segunda-feira, 25 de junho de 2018

Ná havendo novidade

Era um camponês alentejano, já idoso, seja o que for que isso signifique, com uma diabetes muito grave, condenado a uma cadeira de rodas porque lhe amputaram as pernas. Os resultados das análises eram uma miséria mas continuava a não tomar a medicação, a beber, a comer

o que não devia quando tinha dinheiro para comer. Morava num sítio perdido onde ninguém passava. A sua única frase à despedida foi

– Ná havendo novidade a gente vê-se daqui a dez anos e lembro-me tantas vezes desta frase. Ná havendo novidade.

Ná havendo novidade o meu futuro é muito claro. Faltam-me quatro livros, contando este em que estou a trabalhar agora. Ná havendo novidade o último estará pronto em 2022 e não torno a escrever porque a obra ficará finalmente redonda e o círculo definitivamente fechado. Não consinto que mais nada meu seja publicado, rascunhos, planos, esboços, falsas partidas, seja o que for. Proíbo que desrespeitem a minha vontade. Proíbo que me traiam. Nem uma palavra mais. Claro que também não farei estas crónicas a partir do momento da saída desse livro de 2022. Depois disso, e ná havendo novidade, irei ler esses textinhos. Se achar que têm alguma qualidade reúno-os num livro com o título Crónicas. Publica-se esse volume e acabou-se.

Susa Monteiro

Como dizia Newton não sei o que o futuro pensará de mim, mas sei o que eu pensarei dele, como sei o que penso acerca do que fiz. Simplesmente as pessoas não têm direito ao que eu penso. Têm direito ao que eu fiz e é um pau. Digam o que lhes der na gana: é igual ao litro. As opiniões flutuarão com os tempos, inevitavelmente, e as águas deixarão de se agitar a pouco e pouco quando eu for apenas um nome, uns retratos, umas lembranças vagas. Depois as lembranças desaparecerão como desaparecerão os retratos. Fica o nome e a obra. Depois... Dos dez grandes dramaturgos de que Aristóteles falou nem uma peça resta. Nem uma linha. Temos Eurípides, Ésquilo, Sófocles, que Aristóteles omitiu: parece que dava mais importância aos outros, não há certeza de espécie alguma a esse respeito. De Safo sobrevivem meia dúzia de palavras. A única vez que Cristo escreveu fê-lo com o dedo na terra, ninguém conhece o que rabiscou. Tudo o que fizemos não passou disso: escrevemos com o dedo na terra e nem a mulher adúltera, a única pessoa que estava com Ele, o soube. Como o não soube quem declarou que ele escreveu com o dedo na terra. Mas teria escrito de facto ou esboçado apenas uns riscos?

Ao fim e ao cabo esboçámos apenas uns riscos. Mesmo que não os tenhamos apagado com a mão

o tempo encarregar-se-á disso por nós. Vaidade das vaidades, garante

o Eclesiastes, tudo é vaidade: o tempo apagará para sempre o que fomos até não termos sido nada.

E as palavras que deixarei são provisórias como todas as palavras que se pronunciaram no mundo. Ná havendo novidade, dizia o velhote sem pernas. Mas havendo ou não havendo novidade será assim. A sua cadeira de rodas desaparecerá também. Mesmo o teu nome, António Lobo Antunes, não terá sequer a sombra de uma sombra. Ao escrever isto lembrei-me de um poema babilónico com mais de dez mil anos. Ficou o início

Ó casa de bambu escuta
ó casa de bambu compreende


e isto comove-me até às lágrimas. Como me comove um poema de Bachô

(estou a aportuguesar-lhe o nome)

feito no século dezasseis:

Os quimonos secam ao sol.
Ai as mangas pequenas
Da criança morta.


Ontem não te vi em Babilónia diz a inscrição numa pedra que aproveitei para um livro. De facto não vimos ninguém em Babilónia nem sequer a nós mesmos. Vaidade das vaidades, eu preocupado com a minha pobre obra. Pela janela aberta chegam os gritos dos presos no recreio da cadeia lá em baixo. Parecem alegres, riem, cantam. Ná havendo novidade daqui a quarenta anos estão cá fora a aliviarem os bolsos do pagode. Quanto a mim, ná havendo novidade, daqui a dez estarei com com o amigo alentejano, sem pernas, a comermos à colher um pacotão de açúcar.

Paisagem brasileira

E. Valenta

Blá-blá-blá não faz crescer

Não se faz uma grande nação dizendo-se que ela é tal coisa, nem se restaura sua grandeza com conversas
Charles De Gaulle

O nome do jogo

Com o dono do time na cadeia e sem qualquer notícia boa para incentivar a torcida, o PT comemorou como gol de placa a absolvição da presidente do partido, Gleisi Hoffmann, e de seu marido, Paulo Bernardo, ex-ministro de Lula e Dilma Rousseff, das acusações de corrupção. Na terça-feira, 19, a segunda turma do STF foi ainda mais longe: deu um pito na PGR por basear denúncias exclusivamente em delações.

A galera petista vibrou.

Mais do que livrar Gleisi, o PT viu nisso a possibilidade de inverter o jogo e colher um placar favorável ao ex-presidente preso na sessão marcada para o dia 26 pela mesma segunda turma, um dia antes do último jogo do Brasil na primeira fase da Copa da Rússia. Muitos chegaram a apostar que Lula poderia ver os jogos seguintes em casa, solto. Ou, pelo menos, com tornozeleira eletrônica.

O revertério começou já na quarta-feira, 20, quando o plenário do STF decidiu, por 10 x 1, pela legalidade das delações firmadas pela Polícia Federal, que, ao contrário do Ministério Público, enxerga nelas não a denúncia em si, mas o instrumento para investigações. Diga-se, uma posição mais apropriada e, consequentemente, mais efetiva quando se pretende apurar um crime.

Na manhã da sexta-feira, pouco depois de a primeira vitória da seleção poupar as sobras das unhas dos brasileiros, o PT se viu atropelado por reveses tão acachapantes como os 3 x 0 que a Argentina amargou no jogo contra a Croácia. Ou mais.

Antonio Palocci, o ex-todo poderoso ministro da Fazenda de Lula e chefe da Casa Civil de Dilma, teve sua delação homologada pelo Tribunal Federal de Recursos da Quarta Região (TRF-4). Foi o primeiro a se beneficiar do novo entendimento do STF.

O que ele disse à PF continua sob sigilo, mas só pelo conteúdo já antecipado na carta de desfiliação ao PT sabe-se do poder de fogo da sua fala, um arsenal pronto para detonar ex-companheiros de farra, políticos ou não.

Mais tarde, outro baque: a revisão da pena de Lula foi retirada da agenda do Supremo depois que o TRF-4 decidiu negar o recurso extraordinário da defesa.

Pelo menos por enquanto o ex continuará vendo os jogos na TV instalada na cela especial da PF de Curitiba, regalia autorizada por Sérgio Moro, juiz que Lula xinga e diz ser seu algoz.

O ex sempre adorou misturar futebol e política. Antes de se ver enredado no mensalão, elegeu o também condenado José Dirceu como “capitão do time”. Mantida a alegoria futebolística, a cadeia era tão inimaginável para ele quanto os 7 x 1 que a Alemanha impôs ao Brasil em 2014, ano em que sua sucessora começou a lançar o país na maior recessão da história.

Hoje, Lula joga com um time milionário de advogados para multiplicar recursos pós recursos. Mais do que um árbitro de vídeo, quer que a defesa tenha mando de campo. Se assim for, derrota o Brasil. Não o da Rússia, mas o que aqui está.
Mary Zaidan

Políticos e juízes, entre o destino e a tragédia

Entre as consequências da velocidade do processo de destruição criadora, da financeirização dos capitais e da interconexão global dos mercados, destacam-se a erosão das certezas, a dificuldade de identificar as questões mais importantes e desorientação na formulação de respostas. Ao contrário das novas gerações, as mais antigas podiam ser menos informadas, mas sabiam operar com modelos capazes de sinalizar caminhos e antever cenários, mesmo que sombrios. As gerações atuais vivem um paradoxo: quanto mais informações recebem, mais ficam indecisas, revelando-se incapazes de fazer as indagações necessárias à compreensão do momento atual.


Uma dessas indagações é saber como proceder na interpretação de fatos, narrativas e teorias. Outra diz respeito ao tema da legitimidade: na democracia, quem tem a autoridade para impor obrigações aos cidadãos? Como interpretar declarações de políticos que, perplexos com a atuação da Justiça, passaram a perguntar quem manda – se os juízes de primeiro grau ou o presidente da República. “No mundo persa ou grego, o destino era uma atribuição dos deuses. Quando Roma inventou a política, deu o destino – e a tragédia – nas mãos dos homens. Às vezes tenho a impressão de que essas corporações querem substituir os deuses antigos”, afirma um desses políticos.

Num período em que a desorientação resulta do aumento das possibilidades de ação, o denominador dessas indagações se traduz pela incapacidade dos políticos de compreender a política a partir de seus componentes básicos – as relações de força, autoridade, mando e obediência. Outro denominador é a ideia de que os prognósticos com relação ao futuro são inversamente proporcionais ao seu conhecimento. Quanto mais se fala do futuro, menos se sabe sobre ele. Um modo de compreender esse cenário de dubiedades é retomar um ponto da obra de Max Weber, para quem os processos civilizatórios podiam ser vistos como processos de racionalização, como os que forjaram o mundo moderno. Uma das características da modernidade está na crise de seus fundamentos nos planos do conhecimento, da moral e da política. A angústia despertada no homem moderno após a libertação dos laços feudais, dizia Weber, levou-o a uma busca obstinada por calculabilidade e previsibilidade, valorizando a impessoalidade nas relações de dominação e uma ordem jurídica elaborada racionalmente.

Foi esse o papel do Direito moderno: assegurar as expectativas dos cidadãos, oferecendo-lhes garantias contra a arbitrariedade do poder estatal, e criar instituições capazes de impor as regras do jogo, propiciando a conversão das paixões políticas em alternativas programáticas submetidas a escrutínio público. Foi isso que fez a segurança na vida social passar a depender da determinação do jurídico – de um sistema normativo com normas objetivas e fronteiras delimitadas em relação à moral. O problema é que as condições que forjaram o mundo moderno se alteraram, exigindo hoje uma reconfiguração da política, na qual o Estado coexiste ao lado de outras instituições tão fortes quanto ele. Isso foi evidenciado pela ineficácia dos modos convencionais de articulação social, pelo esvaziamento dos modelos social-democratas de transformação política, pelas crises econômicas e pela corrupção.

A consequência foi a descrença nos instrumentos e nas possibilidades da política. Foi no vácuo deixado pela redução da política tradicional a um balcão de negócios que surgiu o protagonismo judicial, ampliando a jurisdição da Justiça com base em sistemas normativos em que princípios se sobrepõem às regras, por serem mais adaptáveis a sociedades funcionalmente diferenciadas. Quanto mais complexa é a sociedade, menos ela consegue ser disciplinada por normas precisas. Por causa de seus conceitos vagos, de difícil determinação, os princípios propiciam uma interpretação extensiva das leis, o que faz da adjudicação uma instância privilegiada na construção do Direito. Contudo, quando essa interpretação alargada é justificada só com base em argumentos morais, ela passa a ideia de que a política é suja – portanto, prescindível. Não por acaso, antes de ser preso um ex-presidente da República criticou os juízes que o condenaram afirmando que “quem se agarra a princípios não faz política”.

A perplexidade dos políticos, quando criticam princípios ou perguntam quem manda, decorre da incapacidade de perceber as mudanças no Direito e os riscos da desqualificação da política. Quando acusam os juízes de primeiro grau de exorbitar, esquecem-se de que é na primeira instância dos tribunais que se dá o primeiro choque entre o sistema jurídico e as condições reais da sociedade. Esquecem-se de que são esses juízes os primeiros a perceber o fosso entre os problemas sociais emergentes e as limitações das leis. Enquanto os juízes de primeiro grau enfrentam o desafio de ajustar sua função a uma sociedade em mudança, os políticos continuam identificando política com atividades congressuais e com a próxima eleição, desprezando questões como as relativas às funções do Estado. Incapazes de compreender que o Estado, conforme o momento histórico, pode ter funções distintas e adequadas a diferentes objetivos, ignoram que a democracia não é um regime de fórmulas fixas para resolver conflitos de interesse e que a política não pode ser exercida fora dos marcos legais – incluídos os do Código Penal.

Classificar os juízes como deuses pode render discursos e levar a projetos de lei que tipificam o crime de abuso de autoridade, para conter a Justiça. Mas não neutraliza o ativismo judicial ancorado em princípios morais. Não oferece alternativas a um modelo de Direito acusado de relativizar garantias de defesa em nome do combate à corrupção. E não resolve a crise das instituições, notadamente as que definem a organização do mercado e da democracia. Só as aprofunda.

Brasil da Copa


O Brasil que escreve sua história com sangue de crianças

Há algo que despedaça dentro da gente quando uma criança morre, e uma mãe precisa enterrá-lo. Mas a dor é incalculável (ou deveria) quando se sabe que o pequeno ou a pequena são indefesos alvejados brutalmente por obra de uma política de segurança assassina que cobiça ainda mais poder para matar inadvertidamente. “Ele não meu viu com a roupa de escola, mãe?”, disse Marcos Vinicius da Silva, de 14 anos, enquanto sangrava pela barriga, pela bala que o atravessou vindo de um blindado da polícia. Vinicius recebeu o tiro pelas costas. Definhou nos braços da mãe, Bruna. Uma doméstica, parda, do Complexo da Maré, no Rio. Seguiu até o hospital, depois de esperar uma hora pela ambulância. Não resistiu.

O país que se solidarizava na última quinta-feira com as fotos de crianças chorando, separadas dos pais sob a política insensível de Donald Trump para os imigrantes nos EUA, não percebia que mais uma criança brasileira também era apartada, para sempre, dos seus. Assassinada, vítima impotente da indiferença geral. Do Governo brasileiro, que fomenta uma política violenta, classista e mambembe de segurança pública, e a indiferença de uma enorme parcela da população que finge não enxergar esse massacre.


Como não sentir revolta contra este sistema apodrecido? Ninguém teme o que vem depois? A situação é grave, gravíssima, não só pela morte de mais um adolescente. Só neste ano foram oito crianças vítimas de balas perdidas, como levantou o jornal O Dia, sendo duas delas de apenas dois anos. No mesmo dia em que Marcos morreu, Guilherme Henrique, também de 14, foi vítima de balas disparadas de um veículo no Realengo, zona Norte do Rio. Também estava de uniforme escolar. Queria ser engenheiro. Um menino estudioso, que não saía de casa, segundo seu pai, Roberto. A trágica realidade é a quantidade de mártires mirins que este país multiplica ano a ano. Em março do ano passado, foi Maria Eduarda, de 13 anos, assassinada dentro da escola, na Zona Norte do Rio. No final de 2015, cinco jovens covardemente mortos com 50 tiros de fuzil.

É inacreditável que o Brasil continue escrevendo sua história violenta de desigualdade com sangue de crianças e adolescentes. E que uma parte da população dê de ombros para estas notícias, querendo eleger um candidato a presidente que quer mais sangue ainda com a liberação de armas e autorização para que a polícia mate sem ser questionada. Jair Bolsonaro postou na sexta-feira em seu twitter um elogio à polícia militar do Rio de Janeiro com cenas de pessoas sendo presas, enquanto Bruna ainda devia ouvir as últimas frases do seu filho “era um blindado” – antes de morrer. Nenhuma palavra sobre Vinicius e Guilherme Henrique que morreram em sua cidade. Bolsonaro ainda anunciou, no mesmo dia, que não vai a debates nas eleições para explicar suas propostas que reforçam e pioram as diretrizes para esta masmorra humana a céu aberto.

Marcos Vinicius ia para a escola quando recebeu o tiro. Ia tentar furar o bloqueio da desgraçada pobreza deste país, que precisa de nove gerações para que alguém supere sua condição de sobrevivência financeira. Isso, se não morrer assassinado antes por ter nascido com o ‘erro’ de origem de vir ao mundo em uma família simples. A foto dos amigos dele segurando sua camiseta ensanguentada é para ser esfregada na nossa memória. No mesmo dia de seu assassinato, uma manchete da Folha contava que o Governo fazia planos de tirar recursos que seriam destinados ao Fundo de financiamento estudantil (FIES) para repassar à segurança. Até quando vamos ter de escrever textos e mais textos para falar o óbvio, repetir Darcy Ribeiro sobre as nações que não investem em escolas gastam mais dinheiro com presídio, e que, por favor, crianças morrerem assassinadas não é miopia, mas psicopatia social?

Marcos vivia na Favela da Maré. A mesma onde cresceu Marielle Franco, cuja execução sumária continua protegendo assassinos que se alimentam do sangue de pessoas como ela ou este novo mártir involuntário que não teve a chance de ver a vida além de seus 14 anos. Não viu a vitória da seleção. Não teve a oportunidade de terminar a escola, de sonhar além dessa breve existência. Seus colegas não foram à aula nesta sexta, temendo a presença de outros blindados. No ano passado, eles faltaram 38 vezes pelo mesmo motivo, segundo o jornal o Globo. É o risco de ser assassinado como estímulo para fraquejar na educação. A taxa de evasão escolar ali é de quase 20%, maior que a média nacional, ainda segundo o Globo.

É uma dinâmica horrenda e interminável neste país, que finge alívio com uma intervenção militar no Rio de Janeiro e suas ridículas cifras que só mostraram aumento de mortes violentas e zero de solução. Bola cantada mil vezes pelos moradores de comunidades, e por todos os estudiosos da violência no Rio quando a intervenção foi anunciada. Marcos Vinicius entra nessa conta. De quem vamos cobrar o que não tem volta? Um Estado que não se importa com a morte de uma criança não é doente, como disse a admirável Bruna, mãe do adolescente, que dentro de sua incomensurável dor, logrou ser elegante para falar do assassino de seu anjo. Um Estado que mata insistentemente crianças e inocentes em franjas desassistidas como a do complexo da Maré é cruel, perverso, assassino.

Nunca o Brasil pediu tanta atenção para tratar a doença, esta sim, da sua indiferença com a morte de inocentes. Nunca foi tão necessário assumir o papel de civilizador com quem se nega a entender o óbvio, e pior, não entende que é conivente com esta chacina de menores.

O direito supremo

O primeiro dos direitos é o de existir. A primeira lei social é, portanto, a que garante a todos os membros da sociedade os meios de existir, todas as outras estão subordinadas a ela
Maximilien de Robespierre

Ninguém segura!

Olho pela janela. Contemplo uma procissão de retirantes. Fogem dos tiroteios de um morro próximo. De cabeça baixa, retratando uma humilhação que nos atinge a todos, seguem pela rua afora carregando suas trouxas. Muitos terão como casa a vida e como endereço o mundo.

Mas há algo errado na cena: a procissão segue em silêncio! Eis o que falta: uma trilha sonora adequada ao quadro! Talvez o “Requiem” de Wolfgang Amadeus Mozart. Ou o de Gabriel Fauré. Surpreendentemente, no entanto, ela surge, pelas mãos de torcedores reunidos em um prédio próximo! Agitando bandeiras do Brasil, celebrando a Copa do Mundo realizada na Rússia, começam a cantar e exclamar um sonoro “Viva o Brasil”!

Animadamente, chegam ao refrão da música, uma certa “Eu te amo meu Brasil”, atribuída aos “Incríveis” (e nunca tão oportuna a referência). Cantam, a plenos pulmões, “Eu te amo, meu Brasil, eu te amo. Ninguém segura a juventude do Brasil”. Deve ser verdade – que o digam os retirantes.

A triste procissão segue seu curso. Passa diante de reluzentes prédios públicos – muitos deles abrigando importantes instituições, daquelas simbolizadas por vetustos brasões e símbolos magnos da república. À porta, tremulam os pavilhões nacional e estadual. E prossegue o fundo musical: “Eu vou ficar aqui, porque existe amor”.

Converso com um dos retirantes, meu conhecido de longa data. Com o olhar sem brilho e a voz embargada, me descreve o horror da noite anterior, entrecortada por disparos de revólver e metralhadora. Ao nosso lado, a música continua: “As noites do Brasil tem mais beleza, lá, lá, lá, lá”.

Sou apresentado, por intermédio de uma senhora, às lágrimas de sua neta, traumatizada pela cena dos meliantes portando armas pesadas ostensivamente, à luz do dia, e dos cadáveres que produzem impunemente. Com o coração apertado pela desesperança que testemunho na face daquela criança, mais música chega aos meus ouvidos: “Mulatas brotam cheias de calor. No Carnaval, os gringos querem vê-las”.

Vejo a procissão dobrando a esquina da rua e da vida. Ouço a música ao fundo. Passa-me pela mente a orquestra do tristemente célebre navio Titanic, embalando, com seus acordes, um naufrágio de proporções dantescas. Mas logo afasto qualquer associação com o quadro que vejo – afinal, lá a música traduzia compaixão.

Pedro Valls Feu Rosa