceito vigente em forças armadas profissionais, como a ação verbal bem pensada e bem-intencionada, às vezes contrária aos pensamentos em voga, para ajudar um líder a cumprir sua missão com sucesso.

A autoridade muito rapidamente incorpora a crença de ter sido alçada ao olimpo por decisão divina, razão pela qual não precisa e não quer escutar as vaias. Não aceita ser contradita. Basta-se a si mesmo. Sua audição seletiva acolhe apenas as palmas. A soberba lhe cai como veste. Vê-se sempre como o vencedor na batalha de Zama, nunca como o derrotado na batalha de Canas.

Infelizmente, o poder inebria, corrompe e destrói! E se não há mais escravos discordantes leais a cochichar: “Lembra-te que és mortal”, a estabilidade política do império está sob risco.

As demais instituições dessa república — parte da tríade do poder — precisarão, então, blindar-se contra os atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade, que advirão como decisões do “imperador imortal”. Deverão ser firmes, não recuar diante de pressões. A imprensa, sempre ela, deverá fortalecer-se na ética para o cumprimento de seu papel de informar, esclarecendo à população os pontos de fragilidade e os de potencialidade nos atos do César.

A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade. Por fim, assumindo o papel de escravo romano, ela deverá sussurrar aos ouvidos dos políticos que lhes mereceram seu voto: — “Lembra-te da próxima eleição!”

Paz e bem!

Otávio Santana do Rêgo Barros, general e ex-porta-voz da Presidência