quinta-feira, 12 de junho de 2025

O que sobra quando a realidade é só código?

Nos últimos meses, a revista Superinteressante reacendeu um debate que há décadas habita o limbo entre a filosofia e a ficção científica: a perturbadora possibilidade de que nossa realidade não passe de uma sofisticada simulação computacional. Essa hipótese, que já inspirou de Matrix até tratados acadêmicos, ganhou seus primeiros contornos filosóficos sólidos com o trabalho de Nick Bostrom, da Universidade de Oxford. Em seu artigo “Are You Living in a Computer Simulation?” (2003), o filósofo não afirma categoricamente que vivemos em uma simulação, mas propõe um trilema inquietante: ou (1) a humanidade desaparecerá antes de desenvolver a tecnologia para criar simulações conscientes; ou (2) civilizações pós-humanas não terão interesse em simular ancestrais; ou (3) — e aqui está o que faz tantos dormirem menos tranquilamente — quase certamente já somos entidades simuladas. Se o futuro trouxer impérios digitais capazes de rodar incontáveis simulações de universos, a probabilidade estatística de sermos os “verdadeiros” seria ínfima — como um grão de areia no deserto do possível.

Essa especulação ganhou uma roupagem, digamos, mais magnífica, nas mãos do físico Thomas Campbell, que, trabalhando em sistemas de simulação para a NASA nos anos 1980, começou a desenvolver uma teoria radical. Em My Big TOE (2003), ele propôs que nossa realidade não passa de uma simulação computacional renderizada no momento da observação — uma ideia que beira o místico, mas que ele tenta ancorar na física quântica. O famoso experimento da dupla fenda, no qual partículas subatômicas parecem “saber” quando estão sendo observadas, seria, em sua visão, não um mero paradoxo, mas um artefato de um universo regido por código. A consciência, longe de ser um acidente da matéria, seria parte fundamental da estrutura da realidade, um conceito que ecoa pensadores como David Bohm e John Wheeler, mas traduzido para a linguagem da era digital. Se o cosmos fosse um programa, argumenta Campbell, faria todo sentido que ele só processasse os detalhes quando necessário, economizando recursos computacionais. A implicação é vertiginosa: o que chamamos de “realidade” pode ser apenas uma interface, um véu de ilusão digital. 


A física quântica contemporânea oferece indícios intrigantes que ressoam com a hipótese da simulação. Pesquisas recentes em emaranhamento quântico demonstram correlações instantâneas entre partículas que desafiam a noção clássica de localidade — um fenômeno que o físico Silas Beane, da Universidade de Bonn, sugere que poderia revelar uma “grade computacional” subjacente à realidade. Seu estudo publicado no Physical Review A (2012) propõe que, se vivêssemos em uma simulação, haveria um limite fundamental para a energia das partículas, semelhante ao aliasing em processamento digital de sinais. Essa assinatura da simulação ainda não foi detectada, mas Grande Colisor de Hádrons continua buscando essas anomalias nos níveis mais fundamentais da matéria.

Porém, a comunidade científica tradicional recebe essas ideias com ceticismo. Físicos como Sean Carroll argumentam que a hipótese da simulação carece de falseabilidade — como poderíamos provar que não estamos em uma simulação? A mecânica quântica convencional explica fenômenos como o colapso da função de onda sem precisar invocar a consciência, e há uma resistência natural contra teorias que borram as fronteiras entre ciência e espiritualidade. Campbell, no entanto, navega nessas águas turvas com certa desenvoltura, citando desde meditação transcendental até experiências fora do corpo como evidências de seu modelo.

Ainda assim, o fascínio popular pela hipótese da simulação talvez não dependa de sua validade científica. Em um mundo em que a tecnologia digital remodelou não apenas nossas ferramentas, mas nossa própria percepção do real, a noção de que tudo pode ser uma simulação ressoa como um mito contemporâneo. Jean Baudrillard, em Simulacros e Simulação (1981), já antevia uma cultura obcecada por cópias sem original, em que o real e o virtual se confundem. Para Campbell, porém, não há original perdido — a simulação é tudo que existe. Essa visão oferece um tipo peculiar de reencantamento: se a modernidade, como argumentou Max Weber, desencantou o mundo ao substituir deuses por equações, a hipótese da simulação reintroduz o mistério, mas em uma roupagem tecnológica. O sagrado não está mais nas florestas ou nos céus, mas nos bits e algoritmos que supostamente sustentam nossa existência.

Neurocientistas como Anil Seth, da Universidade de Sussex, oferecem uma perspectiva biológica complementar. Seus experimentos com realidade virtual e ilusões perceptivas demonstram que nosso cérebro não processa a realidade objetiva, mas constrói continuamente uma simulação interna baseada em expectativas e inputs sensoriais limitados. Isso ecoa a hipótese do cérebro como máquina de inferência bayesiana1, em que a consciência seria um modelo probabilístico constantemente atualizado, uma simulação dentro de uma possível simulação maior. Esses achados sugerem que mesmo nossa percepção do “real” já é uma construção computacional sofisticada.

A teoria da informação quântica acrescenta outra camada a esse debate. Pesquisadores como Seth Lloyd (MIT) propõem que o universo poderia ser literalmente um computador quântico, com cada interação física representando operações lógicas em bits quânticos (qubits). A equação de Wheeler-DeWitt, que descreve a gravidade quântica, sugere que o universo pode não ter tempo fundamental, apenas relações entre eventos, como em uma simulação discreta. Essa visão recebeu impulso com experimentos recentes em gravidade quântica em loop, em que o espaço-tempo parece emergir de redes de spins, semelhante a pixels de uma tela cósmica2.

A astrofísica moderna também contribui para essa discussão. A descoberta de que as leis físicas parecem finamente ajustadas para permitir a vida (princípio antrópico) encontra explicações tanto na hipótese do multiverso quanto na da simulação. O astrofísico David Kipping (Columbia) calculou em 2020 que há cerca de 50% de probabilidade de estarmos em uma simulação, usando análise bayesiana dos limites computacionais necessários para simular consciências. Enquanto isso, projetos como o do Blue Brain Project na EPFL tentam recriar cérebros humanos em supercomputadores, testando os limites do que seria necessário para simular realidades conscientes. Um exercício que inverte provocativamente a hipótese: se podemos simular mentes, o que nos impede de sermos simulações?

O próprio êxito desses experimentos dá a probabilidade calculada de sermos simulações à recriação de mentes em silício – revela a essência paradoxal desse reencantamento digital. Enquanto essas conquistas científicas devolvem ao mundo uma camada de significado ao reabrir questões metafísicas fundamentais (transformando laboratórios em espaços de “teologia computacional”), elas simultaneamente corroem os fundamentos da ação humana, reduzindo até mesmo nossa busca por verdade a meros inputs de um possível programa cósmico. A ironia é reveladora: quanto mais dominamos a arte de simular consciências em projetos como o Blue Brain, mais fortalecemos a hipótese de que nós mesmos podemos ser simulações – e, consequentemente, mais alimentamos o niilismo digital que questiona o valor último de nossas escolhas éticas e políticas. Nesse contexto, a insistência de Campbell em que a simulação teria regras e um “objetivo” moral soa como um frágil antídoto contra a vertigem existencial que essas descobertas provocam.

Essa ambiguidade se manifesta de forma especialmente aguda em nosso momento histórico. Se, por um lado, o reencantamento tecnocientífico resgata o mistério que o racionalismo moderno havia dissipado, por outro, ele oferece uma justificativa perigosa para a inação – afinal, qual o sentido de combater crises ecológicas ou desigualdades em um universo potencialmente ilusório? O projeto Blue Brain, nesse sentido, simboliza tanto o ápice de nossa capacidade criativa quanto o abismo de nossa possível irrelevância: ao nos tornarmos arquitetos de mentes simuladas, confrontamos a possibilidade perturbadora de que também possamos ser criações digitais em um jogo cósmico cujas regras mal compreendemos. Campbell pode ver nisso um propósito evolutivo, mas na prática, essa visão corre o risco de ser instrumentalizada tanto como consolo espiritual para tempos incertos quanto como álibi para o fatalismo social – mostrando que o preço do reencantamento pode ser a erosão da própria noção de responsabilidade coletiva.

Ao refletir sobre a hipótese da simulação como teoria científica, metáfora ou mito contemporâneo, percebemos que ela revela algo essencial sobre nosso tempo. Vivemos numa era em que a inteligência artificial, a realidade virtual e a desinformação algorítmica tornaram o conceito de “realidade” mais frágil do que nunca – se antes buscávamos respostas em deuses ou verdades absolutas, hoje oscilamos entre o fascínio e o terror diante da possibilidade de que tudo não passe de um código complexo. Essa ideia encontra um paralelo perturbador na visão de Jorge Luis Borges em A Biblioteca de Babel, em que o universo é concebido como uma biblioteca infinita composta por galerias hexagonais intermináveis, contendo todas as combinações possíveis de conhecimento, incluindo um livro sagrado que seria a chave para entender todos os outros, um volume tão inacessível quanto divino.

Tal como na biblioteca borgiana, em que a verdade absoluta existe, mas permanece fora de alcance, nossa suposta realidade simulada também nos confronta com a possibilidade de existir um código-fonte fundamental que jamais compreenderemos plenamente. Para pensadores como Campbell, decifrar essa simulação exigiria uma espécie de upgrade existencial, mas num mundo em que a tecnologia mais segrega do que liberta, cabe perguntar: quem teria o privilégio desse acesso transformador? A genialidade de Borges estava em mostrar que, seja numa biblioteca cósmica ou numa matriz digital, estamos sempre diante do mesmo paradoxo – a busca por significado em sistemas que podem ser, eles mesmos, meras construções arbitrárias, em que o próprio desejo de verdade talvez seja apenas mais uma peça no jogo.

Assim, o que nasceu como cálculo de físicos transforma-se em espelho: reflete não só átomos, mas o desejo humano de ser mais que um acidente cósmico. A hipótese da simulação, essa metáfora vestida de equação, talvez nunca prove se vivemos em linhas de código — mas desnuda nossa sede de sentido em um mundo em que máquinas já sonham por nós. Entre o cogito de Descartes e o render de pixels, espreita a mesma pergunta: somos avatares de um deus-programador ou poetas inconscientes de um universo que se escreve a si mesmo? Não importa. Como na inquietante fábula de Borges — aquela em que cartógrafos imperiais tecem um mapa tão perfeito que acaba por devorar o território real —, essa narrativa da simulação nos salva do vazio existencial: ainda que seja apenas uma alegoria, ela substitui o silêncio cósmico por uma história onde dúvida e sentido coexistem. Mesmo que a Matrix seja ficção, ela nos concede o direito sagrado de duvidar — e, nesse ato, reencantar o real.
Nicolás Gonçalves

Não sei o que posso falar, nem você

Leo Lins diz a auditórios frases assim: "Tem ser humano que não é 100% humano. O nordestino do avião? 72%." "Como vou emagrecer?’ Pegando Aids! Você não adora comer de tudo? Sai comendo gay sem camisinha!" Foi condenado a prisão, multa e indenização. O Brasil tem lei contra discriminação. Mas Leo Lins usa crachá de humorista. Por isso, diz, pode caçar risada por qualquer bagatela.

Gilmar Mendes processou dois jornalistas por reportagem que descrevia investigação da compra, pelo governo de Mato Grosso, de universidade da qual o ministro era sócio. Derrotado em primeira e segunda instâncias, ganhou no STJ.

Os ministros Ricardo Cueva, Humberto Martins, Daniela Teixeira, Moura Ribeiro e Nancy Andrighi condenaram revista a pagar R$ 150 mil. Alegam "excesso de ironia", "limites do direito de informar". Destacam a "honra de uma autoridade pública" e ensinam que liberdade de expressão não se confunde com "irresponsabilidade de afirmação".


A desembargadora Iris Helena Nogueira processou jornalista que divulgou salários de magistrados. No mês de abril de 2023, ela teria sido a campeã ao receber R$ 662 mil. A juíza Káren Bertoncello condenou repórter a indenização de R$ 600 mil. Disse que, apesar de ser informação pública, foi descontextualizada e teve efeito sensacionalista. Defendeu equilíbrio entre direito de informar e integridade moral.

Cada nova decisão sobre usos da liberdade de expressão provoca a esfera pública a opinar sobre seu erro ou acerto. Até que venha o caso seguinte e recomecemos a opinar, com indignação, surpresa ou alívio, sobre seu erro ou acerto.

E assim vamos gastando tempo no varejo apaixonado do caso a caso e perdemos de vista uma questão preliminar. Sabemos que liberdade de expressão tem limite, mas o Judiciário não demonstra interesse nem capacidade em definir onde ele se encontra. Muito menos em estabilizar esse limite de forma coerente.

A jurisprudência da liberdade de expressão tem muito pouco de "juris" e de "prudência". Chamamos assim por vício vocabular e por apego ao ilusionismo conceitual. No atacado, percebe-se que decisões sobre o tema têm se limitado à fórmula do "acho que sim, acho que não", conforme manda o coração.

Frases de efeito substituem critérios decisórios, instinto apressado substitui análise das nuances do caso concreto. Nesse festival retórico de um amontoado de decisões que não dialogam, os mesmos slogans fundamentam absolvição ou punição. Sem que entendamos o porquê da diferença.

Enquanto não houver tentativa sincera de construir critério compartilhado e previsibilidade, o Judiciário continuará a simular proteger direitos enquanto nos entrega particularismo irracional, discriminatório e arbitrário. "Cada caso é um caso" e "cada cabeça uma sentença" são máximas do decisionismo. Com prática judicial assim, a liberdade desaparece.

Sabemos muito pouco sobre o que podemos falar. No campo da incerteza absoluta, a liberdade fica arriscada demais.

Mais um serviço que STF e Judiciário prestam ao projeto autocrático: a absoluta imprevisibilidade do significado da liberdade de expressão facilita a vida de quem a invoca para atacar a democracia e violar direitos. Um conceito deixado vazio é mais fácil de ser manipulado. Fica mais barato gritar pela liberdade e praticar o seu contrário.

Pax israelensis

Em fevereiro, foi o Procurador-Geral do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan. Agora, os EUA impuseram sanções contra quatro juízas do TPI que abriram investigações sobre crimes de guerra e/ou contra a Humanidade praticados pelos EUA no Afeganistão e por Israel na Palestina. Todas mulheres, duas delas africanas (cidadãs do Benim e do Uganda), uma peruana, outra eslovena. Nesta linguagem descarada que a ultradireita tem, o TPI é acusado de “politização e de abuso de poder” O objetivo é intimidar todo o pessoal do TPI e bloquear as investigações em curso.

Dir-se-á que relação de Trump com o direito internacional é a mesma que tem com a justiça do seu próprio país. Depois de Biden e os seus antecessores terem aceite todas as violações possíveis do direito internacional que Israel pratica desde 2023 (aliás, desde 1948), Trump associou-se ativamente ao ataque descabelado que Israel tem feito à ONU, sem precedentes na história da organização: insultos ao Secretário-Geral e aos responsáveis de todas as agências da ONU, intimidação direta de todos relatores especiais dos Direitos Humanos (a começar por Francesca Albanese), interdição de uma agência da ONU (a UNRWA) com 75 anos de atividade incessante na Palestina, acusada diretamente de “terrorismo”, e, sobretudo, o assassinato de centenas de profissionais e funcionários da ONU. Sem precedentes.


No quadro daquilo que no Ocidente se quis descrever como a “reação” ao 7 de outubro, Israel já fez praticamente de tudo na Palestina: assassinou deliberadamente população civil de um território ilegalmente ocupado, um terço dos quais crianças, a uma escala que não deixa dúvidas sobre a intenção de genocídio; forçou a deslocação em massa da população, e várias vezes, o próprio exército ocupante deteve e deportou milhares de palestinos; matou centenas, milhares, de médicos, enfermeiros, jornalistas, pessoal de ONGs; destruiu praticamente todos os edifícios, especialmente hospitais e escolas, reduzindo Gaza a ruínas e tendas improvisadas. Como mais de 30 relatores especiais da ONU para os direitos humanos denunciaram há um mês, “a comida e a água foram cortadas durante meses, induzindo a fome, a desidratação e a doença, o que fará com que mais mortes se tornem a realidade quotidiana para muitos, especialmente para os mais vulneráveis.”

O que se vive em Gaza não é imaginável para nenhum de nós. E, contudo, a impunidade permanece, comprovando à saciedade que, afinal, a aplicação do direito decorre apenas da força. E quem a tem, hoje ainda, são os EUA, um estado que os tratados assinados por Portugal classificam como “aliado”.

Desde há muito que Israel se tem revelado o modelo de sociedade no qual se revê a ultradireita neofascista do mundo. Supremacia de uma etnia (os judeus), cuja identidade nacional se construiu no próprio processo de colonização e não antes; regime de apartheid e de securitização militar impostos à etnia autóctone (os palestinos) cujo território se ocupou; uma engenharia social feita da fusão de militarismo social, investimento tecnológico sem precedentes no controlo e vigilância totalitários; uma ideologia de orgulho nacionalista, religioso e colonialista de uma etnia que se descreve a si própria como resgatando um território da barbárie e protegendo o “Ocidente” do “inimigo”; a visão paranoica de um mundo que inveja e odeia “o povo eleito”. A semelhança com o fascismo histórico de há um século é evidente.

Se, antes de Trump, a repugnante impunidade da ocupação israelita vinha acompanhada da encenação de um plano original de dois Estados que nunca saiu do papel, com Trump e Netanyahu do que se trata é da concretização final de limpeza étnica e genocídio. Exatamente o que Hitler quis fazer: uma Nova Ordem europeia construída pela morte, pelo extermínio.

A nova ordem que se quer construir hoje com o rearmamento e a tese de que estamos, por todo o lado, em guerra, tem os contornos da Pax israelensis. E é também por isso que nunca como hoje foi tão importante criar um movimento popular e universal pela paz e pela democracia antifascista. Como em 1945.

Um grito frágil e alívio: bebê desnutrido Siwar é evacuado de Gaza

O grito era frágil, mas eu conseguia ouvir Siwar Ashour antes mesmo que ela fosse carregada para fora do veículo.

Foi o grito de uma voz que não desiste, de uma criança que nasceu nesta guerra e que agora, pelo menos por um tempo, conseguiu escapar dela.

Ao vivo, Siwar, de seis meses, é menor do que qualquer imagem pode transmitir. Ela pesa 3 kg, mas deveria pesar o dobro. Sua mãe, Najwa, de 23 anos, sorriu ao descrever seus sentimentos ao cruzar para a Jordânia na quarta-feira, quando sua filha foi evacuada de Gaza com outras crianças palestinas. A primeira coisa que ela notou foi o silêncio.

"Parece que há uma trégua", ela me disse. "Passaremos a noite sem foguetes e bombardeios, se Deus quiser."

Siwar também estava acompanhada de sua avó Reem e seu pai Saleh, que é cego.

"O primeiro e último objetivo desta viagem é Siwar", disse Saleh. "Queremos levá-la a uma praia segura. Quero ter certeza de que ela esteja segura e curada. Ela é minha filha, meu sangue. E estou profundamente preocupado com ela."


Foi Reem quem carregou Siwar para fora do ônibus em solo jordaniano, formando um sinal de V com os dedos enquanto caminhava.

"Até agora, não consigo acreditar que cheguei à Jordânia. Vi a foto do Rei Abdullah na fronteira e fiquei tão feliz que desci do ônibus e fiz o sinal da vitória... pelo bem de Siwar."

Em abril, quando a BBC filmou Siwar pela primeira vez no hospital Nasser, no sul de Gaza, sua mãe e seu médico disseram que ela sofria de desnutrição porque a fórmula láctea especial de que precisava não era encontrada em quantidade suficiente. Seu corpo estava emaciado. Najwa disse então que não podia amamentar Siwar porque ela própria sofria de desnutrição.

Latas de fórmula láctea foram encontradas e entregues pelo hospital de campanha da Jordânia e por arrecadadores de fundos privados. Mas, com o bloqueio israelense à ajuda, parcialmente aliviado há três semanas, e a escalada da ofensiva militar, ficou claro que a condição de Siwar precisava de testes e tratamento mais abrangentes.

Em um acordo anunciado entre o rei Abdullah e o presidente dos EUA, Donald Trump, em fevereiro, a Jordânia se ofereceu para levar 2.000 crianças gravemente doentes para tratamento em Amã.

O sistema médico devastado de Gaza não consegue lidar com o nível de doenças e feridos de guerra. Desde março, 57 crianças, juntamente com 113 acompanhantes familiares, foram evacuadas. Dezesseis crianças chegaram na quarta-feira, incluindo Siwar.

Aconchegada nos braços da avó, Siwar olhava com seus grandes olhos para a multidão desconhecida de policiais, profissionais de saúde e jornalistas reunidos na fronteira.

Ela foi levada para um salão com ar-condicionado, onde médicos jordanianos distribuíram bebidas e comida para as crianças. Havia paz e fartura.

O mais evidente foi o esgotamento de pais e filhos. Em vários meses de cobertura dessas evacuações, esta última foi a mais marcante em termos de trauma coletivo.

Todas essas famílias sabem o que é ser levada de uma área para outra por ordens de evacuação israelenses, ou enfrentar filas por horas na esperança de encontrar comida. Se não vivenciaram a morte de alguém na família, certamente conhecem amigos ou parentes que foram mortos.

Famílias são frequentemente separadas por conflitos enquanto os pais buscam comida ou tratamento médico. Um dia, Najwa levou Siwar ao hospital e essa foi a última vez que o marido Saleh esteve com eles por dois meses.

"Achei que ela ficaria fora por apenas três ou quatro dias e depois voltaria, com um tratamento simples e ela voltaria", lembrou ele. "Mas fiquei chocado com a demora... e acabei percebendo que a condição dela é muito séria e difícil."

Viajamos da fronteira para Amã com Siwar e sua família. Najwa está grávida e caiu em sono profundo. Siwar permaneceu acordada nos braços da avó. Na mesma ambulância estavam dois meninos com câncer, suas mães e dois irmãos mais novos. Um dos irmãos, um menino de quatro anos, chorava sem parar. Estava cansado e assustado.

Depois de uma hora, chegamos a Amã e Siwar foi transferida para os braços de uma enfermeira e depois para outra ambulância. Nos próximos dias, ela será testada e receberá o tipo de tratamento que é simplesmente impossível nas atuais condições em Gaza. E sua mãe, seu pai e sua avó – aqueles que cuidam dela – dormirão sem medo.

Fergal Keane