quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Catão dos outros

O presidente eleito, e agora diplomado, Jair Bolsonaro chega ao momento da posse devendo uma explicação plausível sobre o caso de Fabrício Queiroz, seu amigo pessoal há 40 anos, como afirmou, e motorista de seu filho, senador eleito Flávio Bolsonaro, que teve um movimento financeiro detectado pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) de R$ 1,2 milhão tendo um salário de R$ 8,5 mil por mês.

A explicação do presidente para vários depósitos, num total de R$ 24 mil, para a futura primeira-dama Michelle, é plausível: tratar-se-ia de pagamento de um empréstimo, que não foi declarado no Imposto de Renda. Até aí, nada grave.

É normal ajudar funcionários em dificuldade, e receber pagamentos parcelados, tudo de maneira informal. Não declarar no IR pode ser uma falha, nunca um crime. A coisa começa a pegar quando o presidente, e seu futuro ministro da Justiça, Sergio Moro, consideram que, com a explicação, o caso sai de suas alçadas e vai para a do próprio Fabrício.


Nem mesmo do filho Flávio é cobrada qualquer explicação para a movimentação de dinheiro de seus funcionários na Assembleia Legislativa, onde atuava como deputado estadual.

É claro que, mesmo que tenha dado uma explicação para o caso de sua mulher, o comportamento dos filhos alcança o presidente, assim como as acusações contra Lulinha alcançam Lula, mesmo que as quantias conhecidas sejam consideravelmente menores.

À boca pequena sabe-se, sem que tenha sido investigado e comprovado ainda, que parlamentares de maneira geral, com raras exceções, e em todos os níveis de representação, costumam, e não é de hoje, cobrar um pedágio de seus funcionários.

Como os salários nesses casos são muito acima do mercado de trabalho — outra disfunção do Legislativo —, os funcionários não se incomodam de dar uma parcela para quem os contrata. Mas é um procedimento completamente ilegal, como é ilegal a utilização de caixa 2 para financiamento de campanhas eleitorais, mas todo mundo fazia, ou faz, como está revelando a Operação Lava-Jato. Inclusive o deputado Onyx Lorenzoni, futuro chefe do Gabinete Civil, que admitiu o uso de caixa 2.

Nesse caso, a suspeita é que o motorista Fabrício servia de laranja para a família Bolsonaro, recebendo em sua conta a porcentagem de cada um dos funcionários de Flávio. Este deveria ser um caso simples de ser desmentido.

Mas como até agora, passados vários dias da denúncia, o motorista não apareceu para dar uma explicação crível para tamanha movimentação financeira — R$ 600 mil recebidos e saídos de sua conta —, fica cada vez mais difícil acreditar que nada de errado tenha acontecido.

É preciso definir se aconteceu o esquema e, em caso positivo, por quantos anos a família Bolsonaro se utilizou dele, que até agora não foi desmentido por provas consistentes. Além do próprio Jair Bolsonaro, deputado federal por 27 anos, que empregava até mesmo uma funcionária que vendia açaí em Búzios, há Flávio, hoje senador eleito que era deputado estadual, o deputado federal Eduardo, anteriormente deputado estadual, e o vereador Carlos.

O futuro ministro da Justiça, Sergio Moro, que terá a seu pedido, para melhor combater a corrupção, o Coaf como órgão subordinado, não deveria dizer que, para ele, a explicação do presidente eleito está dada. Não é razoável exigir que fizesse uma crítica ao presidente ou à sua família, mas não deveria banalizar o assunto.

Se tratar assim todos os indícios de lavagem de dinheiro que aparecerem na sua frente, terá mudado de atitude diante dessas irregularidades. Logo ele, um juiz rigoroso com os mínimos indícios, e que tem demonstrado que eles, quase sempre, levam a descobertas de esquemas de corrupção graves.

Bolsonaro se elegeu, entre outras coisas, por apresentar-se como um combatente contra a corrupção. O convite a Moro para integrar seu ministério teve o sentido de reafirmar simbolicamente essa luta, e por isso foi aprovado pela opinião pública.

Não se pode ser Catão com os outros sem ser Catão consigo mesmo.

Pensamento do Dia


Bolsonaro sinaliza plano de 'governar' pelo celular

Ao discursar na cerimônia de diplomação no Tribunal Superior Eleitoral, Jair Bolsonaro sinalizou a intenção de transformar o celular numa extensão do gabinete presidencial. Referiu-se a “um novo tempo”. Uma época em que “o poder popular não precisa mais de intermediação”, pois “as novas tecnologias permitiram uma relação direta entre o eleitor e seus representantes.”

Ficou entendido que Bolsonaro irá transportar do ambiente eleitoral para a arena administrativa sua principal alavanca política: a comunicação direta via redes sociais (ou antissociais). São dois os intermediários que ele deseja saltar: os jornalistas e os caciques partidários. Um apoiador do capitão disse ao blog que ele decidiu “provar” que a mesma internet que serviu para vencer a eleição servirá para governar.

Não é que Bolsonaro pretenda ignorar a imprensa e as cúpulas partidárias. Nas palavras do correligionário do novo presidente, o que ele quer é “modificar o modo como o governo se relaciona com esses dois setores, eliminando a relação de dependência e confrontando quando for necessário.”

Contra a mídia, rações diárias de contrapontos oficias colocados ao alcance do aparelho de celular dos brasileiros. Contra os pajés dos partidos, contatos diretos com o baixo clero do Congresso, além de hashtags direcionando internautas para os calcanhares de parlamentares avessos a reformas.

Na campanha, dizia-se que a candidatura de Bolsonaro murcharia depois do início da propaganda no rádio e na TV. Deu-se o inverso. O rival tucano Geraldo Alckmin, com quase metade do tempo atribuído a todos os demais candidatos, amargou nas urnas um humilhante quinto lugar. E o capitão prevaleceu com exíguos 8 segundos de propaganda e uma superexposição televisiva provocada pela facada.

O sucesso eleitoral faz parecer fácil a implantação de um webgoverno, comandado por uma versão subdesenvolvida de Donald Trump. O difícil é executar o plano. Num primeiro momento, caciques como Valdemar Costa Neto (PR) e Roberto Jefferson (PTB), cujo poder partidário gira ao redor do rateio do tempo de TV, dos cargos e das verbas públicas, tendem a perder oxigênio.

Entretanto, será mais difícil governar por meio de posts, lives e hashtags quando terminar a lua-de-mel de Bolsonaro com seu eleitorado. A disposição das redes para apoiar diminui na proporção direta do crescimento da impopularidade de um governante. O mesmo celular que impulsiona serve para propagar os memes que corroem a imagem de autoridades nos grupos de WhatsApp.

De resto, a crise provocada pelo caso Coaf revelou uma particularidade desconhecida de Jair Bolsonaro. Diante de dados que acomodaram a conta bancária de sua mulher, Michelle, na rota da movimentação atípica de um ex-motorista de seu filho Flávio Bolsonaro, o presidente eleito moveu-se nas redes sociais e fora delas com a agilidade de uma tartaruga politraumatizada.

Noite de 13 de dezembro

Às 20h30 de 13 de dezembro de 1968, Alberto Curi, locutor da Agência Nacional, leu em rede de rádio e TV o comunicado do governo anunciando o Ato Institucional nº 5. Naquele momento eu estava na Modern Sound, loja de discos em Copacabana, aonde ia todas as sextas depois de sair do Correio da Manhã, em cujo 2º caderno trabalhava com Paulo Francis. Comprara um LP de Charles Mingus, e já estava saindo quando alguém veio me contar: “Acabei de saber. Os militares baixaram um ato para fechar tudo. Agora é sério”. Não vacilei. Tomei um táxi e voltei para o Correio, na Lapa.


Meia hora depois, já chegara lá. Havia uma multidão na porta do jornal. Desci do táxi, mas ninguém podia entrar. De repente, Osvaldo Peralva saiu do saguão imobilizado por dois homens. Passou a um metro de mim e foi jogado dentro de um carro. Peralva fizera parte da elite comunista na Europa, mas largara tudo em 1956, ao se convencer dos crimes de Stálin denunciados pelo sucessor Kruschev. Então escrevera um livro, “O Retrato”, em que revelava as táticas dos partidos comunistas, inclusive o brasileiro. Com isso, fora jurado pela esquerda. E, agora, por dirigir um jornal liberal e de oposição, era preso pela direita.

Paulo Francis estava num avião naquela noite, voltando de Nova York. Desceu de manhã no Galeão. Foi para seu apartamento em Ipanema e eles o pegaram pouco depois, ainda de pijama. Uma colega do jornal me ligou dizendo que meu nome estava numa lista que ela vira por lá. Mandou-me sumir por uns tempos.

Fiquei longe também do Solar da Fossa, onde morava, um ninho de anarquistas facilmente confundíveis com “subversivos”. Passei uns dias na casa dos tios de uma namorada, no Flamengo. Lá finalmente escutei o LP, “Mingus Revisited”. Achei muito triste.

Nunca me desfiz do disco, mas levei 30 anos para conseguir ouvi-lo de novo. Para mim, ele se tornara a trilha sonora do AI-5.

Malandragem

Tio Mário dizia o seguinte: na psicanálise você revela ao analista o que não tem coragem de contar a um padre!

Eu tinha 15 anos. O cinema e os amigos já me haviam apresentado aos mistérios proibidos de Freud, mas, como eu bem sabia o que era uma confissão, guardei como um trauma aquela aguda observação de um dos meus tios mais amados.


Hoje vejo a sabedoria da sua intuição. Em qualquer confidência, quanto mais o fato confessado é temido ao ponto da negação, mais se precisa de coragem para entrar nos seus detalhes. A meticulosidade, sobretudo quando o revelado causa vergonha, é o que conduz ao perdão e à autoaceitação. Acusar-se a si mesmo é um ato de extraordinário heroísmo.

As delações premiadas provam como o diabo mora nos detalhes. A interpretação dos malfeitos não depende da letra ou dos mandamentos. Ela reside nas circunstâncias em que foram realizados. São as situações planejadas ou imprevistas que permitem agir com a velha ética de condescendência que tudo nega; ou com a isenção da justiça que condena ou perdoa.

Na sexta-feira, havia um fenômeno numa igreja. Na fila do confessionário do padre Geraldo, havia uma multidão; na do padre Alberto, ninguém. Era simples explicar esse desequilíbrio de pecadores. Tal como o nosso descontrole fiscal, o padre Geraldo achava normal nossa abusiva inflação contra a castidade; já o padre Alberto punia severamente.

Fui salvo pelo Maurício:

— Primeiro — disse. — jamais caia na besteira de se confessar com o padre Alberto; depois, use a malandragem...

— Qual?

— Não entre em detalhes. Diga apenas que pecou contra a castidade por pensamentos, palavras e obras.

A malandragem tem uma dimensão geral — tipo: eu faço porque todos fazem, é o costume. No caso deste Brasil mais ou menos perdido em si mesmo, existe a premissa de que o público não é de ninguém e, por isso mesmo, pode (e deve!) ser apropriado por quem o controla. A malandragem nada mais é do que a transformação do impessoal (o que é de todos) em algo invisível. É incrível descobrir que os maiores abusos só escandalizem quando envolvem pessoas conhecidas.

Essa inocência universal tem sido o que tanto permitiu a convivência pacífica (e malandra) entre senhores e escravos; e opressores e oprimidos por meio do Estado — esse representante de uma irracional impessoalidade. Caso fora do comum porque em todos os lugares onde surgiu a ganância burguesa, o Estado a controlou mas; entre nós, a cobiça está na apropriação do Estado como um meio de generalizar e de, malandramente, colocar a culpa numa figura jurídica tão imutável quanto as leis, a economia e os governantes — sem falar ou tocar no mecanismo que expropria e, ao mesmo tempo, vejam o tamanho da malandragem, impede o remédio porque não se pode viver sem governo.

Ser malandro é usar a lei ao pé da letra, tal como fui ensinado. Por outro lado, a malandragem nacional é não entrar nos detalhes. Seu axioma principal, conforme se sabe, é “como tirar vantagem de tudo”, inclusive da lei. Porque, de acordo com ela, “tudo foi feito dentro da lei” até que apareçam os detalhes.

Em “Carnavais, malandros e heróis”, estudei a malandragem e mostrei como Pedro Malasartes batalhava com os “caxias” e os renunciadores. Vivemos num país desesperado por heróis. Outro dia, um amigo sugeriu que eu deveria republicá-lo com o título de “Carnavais e malandros”. Sem nenhum herói o tomo seria — quem sabe? — um best-seller e um retrato fiel do Brasil.

Essa pátria na qual todas as formas de dominação — burocracia, patrimonialismo e carisma — se interligam e se anulam por uma recorrente e malandra malandragem.

Natal do Brasil


A irmandade do suborno

Todo dia a Petrobras compra e vende petróleo e derivados no mercado mundial. Durante a última década e meia, negociou em média 400 mil barris a cada jornada de 24 horas, a preços variáveis.

Agora descobriu-se que parte dessas transações não teve qualquer registro e deu prejuízos à empresa estatal, mediante subornos pagos a funcionários, intermediários, políticos do PT, MDB, Progressistas (antigo PP) e do PSDB.

Eles receberam propinas entre dez centavos e US$ 2 por barril de petróleo e derivados nas negociações diárias, com pagamento à vista, e em contratos de longo prazo — mostram os novos processos abertos na Operação Lava-Jato.

O grupo fazia a Petrobras comprar a preços acima de mercado e a vender a preços mais baratos. Numa negociação de 300 mil barris, por exemplo, acertavam com o cliente estrangeiro “comissão” de US$ 1 por barril e embolsavam US$ 300 mil. Chegaram a “sumir” com 17,5 mil toneladas métricas de combustível da estatal embarcadas em três navios. Em 2012, celebraram o recorde de US$ 2 de propina sobre uma carga levada a Fortaleza.

A Petrobras não consegue dimensionar suas perdas na área, onde obtém dois terços do seu faturamento. Contou ao Ministério Público, em abril: “Não é possível localizar todas as aprovações (dos gestores), visto que algumas ocorreram em despachos presenciais ou por telefone, principalmente para os casos mais antigos.” São 15 anos de contratos informais, diários, sem controle de auditores e de órgãos como CVM e TCU.

Entre os principais beneficiários se destacam três trading companies, irmãs na hegemonia sobre o mercado mundial de petróleo e derivados. Vitol, Trafigura e Glencore somam receitas de quase US$ 500 bilhões por ano, seis vezes mais que a estatal brasileira, equivalente ao PIB de Minas. Os processos deixam claro que “a alta cúpula dessas empresas tinha total consciência do que estava ocorrendo”. Devem ir a julgamento no Brasil, nos Estados Unidos e na Suíça.

A irrupção da antipolítica

Desde 2013 a sociedade brasileira vem sendo impactada pela antipolítica. Por diversas formas, um sentimento negativo em relação à política foi se avolumando até atingir o coração da disputa eleitoral de 2018. O que era latente acabou sendo promovido a uma espécie de paradigma, moldando uma verdadeira revolta da sociedade contra a política.

Da erosão do sistema de representação avançou-se celeremente para o rechaço integral à atividade política, considerada nosso grande mal. Capturada pelo sistema de Justiça, a corrupção sistêmica que se realizou durante os governos petistas, promovida pelo partido majoritário e por seus aliados, é considerada sua causa maior. Mas é necessário incluir aí o até então principal partido de oposição ao PT, o PSDB, que não ficou distante desse descalabro, como vem sendo comprovado dia após dia.

No processo eleitoral recente, a antipolítica assumiu o papel de irmã gêmea do antipetismo, ampliando sua negatividade para a esquerda, a social-democracia e mesmo para a democracia. O rechaço acabou se espraiando, fazendo emergir até um anti-intelectualismo que levou de roldão intelectuais, artistas e jornalistas, especialmente aqueles que tiveram algum protagonismo na sociedade desde os anos da redemocratização. Todos passaram a ser vistos como atores contaminados pela corrupção ou por interesses mesquinhos ou mesmo partidários.


A antipolítica estabeleceu, independentemente da cor ideológica de quem a vocalizava, uma solução impostergável: a ideia de que sem mudar, já e radicalmente, não haveria alternativa para o País. E mudar significava deslocar a “velha classe política” e pôr em seu lugar “o novo”, o que quer que isso pudesse significar.

Essa narrativa de condenação dos últimos 30 anos sustentou a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro (PSL) e de alguns governadores de Estado que, aparentemente, sugiram do nada, selando a reviravolta. Em cinco anos se passou da consigna “sem partido” à sedução generalizada de seleção das novas elites governamentais em setores externos à política organizada, chegando ao extremo de um governador eleito pretender encaminhar a escolha dos quadros de primeiro escalão por meio de empresas headhunter.

O casamento da antipolítica com o pensamento que sustentou regimes totalitários não é raro na História. Não há como negar que o pensamento marxista, desde suas origens e na vigência do chamado “comunismo histórico”, expressou uma fragilidade intrínseca em relação à política, em especial à política democrática. Por outro lado, é largamente conhecida a ojeriza do nazismo à política tout court. A assertiva de J. Goebbels, para quem os partidos seriam o grande mal, já que eles “vivem dos problemas da política e não buscam resolvê-los”, não deixa dúvidas. Ambos exemplificam a temeridade incrustada em opções estratégicas sustentadas na antipolítica.

Cenários de crise e de degradação favorecem a antipolítica na conquista de espaços de poder. Na Europa, por exemplo, a crise da democracia tem origem no colapso fiscal do Estado de Bem-Estar Social, concomitante ao avanço da globalização. Isso propagou uma onda negativa de questionamento dos Estados nacionais e depois da União Europeia. A crise da democracia transformou-se, então, numa crise da política. É aí que surgem os atores da antipolítica do nosso tempo, chamados de forma ligeira de “populistas”.

O problema é, contudo, mais profundo e complicado. Envolve aspectos essenciais a respeito da crença na democracia e em suas possibilidades de reinvenção. O pano de fundo de onde emerge a antipolítica é, na verdade, a “não realização” da democracia aos olhos, ouvidos e ao coração dos cidadãos. Isso porque, como demonstrou Tocqueville, a democracia quer garantir a todo ser humano tudo o que se deseja, teoricamente sem nenhum limite – essa a sua “promessa”. Contudo ela funciona unicamente se os desejos estiverem dentro de certos limites. Em outras palavras, a democracia constrói e reforma instituições para mediar desejos, apetites e sentimentos para garantir seu funcionamento. Mas, no essencial, empurra os indivíduos a desejarem para além dos seus limites e assim põe em perigo constante a própria sobrevivência daquele tipo de cidadão que ela não pode dispensar. Em síntese, o espectro da antipolítica espreita permanentemente o percurso de construção da democracia moderna.

Mesmo numa conjuntura problemática, a democracia tem possibilitado aberturas tanto ao que se poderia chamar de hiperdemocracia (a democracia como critério para tudo) quanto ao hiperpluralismo (uma ampliação ilimitada de sensibilidades que invadem o espaço público). Mas, conforme Giovanni Orsina (La Democrazia del Narcisismo, 2018), a emergência de uma cultura narcísica, ao subjetivar todas as atividades, vem alterando o sentido do individualismo moderno. Essa cultura é uma obsessão baseada na incapacidade de perceber a própria pessoa e a realidade como duas entidades separadas e autônomas, de distinguir o que está dentro do que está fora, em suma, o objetivo do subjetivo.

A repercussão disso na política é devastadora. O cidadão, o individuo democrático, fechado em si mesmo, passa a não escutar mais, refuta interpretações e avaliações da realidade que venham de fora dele. Sua relação com o mundo é inteiramente determinada pelo filtro de uma perspectiva subjetiva não educada nem amadurecida pelo confronto. Onipotente, é incapaz de imaginar o futuro a não ser como espelho do desejo, sem mediações, avesso à política.

A irrupção da antipolítica nas sociedades contemporâneas, e no Brasil em particular, não pode ser reduzida ao “fantasma do populismo” nem ao maniqueísmo do embate entre democracia e fascismo. Recuperar a política como um desígnio moderno, sem polarizações estéreis, é o desafio do tempo presente.

Menos, muito menos

As nossas opiniões,
Os gritos e a consciência,
São meras divagações,
São pontos de reticência…

Aposentadorias de militares no Brasil são mais generosas que as de outros países?

Assim como em diversos países, quem segue carreira militar no Brasil tem um sistema de aposentadoria especial, com regras mais brandas e mais benefícios que as de outros funcionários públicos e de trabalhadores da iniciativa privada.

Por exemplo, na Previdência Social, para trabalhadores do setor privado, o teto atual da aposentadoria é de R$ 5.645. Já um militar que vai para a reserva não possui um limite máximo para os valores recebidos. Em tese ele está sujeito ao teto constitucional, equivalente ao salário de ministros do STF: R$ 33,8 mil hoje (R$ 39,3 mil a partir do ano que vem).

A lógica por trás da discrepância é que a carreira militar requer condições especiais, já que, entre outras peculiaridades, a categoria tem algumas restrições: não têm direito a greve nem a horas extras e não recolhem FGTS (fundo de garantia), além de não terem direito a adicionais noturnos e de periculosidade.


"Obviamente há diferenças. É uma carreira com muitas especificidades, com mais riscos, em que, se a pessoa sair, as condições são diferentes", explica o professor Luís Eduardo Afonso, especialista em previdência da USP (Universidade de São Paulo).

No entanto, os benefícios para os militares aposentados no Brasil acabam ultrapassando os concedidos em outros países, como o Reino Unido e os Estados Unidos, segundo Afonso e outros especialistas em previdência.

"A diferença entre a previdência dos militares e o setor privado [qualquer pessoa que aposente pela Previdêncial Social] no Brasil é muito grande e muito diferente de outros países", afirma o professor de direito Jorge Cavalcanti Boucinhas, da Escola de Administração de Empresas da FGV, que cita países como Estados Unidos, Reino Unido, Espanha e América Latina.

Aqui no Brasil os oficiais podem deixar a carreira mais cedo com salário integral em comparação com os EUA e o Reino Unido, por exemplo. A legislação atual permite que os militares brasileiros se aposentem com salário integral após 30 anos de serviço. No Reino Unido e nos EUA, por exemplo: a aposentadoria é sempre proporcional ao tempo de serviço.

No Brasil, a remuneração dos militares na reserva e as pensões de militares são regidas por uma série de legislações que vem desde os anos 1960 – a última alteração foi por meio de uma medida provisória em 2001.

Nos Estados Unidos, no novo sistema de aposentadoria de militares, cada ano de serviços prestados corresponde a 2% do salário para aposentadoria, segundo o Departamento de Defesa americano. Portanto com 30 anos prestados a aposentadoria representa 60% do salário.

Pelo sistema antigo, ligeiramente diferente (e que ainda é possível aderir), o tempo de trabalho mínimo para se aposentar é 20 anos, com 50% do salário, e mais 2.5% a cada ano de serviço a mais. Militares inativos também tem alguns outros benefícios, como seguro saúde e dental, empréstimos imobiliários simplificados e subsídios para pagar por educação.

O modelo americano é parecido com o do Reino Unido, onde a aposentadoria também é proporcional, calculada a partir do salário final, o número de anos de serviço e um coeficiente específico para o serviço militar. Após 30 anos de serviço, por exemplo, é possível se aposentar com cerca de 43% do salário, de acordo com o Departamento de Defesa e Forças Armadas do país.

Em ambos os países, a aposentadoria de militares só é integral em caso de morte em serviço ou aposentadoria por invalidez.

Ou seja, os benefícios previdenciários para militares brasileiros acabam sendo mais generosos apesar de militares de países como EUA e Reino Unido estarem mais expostos a riscos, já que são nações que se envolvem em conflitos armados com mais frequência."Temos um sistema mais generoso (que o deles), principalmente nas questões das pensões e contribuições, mesmo com maior envolvimento (desses países em conflitos", afirma Boucinhas.

Nos últimos anos, as Forças Armadas brasileiras só se envolveram em conflitos durante missões de paz da ONU (Organização das Nações Unidas), como a missão no Haiti e a no Líbano.

"A necessidade de levar em consideração as especificidades do serviço militar não pode ser usado para justificar privilégios", diz.

"É questão conceitual: todos os países estão envelhecendo e isso nos obriga a uma preparação e exige um esforço maior de custeio de toda sociedade – incluindo os militares", afirma Afonso. "E isso não significa deixar de levar em consideração as peculiaridades da carreira."

O Ministério da Defesa diz que não é adequado realizar comparações com esses países, porque eles têm uma "série de benefícios indiretos para os militares, como, por exemplo, a isenção de determinados impostos". Além disso, diz o ministério, o poder de compra dos salários dos americanos é maior e eles têm uma "acumulação de patrimônio ao longo do serviço" superior a dos brasileiros.

Enquanto o sistema previdenciário brasileiro de funcionários públicos e trabalhadores da iniciativa privada está sendo rediscutido na reforma da Previdência - atualmente parada no Congresso -, mudanças na aposentadoria dos militares nem estão em discussão, já que o presidente Michel Temer excluiu os militares de sua proposta de reforma.

Em 2017, o déficit dos gastos com militares inativos e pensões do Exército, da Marinha e da Aeronáutica foi de R$ 37,7 bilhões. O déficit para 2019 está projetado para R$ 43,3 bilhões, de acordo com dados da proposta orçamentária do ano que vem. Esse valor é 47,7% dos R$ 90 bilhões de déficit previdenciário do setor público.

O Ministério da Defesa afirma que os valores referentes aos militares inativos (R$ 24,5 bilhões), não se tratam de "despesa previdenciária" portanto o gasto projetado de R$ 43,3 bilhões não pode ser entendido como "déficit previdenciário". A pasta afirma ainda que os gastos com pensões e com militares inativos devem ser "analisados separadamente".