Eu tinha 15 anos. O cinema e os amigos já me haviam apresentado aos mistérios proibidos de Freud, mas, como eu bem sabia o que era uma confissão, guardei como um trauma aquela aguda observação de um dos meus tios mais amados.
Hoje vejo a sabedoria da sua intuição. Em qualquer confidência, quanto mais o fato confessado é temido ao ponto da negação, mais se precisa de coragem para entrar nos seus detalhes. A meticulosidade, sobretudo quando o revelado causa vergonha, é o que conduz ao perdão e à autoaceitação. Acusar-se a si mesmo é um ato de extraordinário heroísmo.
As delações premiadas provam como o diabo mora nos detalhes. A interpretação dos malfeitos não depende da letra ou dos mandamentos. Ela reside nas circunstâncias em que foram realizados. São as situações planejadas ou imprevistas que permitem agir com a velha ética de condescendência que tudo nega; ou com a isenção da justiça que condena ou perdoa.
Na sexta-feira, havia um fenômeno numa igreja. Na fila do confessionário do padre Geraldo, havia uma multidão; na do padre Alberto, ninguém. Era simples explicar esse desequilíbrio de pecadores. Tal como o nosso descontrole fiscal, o padre Geraldo achava normal nossa abusiva inflação contra a castidade; já o padre Alberto punia severamente.
Fui salvo pelo Maurício:
— Primeiro — disse. — jamais caia na besteira de se confessar com o padre Alberto; depois, use a malandragem...
— Qual?
— Não entre em detalhes. Diga apenas que pecou contra a castidade por pensamentos, palavras e obras.
A malandragem tem uma dimensão geral — tipo: eu faço porque todos fazem, é o costume. No caso deste Brasil mais ou menos perdido em si mesmo, existe a premissa de que o público não é de ninguém e, por isso mesmo, pode (e deve!) ser apropriado por quem o controla. A malandragem nada mais é do que a transformação do impessoal (o que é de todos) em algo invisível. É incrível descobrir que os maiores abusos só escandalizem quando envolvem pessoas conhecidas.
Essa inocência universal tem sido o que tanto permitiu a convivência pacífica (e malandra) entre senhores e escravos; e opressores e oprimidos por meio do Estado — esse representante de uma irracional impessoalidade. Caso fora do comum porque em todos os lugares onde surgiu a ganância burguesa, o Estado a controlou mas; entre nós, a cobiça está na apropriação do Estado como um meio de generalizar e de, malandramente, colocar a culpa numa figura jurídica tão imutável quanto as leis, a economia e os governantes — sem falar ou tocar no mecanismo que expropria e, ao mesmo tempo, vejam o tamanho da malandragem, impede o remédio porque não se pode viver sem governo.
Ser malandro é usar a lei ao pé da letra, tal como fui ensinado. Por outro lado, a malandragem nacional é não entrar nos detalhes. Seu axioma principal, conforme se sabe, é “como tirar vantagem de tudo”, inclusive da lei. Porque, de acordo com ela, “tudo foi feito dentro da lei” até que apareçam os detalhes.
Em “Carnavais, malandros e heróis”, estudei a malandragem e mostrei como Pedro Malasartes batalhava com os “caxias” e os renunciadores. Vivemos num país desesperado por heróis. Outro dia, um amigo sugeriu que eu deveria republicá-lo com o título de “Carnavais e malandros”. Sem nenhum herói o tomo seria — quem sabe? — um best-seller e um retrato fiel do Brasil.
Essa pátria na qual todas as formas de dominação — burocracia, patrimonialismo e carisma — se interligam e se anulam por uma recorrente e malandra malandragem.
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