Pouco antes de uma reunião do ministro da Defesa, Paulo Sérgio de Oliveira, com o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, os comandantes das três Forças, Oliveira e Walter Braga Netto se reuniram com Jair Bolsonaro. A foto do encontro é um dos mais fortes símbolos da turma que questiona o processo eleitoral que pode tirá-la do poder.
Paira sobre o Brasil a discórdia em torno de 15 sugestões das Forças Armadas para a Justiça Eleitoral, sobre as urnas eletrônicas. Quem convive com o presidente diz que Bolsonaro acredita nas lorotas que conta e se vê como vítima. Mas a verdade é que ele só ameaça as eleições porque imagina ter respaldo. Tanto das Forças Armadas quanto do Centrão. Houve uma época em que as lideranças militares e civis desatavam nós em vez de reforçá-los. Naquele tempo, Antonio Carlos Magalhães era senador e seu filho Luís Eduardo presidia a Câmara. Eles tinham um amigo no quartel-general da Força Terrestre: o ministro do Exército, Zenildo Zoroastro de Lucena.
Foi ACM quem defendeu Zenildo e o salvou quando tentaram intrigar o general com o presidente Itamar Franco. A amizade entre eles permaneceu no governo de Fernando Henrique Cardoso, que manteve o general no cargo. Zenildo acompanhou a criação do Ministério da Defesa e sonhava ver ACM como titular da pasta. Um dia, o militar telefonou para Luís Eduardo, que estava reunido com três parlamentares. A secretária avisou que o general dizia ter um problema urgente.
Antes de atender, Luís Eduardo pôs o telefone no viva-voz.
“Comandante! Como vai?” O general foi logo ao ponto. “Tudo bem. Estou ligando porque soube que um deputado pretende criar um tumulto em frente ao quartel-general hoje à tarde. E, como vou ser obrigado a prender o parlamentar, queria avisá-lo antes.” Tratava-se do deputado Bolsonaro. A ação do oficial da reserva, visto como um sindicalista, desagradava aos chefes militares, que proibiram sua entrada nos quartéis. Naquela tarde, a paciência de Zenildo se esgotara. “General, vou dar um jeito nisso. Fique tranquilo.”
Luís Eduardo desligou o telefone e contou seu plano aos parlamentares. Mandou avisar pelo sistema de som da Câmara que tinha um comunicado importante a fazer. E foi para o plenário. Não demorou muito e Bolsonaro apareceu. Luís Eduardo começou a contar – sem citar nomes – que Zenildo lhe dissera que pretendia prender um deputado. “Se isso acontecer, esta presidência não vai interferir.” O capitão ouviu de pé, em silêncio. Naquela tarde, nenhum protesto foi registrado em frente ao quartel. O recado foi dado. E entendido.
No dia 1º de janeiro de 2019, Jair Messias Bolsonaro vestia a faixa presidencial com a promessa de transformar o Brasil. Seu todo poderoso ministro da Economia, o "Posto Ipiranga" Paulo Guedes, faria uma revolução neoliberal. Acabou a mamata, o Estado assistencialista, a farra de gastos e a grana solta no Congresso! "Se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão", cantara o general Augusto Heleno, atual ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, meses antes, durante a campanha eleitoral.
Mas a vida não foi justa com Bolsonaro e suas promessas. Assim, em vez da responsabilidade fiscal, veio a pandemia. E com ela, bilhões de gastos extras para auxiliar a população. Não teria sido preciso gastar tanto, disse Bolsonaro. A culpa é dos governadores, que mandaram as pessoas ficarem em casa, em vez de continuarem trabalhando como se nada estivesse acontecendo, como queria o presidente. Nem os bilhões para comprar vacinas ele teria gastado.
Mas calma, a economia brasileira terá uma "recuperação em V", prometia Paulo Guedes: foi lá em baixo, para logo depois ir lá em cima. Mas logo veio a guerra na Ucrânia para acabar com a recuperação econômica.
Agora, bem atrás do seu oponente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas eleitorais, Bolsonaro parte para o vale-tudo: faz tudo o que prometeu, só que ao contrário. Já tinha deixado o Centrão embarcar no seu governo, para se blindar contra um impeachment. Depois veio o "orçamento secreto", no valor de R$ 16,5 bilhões para este ano e uma previsão de até R$ 19 bilhões para 2023. Vale tudo para segurar o apoio do Legislativo, até mamata para os representantes do povo.
Agora, falta segurar os eleitores no meio de uma inflação cada vez mais galopante. Para isso, criou se a PEC Eleitoral, já aprovada no Senado, que vem com gastos extras na casa de R$ 41 bilhões, amparados na declaração de um estado de emergência até o fim do ano. Se a proposta for aprovada também na Câmara, o governo poderia abrir as comportas, subindo o Auxilio Brasil de R$ 400 para R$ 600 mensais e criando benefícios para caminhoneiros, no valor de R$ 1.000, e para taxistas, no valor de R$ 200, para abafar os aumentos da gasolina, entre outros benefícios.
É o Estado assistencialistas dando a volta por cima. Mas não se vê muitas críticas da oposição. Ela até votou a favor da PEC Eleitoral no Senado. Pois para Lula, Ciro Gomes e Simone Tebet, ficaria perigoso se opor aos benefícios para milhões de atingidos pela crise. Ficaram de mãos atadas diante da postura populista de Bolsonaro.
Já a "guerra do ICMS" tem trazido uma boa narrativa para Bolsonaro atacar a oposição. No final de junho, o governo sancionou uma alíquota fixa para o ICMS, para baratear o custa da gasolina. Quem pagará o preço dessa medida serão os estados, que perderiam arrecadação e, por isso, acabaram acionando o Supremo Tribunal Federal (STF). "Esses nove governadores entraram na Justiça para não diminuir o preço dos combustíveis", atacou Bolsonaro os governos nordestinos na sua live semanal. "Estão unidos contra você, contra o contribuinte, contra o trabalhador."
"Esse pessoal disse que está ajudando o pobre. É mentira. Eles querem que o pobre se exploda", disse o presidente, com expressão sorridente. Ele sabia que, desta vez, a vida não será justa com os governadores, que ficam entre perder arrecadação ou ser vilões da história.
Assim, possivelmente não sobra mais ninguém para defender a razão fiscal nestes tempos de campanha eleitoral. A conta pelo descontrole fiscal viria em 2023, inclusive com uma alta dos juros prolongada, alertam economistas. Portanto, Bolsonaro, que luta pela reeleição em outubro, não vê problema nisso agora. Vai sobrar para o próximo presidente (mesmo que seja o presidente reeleito), ao receber a faixa presidencial no dia 1º de janeiro de 2023, prometer finalmente acabar com a mamata e as farras governamentais.
O País encaretou. Milhões de brasileiros fizeram um “direita, volver” nos últimos 3 anos e meio.
O mal infligido ao País por Bolsonaro não terá fim em 31 de dezembro (contando com sua derrota em outubro próximo). Os piores anos de nossas vidas, de 2019 a 22, desde a redemocratização, fermentaram em parte da população brasileira uma “larga base” de extrema-direita que certamente vai instigar a política pelos próximos anos.
A pesquisa “A cara da democracia”, do Instituto Pulso, divulgada pelo O Globo, domingo e ontem, mostra esse perfil infeliz e, ao mesmo tempo, intrigante, da nossa sociedade. Decreta o fim do fenômeno denominado “direita envergonhada”. O País que herdaremos do bolsonarismo traz essa massa considerável que não tem mais pudor de se declarar reacionária ou de defender questões morais identificadas com o conservadorismo.
Dizem os pesquisadores – ligados às universidades federais de Minas Gerais, UERJ, Unicamp e UnB – que “parte dos brasileiros não tem mais constrangimento em assumir identidade política com pautas e diretrizes da direita, nem receio da conotação negativa que a vinculação a esse escopo suscitava”. Nada mais é motivo de incômodo ou preocupação.
Se por um lado, o Brasil encaretou, “A cara da democracia” também traz boas notícias: há um contigente respeitável de patriotas que abominam a ideia de golpe. O cientista político Leonardo Avritzer, coordenador da pesquisa, indica: “os resultados demonstram que, apesar de um recrudescimento de ameaças golpistas, brasileiros, em sua maioria, preferem viver sob os três poderes independentes e (nem sempre) harmônicos entre si”.
Para 59% dos entrevistados, a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo. A maioria de brasileiros não aceita golpe de estado, ou intervenção militar, mesmo num cenário de corrupção ou criminalidade. “Ou seja, os brasileiros querem resolver os nossos problemas em um ambiente democrático, com os instrumentos fornecidos pela democracia”.
As eleições diretas e transparentes são a única saída para mais de 60% da população. E falta pouco para virar jogo. Exatos 13 domingos pra irmos às urnas. Até agora, o ex-presidente Lula continua à frente, com uma diferença considerável de Bolsonaro. Mas Lula não ganhou ainda, não pode dormir em berço esplêndido, não pode relaxar. Serão 91 dias de muita cautela e atenção. Campanha intensa. O governo ligou o trator.
Bolsonaro e seu bando vem com a máquina carregada de dinheiro e benesses para as populações mais carentes, categorias profissionais (caminhoneiros) e classe média, punida com inflação descontrolada. As providências anunciadas por Bolsonaro podem não ter respaldo legal em tempos de eleições, quem sabe são “pedaladas” que a imprensa identificou tão bem em Dilma e agora finge serem apenas “medidas eleitoreiras”.
Contra o desespero do governo – ganhar à custa de mentiras e favorecimentos, a oposição conta com a memória do eleitorado. Ideal não esquecer a preguiça do presidente, o desgoverno, o cinismo, o desprezo pela vida, e a coleção de gafes, grosserias, frases e atitudes preconceituosas – ao longo de anos – em relação aos nordestinos, aos negros, gays, mulheres, pobres, indígenas, estudantes, professores, artistas.
Na hora do voto, isso pesa. A pesquisa Pulso indica que mais de 50% dos brasileiros são conservadores, e ainda assim Lula está à frente. Os estrategistas do ex-presidente podem explicar com mais ciência e sabedoria, mas é certo que a figura de Bolsonaro, por si só, justifica: como liderar uma campanha de esquerda com tantos eleitores à direita. A direita mais esclarecida – isso é possível – também condena Bolsonaro por tanto despudor e desrespeito.
O que uma criança vivendo nas ruas e fora da escola em São Paulo e uma jovem negra formada na universidade que não consegue emprego em Salvador têm em comum?
Ambas fazem parte do contingente de talentos que são desperdiçados todos os dias no Brasil.
Uma criança brasileira nascida em 2019 deve alcançar em média apenas 60% do seu capital humano potencial ao completar 18 anos, calcula estudo inédito do Banco Mundial, ao qual a BBC News Brasil teve acesso.
Isso significa que 40% de todo o talento brasileiro é deixado de lado, na média nacional.
Nos rincões mais vulneráveis, o desperdício de potencial superava os 55% antes da pandemia, estima a instituição. Com a crise sanitária, a situação se agravou e, em apenas dois anos, o Brasil reverteu dez anos de avanços no acúmulo de capital humano de suas crianças.
"Agora, mais do que nunca, as ações não podem esperar", alerta o banco, no Relatório de Capital Humano Brasileiro, que deverá ser lançado nesta semana.
O estudo é parte do Human Capital Project do Banco Mundial, iniciativa lançada em 2018 para alertar governos quanto à importância de se investir em pessoas. O relatório brasileiro é o primeiro focado em um país específico.
O banco estima que o PIB (Produto Interno Bruto, soma de bens e serviços produzidos por um país) do Brasil poderia ser 2,5 vezes maior (158%), se as crianças brasileiras desenvolvessem suas habilidades ao máximo e o país chegasse ao pleno emprego.
Capital humano é o conjunto de habilidades que os indivíduos acumulam ao longo da vida, explica Ildo Lautharte, economista do Banco Mundial e um dos autores do estudo.
Essas habilidades acumuladas determinam, por exemplo, o nível de renda e as oportunidades de trabalho que uma pessoa vai ter em sua vida. E impactam a produtividade, o tamanho do PIB e a capacidade de gerar riqueza de um país.
Para comparar esse potencial acumulado nos diferentes países e nas diversas regiões, Estados e municípios em cada país, o Banco Mundial desenvolveu o ICH (Índice de Capital Humano), um indicador que combina dados de educação e saúde, para estimar a produtividade da próxima geração de trabalhadores, se as condições atuais não mudarem.
Os dados que compõem o ICH são: taxas de mortalidade e déficit de crescimento infantil; anos esperados de escolaridade e resultados de aprendizagem; e taxa de sobrevivência dos adultos.
Com base nesse conjunto de dados, o indicador varia de 0 a 1, sendo 1 o potencial pleno — ou seja, não ter déficit de crescimento ou morrer antes dos 5 anos, receber educação de qualidade e se tornar um adulto saudável.
Aplicando essa metodologia ao Brasil, o banco chegou a um ICH de 0,60, que significa que uma criança brasileira nascida em 2019 deve atingir apenas 60% de todo seu potencial aos 18 anos.
O país está abaixo de países de desenvolvidos como Japão (0,81) e Estados Unidos (0,70) e de pares latino-americanos como Chile (0,65) e México (0,61), mas acima de outros países em desenvolvimento mais pobres como Índia (0,49), África do Sul (0,43) e Angola (0,36).
"O Brasil precisaria de 60 anos para alcançar o nível de capital humano alcançado pelos países desenvolvidos ainda em 2019", estima o Banco Mundial. "Não há tempo a perder."
A instituição financeira internacional alerta, porém, que a média nacional é apenas uma parte da história e que há muitas desigualdades dentro do país.
Por regiões, por exemplo, em 2019, o ICH do Norte e do Nordeste era de 56,2% e 57,3%, enquanto para Sul, Centro-Oeste e Sudeste variava de 61,6% a 62,2%.
"60% a 70% dessa desigualdade regional é explicada pela educação", afirma Lautharte. "Isso inclui tanto os anos que a criança fica na escola, como a qualidade da educação, isto é, se ela consegue aprender aquilo que deveria ter aprendido na escola."
"Mas além dessa desigualdade regional, que já é esperada por quem conhece o Brasil, chama atenção a desigualdade dentro de um mesmo Estado ou uma mesma região", observa.
Por exemplo, enquanto o município de Ibirataia na Bahia tem um ICH de 44,9%, similar a países africanos muito pobres como Gana e Gabão, Cocal dos Alves no Piauí, com um ICH de 74%, está mais próximo dos índices da Itália e da Áustria.
Embora todas as regiões tenham melhorado seu ICH ao longo dos anos — o estudo analisa o período de 2007 a 2019 —, a desigualdade persiste com o passar do tempo.
Por exemplo, o Índice de Capital Humano médio das regiões Norte e Nordeste em 2019 era similar ao das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste em 2007 — ou seja, uma lacuna de 12 anos.
O Banco Mundial chama atenção também para a desigualdade racial no desenvolvimento do potencial dos brasileiros.
Segundo o estudo, a produtividade esperada de uma criança branca em 2019 era de 63% do seu potencial, comparado a 56% para uma criança negra e 52% para uma indígena.
Mas, ainda mais grave, é que essa desigualdade está aumentando ao longo do tempo.
Isso porque o ICH das crianças brancas avançou 14,6% entre 2007 e 2019, enquanto o índice para crianças negras variou 10,2% e o das indígenas ficou praticamente estável (0,97%).
Para Ildo Lautharte, a explicação aqui novamente está nas desigualdades educacionais.
"O Brasil teve muito sucesso em termos de acesso à educação, conseguimos fazer com que a quase totalidade das crianças esteja na escola. A grande questão agora é a qualidade dessa educação e isso tem um componente racial muito elevado", diz o economista.
Lautharte observa que essa diferença nos resultados de aprendizagem está ligada tanto à qualidade do ensino, quanto às condições das crianças, que partem de bases muito desiguais.
O Banco Mundial analisa também o que acontece quando todo esse potencial chega ao mercado de trabalho. E aqui, o quadro é ainda mais preocupante.
O ICHU (Índice de Capital Humano Utilizado) pondera o ICH com a taxa de emprego nos mercados de trabalho formal e informal. O objetivo é analisar quanto do capital humano é de fato aproveitado pelo mercado de trabalho.
No Brasil, o ICHU é de 39%, estima o Banco Mundial, o que significa que o mercado de trabalho brasileiro desperdiça boa parte dos seus talentos devido à baixa ocupação.
Aqui, chama a atenção também a desigualdade entre homens e mulheres.
Olhando para o ICH, as mulheres chegam aos 18 anos com potencial acima dos homens. Elas tinham um Índice de Capital Humano de 60% em 2019, contra 53% para eles.
A diferença se explica por fatores diversos. Por exemplo, as mulheres tendem a abandonar menos a escola para trabalhar e, por isso, acumulam em média mais tempo de estudo do que os homens. Além disso, elas tendem a viver mais, tanto por questões de saúde, como da maior propensão dos homens (particularmente dos negros) a morrer por causas violentas.
No entanto, apesar de as mulheres terem acúmulo de capital humano acima dos homens aos 18 anos, elas são menos aproveitadas no mercado de trabalho.
Enquanto o ICHU delas é de 32%, o deles é de 40%. Isso se deve a fatores que vão desde profissões que ainda hoje são entendidas como predominantemente masculinas, até a desigualdade no trabalho doméstico e no cuidado dos filhos.
"Só política pública pode fazer com que essa diferença entre homens e mulheres no mercado de trabalho diminua", diz Lautharte.
"Esse é um ponto onde o Brasil ainda engatinha, outros países já estão fazendo muito mais, com políticas muito mais ativas para aumentar a inserção da mulher no mercado de trabalho. Esse desperdício é particularmente grave entre mulheres negras, são talentos desperdiçados."
Se o Brasil já desperdiçava o potencial de suas crianças antes da pandemia, a crise sanitária só agravou essa situação, destaca o Banco Mundial.
"Em termos de saúde infantil, por exemplo, mais 3,5 em cada 10 mil crianças não sobreviveram até os 5 anos de idade em 2021, em comparação a 2019, no Sudeste do Brasil", cita o banco, no relatório. "Além disso, cerca de 80 mil crianças podem sofrer déficit de crescimento no Brasil devido à pandemia."
Na educação, as escolas ficaram fechadas por 78 semanas, um dos fechamentos mais longos do mundo. Consequentemente, a parcela de crianças que não sabem ler e escrever saltou 15 pontos percentuais entre 2019 e 2021, observa a instituição financeira internacional.
Com tudo isso, o Índice de Capital Humano do Brasil caiu de 60% para 54% entre 2019 e 2021, estima o Banco Mundial, voltando ao nível de 2009. "Em dois anos, a pandemia de Covid-19 reverteu o equivalente a uma década de avanços do ICH no Brasil", observa o Banco Mundial.
O caminho para a recuperação será longo, diz a instituição.
"Considerando-se a taxa de crescimento antes da pandemia, o ICH levará de 10 a 13 anos para retornar ao patamar de 2019 no Brasil. Ou seja, o Brasil chegaria novamente ao ICH de 2019 somente em 2035."
Para Lautharte, reverter esse quadro passa por um grande esforço de políticas públicas, com recomposição da aprendizagem, que deve ser combinado com a agenda de combate à fome, de fortalecimento dos programas de transferência de renda e de políticas de saúde pública.
Além disso, diz o economista, o Brasil precisa aprender consigo mesmo. Por exemplo, a bem sucedida experiência educacional do Ceará pode ser replicada em outros Estados e municípios.
"Mesmo antes da pandemia, o Brasil tinha 52% das crianças com 10 anos que não conseguiam ler um parágrafo adaptado para a idade delas. Então nosso objetivo não deve ser voltar para o pré-pandemia, mas avançar para um cenário melhor", diz Lautharte.
"Temos agora uma oportunidade para repensar algumas coisas e fortalecer outras. Então conhecer os 'muitos Brasis' é fundamental para saber onde investir e quem precisa de mais ajuda."
Posto em sossego por uma cirurgia e suas complicações, eis que o sossego subitamente se transforma em desassossego: minha filha surge esbaforida dizendo que há revolução na rua.
Apesar da ordem médica, decido interromper o sossego e assuntar: ali no Posto 6, segundo me afirmam, há briga e morte. Confiando estupidamente no patriotismo e nos sadios princípios que norteiam as nossas gloriosas Forças Armadas, lá vou eu, trôpego e atordoado, ver o povo e a história que ali, em minhas barbas, está sendo feita.
E vejo. Vejo um heroico general, à paisana, comandar alguns rapazes naquilo que mais tarde o repórter da TV-Rio chamou de “gloriosa barricada”. Os rapazes arrancam bancos e árvores. Impedem o cruzamento da Avenida Atlântica com a Rua Joaquim Nabuco. Mas o general destina-se à missão mais importante e gloriosa: apanha dois paralelepípedos e concentra-se na brava façanha de colocar um em cima do outro. Estou impossibilitado de ajudar os gloriosos herdeiros de Caxias, mas vendo o general em tarefa aparentemente tão insignificante, chego-me a ele e antes de oferecer meus préstimos patrióticos, pergunto para que servem aqueles paralelepípedos tão sabiamente colocados um sobre o outro.
– General, para que é isto? O intrépido soldado não se dignou olhar-me. Rosna, modestamente.
– Isso é para impedir os tanques do I Exército! Apesar de oficial da reserva – ou talvez por isso mesmo – sempre nutri profunda e inarredável ignorância em assuntos militares. Acreditava, até então, que dificilmente se deteria todo um Exército com dois paralelepípedos ali na esquina da rua onde moro. Não digo nem pergunto mais nada. Retiro-me à minha estúpida ignorância.
Qual não é meu pasmo quando, dali a pouco, em companhia do bardo Carlos Drummond de Andrade, que descera à rua para saber o que se passava, ouço pelo rádio que os dois paralelepípedos do general foram eficazes: o I Exército, em sabendo que havia tão sólida resistência, desistiu do vexame: aderiu aos que se chamavam de rebeldes.
Nessa altura, há confusão na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, pois ninguém sabe ao certo o que significa “aderir aos rebeldes”. A confusão é rápida. Não há rebeldes e todos, rebeldes ou não, aderem, que a natural tendência da humana espécie é aderir.
Os rapazes de Copacabana, belos espécimes: de nossa sadia juventude, bem nutridos, bem fumados, bem motorizados, erguem o general em triunfo. Vejo o bravo cabo-de-guerra passar em glória sobre minha cabeça. Olho o chão.
Por acaso ou não, os dois paralelepípedos lá estão, intatos, invencidos, um em cima do outro. Vou lá perto, com a ponta do sapato tento derrubá-los. É coisa relativamente fácil.
Das janelas, cai papel picado. Senhoras pias exibem seus pios e alvacentos lençóis, em sinal de vitória. Um cadillac conversível para perto do “Six” e surge uma bandeira nacional. Cantam o Hino também Nacional e declaram todos que a Pátria está salva.
Minha filha, ao meu lado, exige uma explicação para aquilo tudo.
– É carnaval, papai?
– Não.
– É campeonato do mundo?
– Também não.
Ela fica sem saber o que é. E eu também fico. Recolho-me ao sossego e sinto na boca um gosto azedo de covardia.
Carlos Heitor Cony