segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Digitax uma ova!

Por duas vezes em menos de um mês o presidente Jair Bolsonaro detonou as ideias de sua equipe econômica para atendê-lo na criação de um substituto mais generoso para o Bolsa Família, batizado de Renda Brasil. “Não posso tirar dos pobres para dar para os paupérrimos”, esbravejou, indignado. Na mesma semana em que reprisou a frase de efeito, avalizou a reencarnação da CPMF, ressuscitada como Digitax. Optou por tirar também dos paupérrimos para perenizar o dinheiro na veia que inflou sua popularidade.

Muda-se o nome, com marquetagem anglicista (fala-se digitéx ou digitáx?), mantém-se o conteúdo: não passa do velho e famigerado imposto do cheque.

O ministro Paulo Guedes sabe desde sempre e Bolsonaro também – que não existe espaço no orçamento para criar despesas. Mal, mal, será possível fechar os próximos anos com déficits administráveis. Os planos A, B e C para aumentar o número de beneficiados e o valor do Bolsa Família e com isso reduzir o impacto do fim do auxílio emergencial sempre foram o imposto sobre transações financeiras, agora com a pegada pseudo-moderninha de operações digitais.

Como as resistências a esse tipo de imposto são gigantescas, o que se fez foi enfiar chifrudíssimos bodes na sala, permitir que o presidente os afugentasse e, por fim, apresentar uma proposta que possa parecer mais amena.


Em meados de agosto, um estudo da equipe econômica dava conta de que o Renda Brasil poderia ser financiado com o fim do abono salarial, do salário-família, do seguro-defeso e da farmácia popular. Era previsível a grita contrária por se tratar de programas sociais de peso. Bolsonaro escolheu um evento em Minas, com as ensaiadas aglomerações, para defender os paupérrimos e suspender qualquer debate sobre o tema.

No dia 15 de setembro, novamente travestido de defensor dos pobres, voltou a rechaçar a área técnica do Ministério da Economia que, malvada, propunha congelar aposentadorias, benefícios de idosos e de deficientes. “Até 2022, no meu governo, está proibido falar a palavra (sic) Renda Brasil. Vamos continuar com o Bolsa Família e ponto final”, assegurou.

O apalavrado, como de resto tudo que Bolsonaro diz, não durou um único dia. Em menos de 24 horas seus fiéis no Congresso já trabalhavam em uma proposta “alternativa”, e Guedes aparecia com o Digitax. Difícil crer que tudo não passou de jogo combinado.

Como deputado, Bolsonaro sempre execrou a CPMF. Taxou-a de “proposta insana”, que só beneficiava o andar de cima da sociedade. “Com toda certeza a agiotagem passou a noite ‘bebemorando’ essa desgraça aprovada por esta Casa”, disse em 1999, diante da renovação da contribuição pelo Congresso.

Chegou a sugerir, em 2003, que fosse feita uma pesquisa para confirmar a impopularidade do imposto “no mínimo mostrará que 90% são favoráveis ao fim da CPMF”. E voltou a rechaçar a cobrança em 2015, quando o então ministro Joaquim Levy pensou em recriá-la.

Agora, suas críticas são só da boca para fora. Está claríssimo que é zero a sua disposição de abrir mão da aprovação popular conquistada velozmente com o auxílio emergencial, que já teve de ser diminuído pela metade neste mês e acaba em dezembro.

Costumeiro em se fazer de vítima – e com sucesso -, Bolsonaro não deve se tornar um defensor da Digitax. Dirá que não queria o imposto, que resistiu o quanto pode. Mas que era a única saída para auxiliar os desassistidos, desonerar a folha de pagamentos, gerar emprego, fazer o Brasil crescer e blá-blá-blá.

Por óbvio, esconderá que o imposto linear é uma alternativa preguiçosa e rentabilíssima. Cruel com os mais pobres, que entram na roda com a mesma alíquota dos que têm regalias bancárias, não raro, atrativos pacotes de isenção.

Sob a falácia de proteger os necessitados, incluirá na conta desempregados, informais, pobres e paupérrimos, estimulados pelo próprio governo a aderir à economia digital para receber benefícios, portanto, sujeitos à taxação.

“É um imposto regressivo, cumulativo, inflacionário e mais uma carga para os nossos equipamentos produtivos, para o bolso dos trabalhadores e do nosso povo”. Assim disse Bolsonaro, quando se opunha ao governo da vez. Argumentos 100% válidos.

Acertou lá para errar aqui. Pelos mesmos motivos: seus interesses eleitorais, seu umbigo.

Brasil de lama

 


Nonsense no governo Bolsonaro comanda e sufoca todo resquício de gravidade

Um riso mal contido, pode ser, talvez envergonhado. Como na extravagância de alguns tombos, sobretudo os vistos. E é disso mesmo que se trata: cenas patéticas de um tombo, o deste país.

O Brasil a ameaçar de represália os grandes países que sustem importações de produtos brasileiros, em reação à sanha destruidora na Amazônia. Cada grão de soja e grama de carne que deixem de importar é um rombo na economia bolsonara. E logo quem a propalar a ameaça, o general Heleno, não propriamente do alto de sua lucidez.

Fiel ao sentimento de que o cinismo não tem limite, nem para traição à memória de seus ídolos torturadores e matadores, Bolsonaro a dizer à ONU que “a liberdade é o bem maior da humanidade”. Depois de atribuir a interesses internacionais na riqueza da Amazônia uma campanha para “prejudicar o governo e o próprio Brasil”. No que foi corrigido pelo general Heleno, que, a partir do nível um tanto prejudicado da sua visão do mundo, identificou outra motivação etérea do mundo: é uma “campanha internacional para derrubar Bolsonaro”.


Tamanho nonsense sufoca todo resquício de gravidade que se queira atribuir-lhe, consideradas as responsabilidades funcionais dos emitentes. O possível é apenas sondar os traços anedóticos que lhe dão forma e grotesco. E rir.

Acima e abaixo dos delírios, o problema é que os militares influentes do Exército não compreenderam que a Amazônia é um amálgama de características de flora e de fauna, geológicas, climáticas, fluviais e pluviais, todas em mútua dependência. E que a entrega desse mundo de peculiaridades interligadas à exploração humana resultará, é inevitável, em que não será mais a Amazônia.

Da mata atlântica, por exemplo, restam no máximo 16%, em estimativa otimista. Do Nordeste ao Sul, por toda a costa e por entradas até o interior profundo, o que há são terras descascadas, depauperadas, ocupadas do modo mais desordenado. Cidades em que tudo se amontoa com vastidões vazias em torno. Poluição, agravamentos climáticos —é a realidade que tomou o lugar da mata atlântica. Assim seria com a entrega da Amazônia à exploração humana: não mais Amazônia.

A “exploração racional e planejada” é balela. Iniciado o processo, será o mesmo de sempre. Os aldeamentos logo se transformam em vilas, daí em cidades, a necessidade de infraestrutura e mais exploração transformam mais áreas, e assim em sucessivas destruições ambientais. A entrega da Amazônia à exploração industrial terá, porém, consequências climáticas muito maiores no Brasil todo, e por extensão no mundo, do que o miserável fim da Mata Atlântica.

Apesar disso, a ocupação da Amazônia é uma tese dita estratégica dos militares do Exército. Ricardo Galvão, cientista e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, desmontou o argumento do vice Hamilton Mourão para criação de uma agência para concentrar todos os monitoramentos da Amazônia. Uma agência sob controle militar. “Como o norte-americano NRO” é um argumento aqui muito forte. Mas errado, se de boa ou má-fé, fica por clarear. A verdade é que o NRO está proibido de atuar no território dos EUA. E o monitoramento por lá é civil.

Mas a agência militarizada seria apenas a porta-estandarte do Exército. Atrás viria o que consiste no projeto real: não só o monitoramento, mas o controle absoluto da Amazônia pelo Exército. Um grande território militar, sonhado como o meio eficaz de neutralizar a presumida ganância de uma ou de outra potência sobre a posse da Amazônia. Até décadas recentes, e por muito tempo, o delírio era a guerra inevitável com a Argentina —motivo até de promoção a general por mérito de planejamentos, como foi o caso do último algoz de João Goulart, o seu amigo Amaury Kruel. No mapa, da Argentina para a Amazônia são centímetros possíveis.

Enquanto o nonsense comanda, o fogo está autorizado a antecipar o serviço.

Brasil, a potência agrícola onde a fome aumenta

Depois de mais de uma década em declínio, a fome voltou a crescer e já faz parte do cotidiano de 10,2 milhões de brasileiros, ou 5% da população, constatou o IBGE em pesquisa divulgada na semana passada. O aumento na insegurança alimentar das famílias mais pobres é uma das sequelas do longo ciclo recessivo na economia, iniciado em 2014, agravado na pandemia pela alta do desemprego e do trabalho informal. 

Os dados coletados em 58 mil domicílios sugerem um enorme retrocesso nas condições mais básicas de vida na pobreza: o retorno ao quadro existente década e meia atrás. Reforçam, também, evidências da expansão das desigualdades. A escassez de alimentos para subsistência ocorre com maior frequência nas famílias chefiadas por negros. Crianças e adolescentes são afetados desproporcionalmente. 


É situação gravíssima, absolutamente incompatível com a posição do Brasil como potência global na produção de alimentos. Merece ação governamental urgente, concentrada nos núcleos familiares mais fragilizados das regiões Norte (10,2% dos domicílios pesquisados), Nordeste (7,1%), Sudeste (2,9%) e Sul (2,2%).

O governo Jair Bolsonaro, como de costume, prefere a realidade paralela. Simplesmente abstraiu o aumento da insegurança alimentar e resolveu dar prioridade à discussão sobre as mudanças nas diretrizes do Ministério da Saúde para a indústria de alimentos. 

Na semana passada, o Ministério da Agricultura sugeriu mudar normas para suprimir das embalagens uma sensata orientação de saúde pública: “Evite alimentos ultraprocessados”. Argumentou que tais alimentos “são feitos industrialmente de forma semelhante a preparações culinárias caseiras”. 

Cientistas das universidades de São Paulo, Harvard, Johns Hopkins, Yale e Cambridge, entre outras, reagiram com ironia. Disseram não entender por que a Agricultura esquecera o impacto negativo comprovado na saúde pública de ultraprocessados como biscoitos, embutidos ou bebidas açucaradas. Diante da péssima repercussão, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, anunciou na sexta-feira uma mudança de posição, reconhecendo que nutrição é problema de saúde pública. Conveniente, mas perda de tempo. 

É legítimo que o governo planeje aperfeiçoar o código alimentar. Mas precisa se submeter ao debate no fórum adequado, o Congresso, onde já existe uma dezena de projetos de lei em tramitação sobre o assunto.

Urgente e prioritária é a necessidade de mobilizar toda a estrutura do governo federal para, com estados e municípios, resgatar a população pobre atingida pela forma mais aguda de insegurança alimentar. É inconcebível que haja fome num país que acumula recordes mundiais sucessivos na produção e exportação de proteínas e de produtos agrícolas — e o governo perca tempo ressuscitando debates que a ciência já resolveu.

As pandoras da pandemia

No início de abril, quando a cidade de Nova York estava quase totalmente paralisada, ouvia as sirenes das ambulâncias dia e noite. Lia as notícias de que caminhões frigoríficos tinham sido trazidos para alojar as centenas de cadáveres que saíam dos hospitais todos os dias. Lia sobre os coveiros que não davam conta de enterrar os corpos. Pensava em todas as pessoas que choravam seus mortos, por causa de um vírus completamente indiferente à sua dor.

Naquela mesma semana, o New England Journal of Medicine publicou um ensaio intitulado Fuga da Caixa de Pandora. O epidemiologista David Morens e seus colegas usaram o mito grego da primeira mulher que abriu sua caixa e deixou sair as doenças, a morte e outras desgraças para o mundo como uma apropriada analogia para a pandemia. “Devemos estar cientes” —escreveram— “de que neste mundo superpovoado de 7,8 bilhões de pessoas a mistura de comportamentos humanos alterados, mudanças ambientais e mecanismos de saúde pública insuficientes em todo o mundo podem facilmente fazer com que vírus animais desconhecidos se transformem em ameaças existenciais aos seres humanos”. Em outras palavras, há motivos para temer que outros vírus zoonóticos passem silenciosamente, invisíveis, de outras espécies para a nossa. “Oxalá” —disseram— “possamos colocar os demônios de volta na caixa”.

Estamos em setembro. Demônios continuam voando por todas as partes. Nos Estados Unidos, mas não só aqui, a trajetória do vírus dependeu muito das histórias contadas sobre ele, muitas delas fictícias.



Todas as culturas humanas criam narrativas para explicar por que as coisas são como são. No mito original contado pelo poeta grego Hesíodo, Zeus fica furioso porque Prometeu roubou o fogo dos deuses e então ordena a criação da mulher, “um belo mal”, como punição por esse crime. O sofrimento humano tem uma causa, que assume a forma de uma mulher atraente, insidiosa e malévola. A pandemia se tornou um terreno fértil para histórias que apresentam a transmissão cega de um vírus como um malvado plano humano. O Pew Research Center descobriu que 71% dos adultos nos Estados Unidos conhecem a teoria de que vários personagens poderosos colocaram deliberadamente em circulação o vírus SARS-CoV-2. Um terço dos entrevistados respondeu que a história era “provavelmente” ou “indubitavelmente” verdadeira.

O número oficial de mortos nos Estados Unidos —que certamente é menor do que o real— supera os 200.000.

Neste momento Nova York é um oásis. Em 8 de abril, 700 pessoas morreram de covid-19. Em 18 de setembro, morreram duas. Depois de uma terrível primavera em que estava adormecida, exceto as ambulâncias, a cidade foi despertando aos poucos. O tráfego está de volta. As sirenes recuperaram o ritmo de sempre, mas não podemos comer dentro de um restaurante e o início do ano letivo nas escolas foi cheio de dificuldades. No meu bairro, quase todo mundo usa máscara, embora às vezes eu as veja abaixo do queixo ou com o nariz de fora. Porém, no conjunto do país, a máscara não está generalizada, longe disso. Andar com o rosto descoberto é uma declaração política, um sinal visível da história que aquela pessoa decidiu acreditar.

Nos comícios de Trump, as multidões sem máscaras o aclamam enquanto ele sorri e expressa ruidosamente sua aprovação. Milhões de norte-americanos estão convencidos de que o vírus é uma “fraude” ou que o número de mortes foi exagerado. Circulam, com a ajuda do presidente, teorias da conspiração que falam do “Estado profundo”. Na Internet é vendida uma máscara que exibe a frase: “Isto parece uma simples máscara, mas na realidade é parte de uma vasta conspiração dos progressistas e da China para destruir os Estados Unidos e derrocar o homem branco”. Quando a vi acabei rindo, mas é um humor sinistro. Algumas teorias da conspiração são mais bizarras do que outras, e os Estados Unidos não são o único país em que circulam. A ironia é que também são letais. Ninguém sabe exatamente quantos seguidores de Trump contraíram a doença ou morreram depois de seus comícios. A única coisa que sabemos é que o número de casos nessas regiões aumentou imediatamente depois.

Os seres humanos são vítimas das ficções coletivas que difundem. Os cientistas usaram o antigo mito de Pandora para ilustrar os perigos provocados por um planeta em rápida transformação. Não acredito que estivessem pensando na misoginia descarada da história, mas o ódio às mulheres, como o ódio aos negros e aos pardos, aos imigrantes, aos judeus, às comunidades LGBT e às elites urbanas, favoreceu a propagação da covid-19 nos Estados Unidos. Muitos Estados se recusaram a tomar precauções razoáveis. Depois do confinamento, as lojas e os negócios abriram cedo demais. Não exigiram máscaras nem medidas de distanciamento. Eram bravatas republicanas dirigidas ao medo da castração. “Representa a submissão”, disse um homem à jornalista Brie Anna Frank a propósito da máscara. “É colocar uma mordaça, mostrar fraqueza, especialmente para os homens”.

O cientista político Tyler T. Reny investigou as regras masculinas e o coronavírus em um ensaio publicado em julho. Sua conclusão é que as ideias sexistas “são, repetidamente, o indicador mais confiável de emoções, comportamentos e atitudes políticas relacionadas ao coronavírus e inclusive da probabilidade de contrair covid-19”. “Este estudo”, escreve, “destaca que a ideologia de gênero pode afetar a saúde e ser um obstáculo para as campanhas oficiais de saúde pública.” Outros ensaios oferecem diferentes pontos de vista. Nos Estados Unidos, o maior indicador da probabilidade de contrair o vírus e, principalmente, de morrer devido a ele, é a pobreza. A pandemia ressaltou as desigualdades de um sistema de saúde privado baseado nos lucros empresariais e o racismo inerente a ele.

Costuma-se pensar que a biologia é uma realidade fixa, diferenciada de nossa psicologia e dos mundos sociais em que vivemos. Temos coração, pulmões, fígado e cérebro que, às vezes, sofrem avarias. Vamos ao médico para resolver o problema, mas nem sempre tem remédio. Morremos. Nossas conversas com outras pessoas e nossas opiniões políticas estão separadas de nossos corpos, são aéreas e imateriais. Mas a pandemia nos mostrou que essas divisões são falsas. Não é possível separar o biológico, o psicológico e o sociológico. As circunstâncias sociais e as narrativas políticas estão intimamente ligadas à epidemia em geral. O ódio e as desigualdades influenciam a saúde. O sistema imunológico é muito sensível ao estresse e, se sofre tensões contínuas, pode modificar a expressão gênica e provocar uma inflamação que, com o tempo, tem efeitos prejudiciais para a pessoa. O racismo é um fator de estresse e seu impacto está sendo estudado. Olusola Aijore e April Thames publicaram em agosto um artigo sobre esse assunto na revista Brain, Behavior, and Immunity: O Incêndio Nesta Ocasião: A Tensão do Racismo, a Inflamação e a Covid-19.

As pessoas que acreditam na ciência olham assombradas para as extravagantes teorias de extrema direita que se espalharam em todo o mundo, sobre planos sinistros em que frequentemente aparecem Outros que servem como bodes expiatórios: a mulher, Hillary Clinton, o homem negro, Barack Obama, e o judeu, George Soros, três pessoas às quais foram enviados pacotes com bombas em 2018. Os três fazem parte da mitologia de Trump há muito tempo: Hillary Clinton é uma criminosa, “Hillary, a corrupta”, Obama não é norte-americano e nasceu no Quênia, e Soros paga os manifestantes do Black Lives Matter para que protestem. Cuidado, as coisas não são o que parecem. A verdade está escondida e é terrível. Por trás do belo exterior de Pandora reside o mal. O QAanon atraiu um grande número de seguidores com sua história sobre progressistas pedófilos, malignos e poderosos que escravizam crianças. A grande imprensa é rápida em apontar que “os fatos” não sustentam essas mentiras, mas tenho a impressão de que os crentes não se importam com isso. O que normalmente não se destaca é que existe gente poderosa que tramou conspirações verdadeiras contra uma população desprevenida.

As companhias de tabaco e farmacêuticas estão acostumadas a censurar os estudos que as prejudicam para aumentar seus lucros. A história dos Estados Unidos está cheia de estudos médicos abusivos, alguns realizados em segredo. Em 1941, um grupo de virologistas, entre os quais estavam Thomas Francis e Jonas Salk, inoculou o vírus da gripe em pacientes de centros de saúde mental em Michigan, sem seu conhecimento. Ninguém morreu, mas foi uma questão de pura sorte. Entre 1946 e 1948, o Governo dos Estados Unidos, com a cooperação das autoridades guatemaltecas, infectou com sífilis, sem seu consentimento, 700 homens e mulheres, muitos deles prisioneiros e doentes mentais. Na tristemente famosa experiência de Tuskegee, no Alabama (1932-1972), na qual foram manipulados 600 homens negros, 400 dos quais com sífilis, o Governo lhes prometeu atendimento médico gratuito que nunca receberam. Muito depois da descoberta do antibiótico que cura a sífilis, os médicos que realizaram a experiência continuavam vendo morrer homens por uma doença horrível. Como disse um comentarista: a sinistra “experiência” revelou muito mais coisas sobre o racismo do que sobre a sífilis. A ciência não está livre de ideologias repugnantes, nem historicamente nem na atualidade.

Embora muitos membros da Administração tenham declarado “guerra” ao vírus, uma série inerte de substâncias bioquímicas que só ganham vida quando entram em contato com um organismo não saciam a ânsia de ter um inimigo, uma Pandora capaz de assumir a culpa pela nossa situação. O nome de um clérigo paquistanês, Maulana Tariq Jameel, ganhou as manchetes em maio quando disse que a pandemia era a prova da ira de Deus contra “a nudez e a obscenidade”. Em sua opinião, as impudicas culpadas que levaram esse castigo ao seu país e, por extensão, ao mundo inteiro, são “as filhas da nação”, não os filhos. Fez menção especial às jovens que dançam com saias curtas.

As ideologias fascistas florescem tirando proveito da angústia, da incerteza e de uma forte identidade nacional e nativista, muitas vezes envolta em significados quase religiosos ou ortodoxos. Espanha, Itália e Alemanha desenvolveram diferentes versões do fascismo europeu em diferentes circunstâncias culturais, mas com traços comuns, como a forte necessidade de restringir os direitos das mulheres, especialmente os direitos reprodutivos. Agora, novos tipos de movimentos autoritários, antidemocráticos e com cores fascistas estão reaparecendo em todo o mundo. A atitude beligerante dos nacionalistas hindus me lembra a dos furiosos apoiadores de Trump, dos membros de nossas milícias de extrema direita e dos neonazistas que marcharam em Charlottesville, Virgínia, em 2017. Esses sistemas de crenças só sobrevivem quando há inimigos humanos aos quais vilipendiar. Para os violentos nacionalistas hindus inspirados pelas ideias de Hitler sobre pureza racial, os muçulmanos, os cristãos e outras minorias religiosas são alvos de ataque. No Ocidente, as feministas, as pessoas de gênero não binário, os imigrantes, as minorias raciais e os marginalizados de todo tipo são alvos engolidos por retratos grandiosos que explicam por que as coisas estão tão mal. Essas histórias são rudimentares e eficazes. Dividem o mundo em dois, o bem e o mal, homens e mulheres, pretos e brancos, e assim projetam seus demônios nos outros para se enaltecerem.

Durante uma pandemia global em que tantas pessoas estão isoladas, sem segurança financeira e com medo do futuro, as teorias sobre Pandora ganham força. No meu país, estamos às vésperas de eleições que muito provavelmente serão decisivas para a morte ou a sobrevivência da república democrática. Donald Trump e outros aspirantes a déspotas ou déspotas perfeitos têm muitos milhões de seguidores em todo o mundo que engolem de bom grado as teorias paranoicas sobre os Outros que nos ameaçam. Se não tivessem esse apoio de massas, esses homens desapareceriam instantaneamente. O irônico e terrível é que, se aprendemos alguma coisa com a pandemia, é que todos os seres humanos são cidadãos vulneráveis do mesmo planeta e dependemos não apenas uns dos outros, mas também de ecossistemas cada vez mais frágeis, sem os quais não podemos sobreviver como espécie. A ação coletiva pode mudar as coisas. Os protestos ruidosos e o voto podem mudar as coisas. E a versão que decidirmos contar da história de nossa humanidade comum na Terra também pode mudar as coisas.
Siri Hustvedt, escritora premiada com o Prêmio Princesa de Astúrias de 2019

Como é tosqueira a elite brasileira

Só pode ser algum outro vírus, ainda sem nome, mas alguma coisa da ordem muito sanitária acontece no corredor dos bacanas que vai do Leblon até o Gero, no Jardim Paulista. Os ricos brasileiros estão dando um show de vergonha alheia. Perderam a noção. Meia dúzia deles tirou o fim de semana – nem aí se morrem 800 pessoas por dia no país do coronavírus - e foi às esquinas grifadas armar barraco. Dessa vez, não esculacharam os mais humildes. Estão brigando com eles mesmos.

Na primeira cena desse festival de despropósitos, com todos os endinheirados vestidos pela arrogância da deseducação, aparece um carro conversível de luxo trafegando pela noite da Rua Dias Ferreira. Em seu banco traseiro vão duas mulheres aplicadas em mostrar os atributos que sensualmente escapam de seus minúsculos biquínis.

Parece filmagem para alguma atualização da “Doce Vida”, o filme de Fellini sobre a liberalidade de costumes entre os grã-finos romanos na década de 1950, e o cenário é a mais do que apropriada passarela da juventude rica e moderna da Zona Sul do Rio. Vale tudo e tudo custa muito caro. As duas mulheres cariocas no cocuruto do conversível beijam-se, abraçam-se, parecem vibrar a chegada da liberdade pós-pandemia. Ninguém é de ninguém. Registradas pelas câmeras dos celulares ao redor, elas performam o sonho maior da civilização Instagram – “causam”.

Sentada na mesa de calçada de um restaurante japonês, uma arquiteta acompanhada de duas crianças não gosta da cena e, como um hater da internet, faz ali mesmo, ao vivo, o cancelamento do que viu. Ao invés do block, ou do dedinho apontado para baixo, a arquiteta, que no dia seguinte explicaria tudo em sua conta no Instagram (“parecia um pornô”), faz sua lacração jogando garrafas de água (“para apagar o fogo”) nas moças.

A partir daí, o falso Fellini vira uma verdadeira chanchada da Atlântida. A moça atingida, uma empresária de cosméticos, desce do carro, dá um soco na arquiteta e, desfilando na frente de todo o calçadão do Leblon a firmeza de seu corpo musculosamente espetacular, volta para o carro. Um outro “hater” arranca-lhe a parte de cima do biquíni, e aí o conversível sai em disparada cinematográfica. Ao fundo, vindo de sushis e sashimis, sobem os gritos de “piranha!”.

Em São Paulo, o escarcéu que exibiu como vai mal, como rima pobre a elite nacional, teve no lugar do biquíni uma peça de roupa que é a mais completa tradução dos patrões locais – o pulôver de cashmere amarrado no pescoço.

Um médico, ao ter o atendimento recusado no restaurante Gero (a cozinha estava fechada), gritou palavrões, disse que ia ligar para “o meu delegado” e que tinha “educação europeia”. Chamou para a porrada seus pares grã-finos, todos tentando acalmá-lo com argumentos classistas (“o meu delegado é da federal”, disse um, “eu também tenho berço”, obtemperou outro).

As mulheres no salão deixaram de lado o estilo fino de milhares de dólares investidos nos saltos altos, nos decotes abissais e penteados para a noite que se pretendia chique. Em uníssono, descontroladas, gritaram “no-jen-to! no-jen-to!”. Registre-se que, mesmo em meio a todo esse bafafá, o cidadão manteve, impávido e colosso, o icônico pulôver dos ricos paulistas ao redor do pescoço. Se fosse um filme - “Como é tosca a elite brasileira” seria bom título - a produção ficaria a cargo da gloriosamente paulista e pornochanchadeira Boca do Lixo.

Desnecessário dizer, por fim, que todos os personagens acima estavam sem máscara. Nossos ricos não distribuem dinheiro – vírus, sim.

Joaquim Ferreira dos Santos