segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Brasil, a potência agrícola onde a fome aumenta

Depois de mais de uma década em declínio, a fome voltou a crescer e já faz parte do cotidiano de 10,2 milhões de brasileiros, ou 5% da população, constatou o IBGE em pesquisa divulgada na semana passada. O aumento na insegurança alimentar das famílias mais pobres é uma das sequelas do longo ciclo recessivo na economia, iniciado em 2014, agravado na pandemia pela alta do desemprego e do trabalho informal. 

Os dados coletados em 58 mil domicílios sugerem um enorme retrocesso nas condições mais básicas de vida na pobreza: o retorno ao quadro existente década e meia atrás. Reforçam, também, evidências da expansão das desigualdades. A escassez de alimentos para subsistência ocorre com maior frequência nas famílias chefiadas por negros. Crianças e adolescentes são afetados desproporcionalmente. 


É situação gravíssima, absolutamente incompatível com a posição do Brasil como potência global na produção de alimentos. Merece ação governamental urgente, concentrada nos núcleos familiares mais fragilizados das regiões Norte (10,2% dos domicílios pesquisados), Nordeste (7,1%), Sudeste (2,9%) e Sul (2,2%).

O governo Jair Bolsonaro, como de costume, prefere a realidade paralela. Simplesmente abstraiu o aumento da insegurança alimentar e resolveu dar prioridade à discussão sobre as mudanças nas diretrizes do Ministério da Saúde para a indústria de alimentos. 

Na semana passada, o Ministério da Agricultura sugeriu mudar normas para suprimir das embalagens uma sensata orientação de saúde pública: “Evite alimentos ultraprocessados”. Argumentou que tais alimentos “são feitos industrialmente de forma semelhante a preparações culinárias caseiras”. 

Cientistas das universidades de São Paulo, Harvard, Johns Hopkins, Yale e Cambridge, entre outras, reagiram com ironia. Disseram não entender por que a Agricultura esquecera o impacto negativo comprovado na saúde pública de ultraprocessados como biscoitos, embutidos ou bebidas açucaradas. Diante da péssima repercussão, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, anunciou na sexta-feira uma mudança de posição, reconhecendo que nutrição é problema de saúde pública. Conveniente, mas perda de tempo. 

É legítimo que o governo planeje aperfeiçoar o código alimentar. Mas precisa se submeter ao debate no fórum adequado, o Congresso, onde já existe uma dezena de projetos de lei em tramitação sobre o assunto.

Urgente e prioritária é a necessidade de mobilizar toda a estrutura do governo federal para, com estados e municípios, resgatar a população pobre atingida pela forma mais aguda de insegurança alimentar. É inconcebível que haja fome num país que acumula recordes mundiais sucessivos na produção e exportação de proteínas e de produtos agrícolas — e o governo perca tempo ressuscitando debates que a ciência já resolveu.

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