segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Brasil abraçado ao seu rancor

 


Bolsonarismo revive fascismo em ataques a estudantes e religiosos

Bibo Nunes é um bolsonarista raiz. Despreza a ciência, dissemina notícias falsas, aposta no discurso de ódio para se promover. O deputado do PL gaúcho topa tudo por uma polêmica. Já foi capaz de interromper uma homenagem a Marielle Franco, vereadora assassinada a tiros, para bater boca com parlamentares de esquerda.

A exemplo do capitão, Bibo vê na atividade política um atalho para se dar bem. Já torrou verba de gabinete para comer churrasco e espalhar outdoors com a própria foto. “Deputado não é para fazer economia. Se é para fazer economia, eu fico dormindo em casa”, justificou, numa entrevista à Zero Hora.

Em outro episódio, ele usou dinheiro público para alugar carros de luxo. “Sempre andei de Mercedes e BMW. Não vou abaixar meu estilo de vida só porque sou deputado”, esnobou.

Há poucos dias, Bibo superou seus próprios padrões de indignidade. Declarou que estudantes da Universidade Federal de Santa Maria mereciam ser queimados vivos. O bolsonarista se irritou com um protesto contra os cortes na educação superior. “É isso o que esses estudantes alienados, filhos de papai, merecem”, vociferou.

Movimento da UFMG reprimido na ditadura

A cidade universitária foi palco de uma tragédia de repercussão mundial: o incêndio da boate Kiss, que matou 242 jovens em 2013. Dublê de radialista e palestrante, o deputado não pode ser acusado de ingenuidade com as palavras. Ele é autor do curso on-line “Sucesso na comunicação”, em que promete ensinar os segredos da oratória por R$ 99,90.

Bibo pertence à tribo de políticos de extrema direita que ascenderam com Bolsonaro. Dizendo-se cristãos e patriotas, eles estimulam a intolerância e a barbárie para ganhar votos. Uma reeleição do presidente lhes daria ainda mais poder para pregar o ódio e perseguir adversários.

A fúria bolsonarista não poupa ninguém. Estudantes, cientistas, juízes, jornalistas e até religiosos podem entrar na mira a qualquer momento. No domingo passado, a horda escolheu como alvo o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer. Integrante da ala mais conservadora da Igreja Católica, ele foi xingado e ameaçado após fazer um apelo contra a beligerância eleitoral.

Chamado de “comunista”, dom Odilo julgou necessário fazer um esclarecimento: os cardeais vestem vermelho em referência ao sangue de Cristo, não à bandeira do Partido dos Trabalhadores. “Tempos estranhos esses nossos. Conheço bastante a História. Às vezes, parece-me reviver os tempos da ascensão dos regimes totalitários, especialmente o fascismo”, desabafou.

Não foi o primeiro a fazer o alerta.

O Homem nada sabe porque o homem não é nada

Dizem que foram os gregos que começaram a pensar. Antes era uma barafunda de sondagens infundadas sobre tudo e nada. Isso já faz tempo — uns 500 anos antes de Cristo — mas a gente ainda pode ver resquícios disso em todos os campos dos conhecimentos. Nem pense em política, por favor. Fede. Mesmo os ditos ‘filósofos’ gregos da primeira leva eram — pros nossos padrões — ingênuos demais. Sobraram só três deles pra que a gente se divirta: Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Eles olhavam pro mundo como a maioria de nós olha pra dentro do capô do carro. Um mistério.

Pra eles a Terra era um disco — não esfera — que ora flutuava na água, ora estava pousado num pufe, ora estava no ar. Aí, veio Aristóteles e perguntou: Se a Terra flutua na água, onde se apoia a água? Pronto. Entrou água nas considerações dos ‘filósofos’. Isso parece pouca coisa, hoje. Mas, duvido que alguém — um popular — explique como a Terra gira doidamente em torno de um eixo imaginário e em torno do Sol. Fácil dizer que tem a Lei da Gravitação, a atração mútua dos corpos celestes, mas quero ver dar uma explicação ‘humana’. E afirmar que isso é muito natural. Acho que a gente engole as explicações científicas pra não endoidar de vez. Ah, a Terra gira em torno de si mesma e em torno do Sol e, ainda por cima, voa pra algum lugar láááááá looonge porque a maçã caiu na cabeça do Newton. E vamos assistir BBB11 tranquilamente.


Do mesmo modo, como Aristóteles desconfiou da água, a gente desconfia do tal universo finito ou infinito. Se é finito, o que tem depois da parede final? Se é infinito, nem dá pra imaginar nada. Se o universo começou, de onde saiu a matéria-prima? Senão começou, nem dá pra imaginar nada. Big-Bang ou Deus? Já disseram que pela matemática pode-se explicar quase tudo. Só fazer uns cálculos e temos o princípio de tudo e o provável fim. Tal estrela vai durar mais uns cinco bilhões de anos, tal planeta vai virar pó, tal cometa vai aparecer depois do carnaval de 3002. Mas, e nós — de carne, osso e alma? Cada dia as igrejas estão mais cheias. Milagres, orações, fé — a procura pelo sentido da vida.

Um ex-prisioneiro dos campos de concentração nazistas, médico, notou que os presos que tinham qualquer espécie de fé — em Deus, em algum projeto futuro, na família, etc. — armazenavam mais condições de sobrevivência.

Resistiam melhor. Agora, quanto mais a ciência avança, desligada de emoções, sozinha no espaço, os pobres humanos não conseguem mais um ponto de apoio — um sentido — pra vida. Em que se agarrar? Por isso temos milhões de livros de autoajuda, centenas de variantes religiosas, mais sortistas, videntes, profetas… Curiosamente, não temos mais filósofos. Desgarrados da ciência, ficaram apenas alguns pretensiosos de palavreado difícil — cheio de som e fúria — significando nada.

Números

Eu valho muito pouco, sou sincero,
Dizia o Um ao Zero,
No entanto, quanto vales tu? Na prática
És tão vazio e inconcludente
Quanto na matemática.
Ao passo que eu, se me coloco à frente
De cinco zeros bem iguais
A ti, sabes acaso quanto fico?
Cem mil, meu caro, nem um tico
A menos nem um tico a mais.
Questão de números. Aliás é aquilo
Que sucede com todo ditador
Que cresce em importância e em valor
Quanto mais são os zeros a segui-lo.

Trilussa (Carlo Alberto Salustri)

Quanto ganha o presidente do Brasil?

Quem quer que seja eleito pelos brasileiros em outubro receberá quase R$ 31 mil brutos por mês. Ou, com os descontos obrigatórios, pouco mais de R$ 24 mil, de acordo com dados do Portal da Transparência.

O salário coloca o presidente entre o 1% da população mais bem paga do Brasil, um país conhecido pela desigualdade.

Mas comparado a chefes de Estado pelo mundo, o salário do brasileiro não é dos mais altos. Entre os líderes do G-20, o presidente do Brasil está entre os cinco menos bem remunerados.

Convertendo os valores para a moeda brasileira, o mandatário americano, por exemplo, recebe cerca de R$ 160 mil por mês. No Japão, o salário do primeiro ministro fica em torno de R$ 87 mil mensais.

Na América Latina, o Chile paga R$ 43 mil reais ao seu presidente. Já a Argentina, R$ 29 mil.

O eleito para governar o Brasil ainda tem direito a outros benefícios importantes, incluindo duas moradias em Brasília e plano de saúde.

Mas nenhum benefício presidencial atrai tanta polêmica quanto o cartão corporativo, um recurso com o qual o presidente banca despesas como sua alimentação, a gasolina da frota, cuidados com a moradia oficial e os gastos em viagens.

O benefício é uma espécie de cartão de crédito de limite elástico, bancado com impostos e cujas despesas não são transparentes. Em média, Bolsonaro gastou R$ 875 mil por mês até agora.

De acordo com um levantamento do jornal O Globo, em seus 3 primeiros anos, Bolsonaro gastou quase 20% a mais do que ao longo dos 4 anos do mandato anterior, divididos por Dilma e Temer.

Bolsonaro, no entanto, não quer dizer como gastou esse dinheiro e colocou sigilo de cem anos sobre a fatura do cartão corporativo. Uma investigação do Tribunal de Contas da União mostrou que ele gastou quase R$ 100 mil por mês em comida.

A BBC News Brasil questionou o Planalto o porquê do sigilo e como o dinheiro foi gasto, mas não obteve resposta até a publicação desse texto.

Que Brasil queremos?

“Quero unir-me aos que criam, que colhem, que festejam; quero mostrar-lhes o arco-íris e todas as escadas do super-homem”.

Entre uma aurora e outra, Zaratustra dormiu profundamente, acordou com a manhã passando por seu rosto e conclamou “companheiros vivos, e não cadáveres, rebanhos ou crentes”, para participar de uma nova criação e escrever novos valores em novas tábuas.

Abro esta reflexão com o canto que o profeta de Nietsche entoa, pulando por cima de “hesitantes e retardatários”, na convocação para buscar um caminho e descobrir uma nova verdade.

Que belo seria se brasileiro(a)s de todos os rincões, pobres e ricos, solitários, tristes e alegres, altos e baixos, se juntassem ao coro do profeta para instalar um país emoldurado por uma vida harmoniosa entre grupos e classes, sob a luz do respeito e da solidariedade, da grandeza e da fé.


Quão firmes seriam os laços de uma sociedade convivial, construídos com a cera do companheirismo e da fraternidade, sem o clamor do ódio e da vingança, entoando um canto uníssono e festejando tempos de paz.

Afinal, que habitat queremos construir nesse território de dimensão continental, pleno de riquezas e potenciais, aclamado por abrigar a maior reserva hidrológica do mundo, um celeiro de alimentos, ocupando a terceira posição de maior exportador de produtos agrícolas, e um dos maiores reservatórios de petróleo e gás natural?

Quão triste é constatar o grau de barbárie a que chegamos nessa quadra em que as duas bandas que formam a comunidade política destilam montanhas de ódio, sob a feiura de linguagens chulas, palavrório incompatível com o bom senso, falsidades e mentiras de todos os calibres, uso de igrejas como anzol para atrair eleitores, e, pior, inserção de crianças no palco utilitário da política.

Terríveis serão as consequências sobre o estado espiritual do Brasil em um amanhã que deixa ver sinais de trevas. Se não formos alimentados pela seiva do Bem, estaremos ameaçados a viver sob o império do Mal, retrocedendo aos tempos de barbárie. E, assim, adiando o sonho de construção de uma Nação.

Como ensina José Ingenieros, em O Homem Medíocre, países são expressões geográficas e os Estados são formas de equilíbrio político. A Pátria, porém, transcende esse conceito: é sincronismo de espíritos e corações, aspiração à grandeza, comunhão de esperanças, solidariedade sentimental de uma raça.

Enquanto um país não é pátria, seus habitantes não formam uma Nação. O que estamos assistindo nesse momento? Um insincero jogo de confabulações politiqueiras, interesses venais e promessas enganosas, embrulhadas em pacotes de falso patriotismo e de composições que alimentam a mais ferrenha disputa eleitoral da atualidade.

Em nome do povo, desvios se multiplicam na paisagem institucional. A verdadeira crise do nosso povo é a falta de casas, de comida, de emprego, de hospitais, de segurança, de lazer. A disputa que bate bumbo nos meios de comunicação tem o poder de deixar as massas longe do alfabeto político. Elas agem por impulso e o primeiro que lhes afeta é o instinto de sobrevivência, encostado nas paredes do estômago.

As formas de cooptação social, a partir da conquista do voto, exprimem um pensamento das elites dominantes. O povo, em suas extremas carências, tem dificuldades de exercer cidadania. Sua autonomia de decisão é escassa e tênues são suas vontades. Em consequência, submete-se, como ente passivo, à demagogia dos discursos e a uma engenhosidade operacional que acaba sugando suas emoções.

Quando se abre a portinha do lamaçal, começa-se a desvendar nossa identidade. Há uma pequena rua, em Londres, cheia de lojinhas, que vendem os mesmos tecidos, dos mesmos padrões e, incrível, pelo mesmo preço. Nem um centavo a mais ou a menos. Um brasileiro foi ali pechinchar. Surpreendeu-se, quando o dono de uma das lojinhas se recusou a vender o tecido. Ele vira o brasileiro sair de outra loja. Apontou: a sua loja é aquela. Naquela lojinha, cultiva-se a retidão, a lealdade, a honestidade. Um exemplo de cultura sem barganhas e emboscadas. Estamos anos luz distantes desse sonho.

Quão trágico é constatar que o animus animandi da comunidade se afina pelo mesmo diapasão. Dá-se vazão a notícias falsas. O culto da verdade entra na penumbra. O que é vulgar encontra fervorosos adeptos, entre os que representam os interesses de facções, alguns tornando-se porta-vozes do caos. São atores hipócritas aos quais é permitido fazer emboscadas, atuando como partícipes de uma peça canhestra.

Quão desanimador é ver o velho caciquismo dominando os padrões da política.

Confúcio, ao visitar a montanha de Taishan, encontrou uma mulher cujos parentes haviam sido mortos por tigres.

– Por que não se muda daqui? A resposta inquietou o sábio:

– Porque os governantes são mais ferozes que os tigres.

Os políticos brasileiros precisam trabalhar para, em 2023, diminuir as distâncias que separam Território, País, Pátria e Nação.

Interferir no Supremo é estratégia de governos autoritários

O presidente Jair Bolsonaro (PL) afirmou em 7 de outubro, durante entrevista a um canal bolsonarista do YouTube, que "recebeu propostas" para aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e que poderia discutir o tema após as eleições. Uma das ideias mencionadas por Bolsonaro contempla aumentar a composição de 11 para 16 ministros.

No mesmo dia, o atual vice-presidente e senador eleito Hamilton Mourão (Republicanos) defendeu que o Congresso discuta a possibilidade de aumentar o número de vagas no Supremo e levantou outras ideias para interferir na Corte, como alterar a idade de aposentadoria (que hoje é de 75 anos) e limitar o alcance de decisões monocráticas dos ministros do STF.

Na quarta-feira (19/10), Mourão voltou ao assunto durante uma entrevista, afirmando que é preciso alterar a Constituição para que as decisões da Corte só possam "ser tomadas ou pelo conjunto da turma ou pelo plenário do STF" – algo que minaria diretamente a influência individual dos ministros.

Ditadura de 64 aumentou de 11 para 16 número de integrantes do STF
sob a "presidência" de Costa e Silva  que ainda  perseguiu ministros do tribunal

Nos últimos anos, vários parlamentares alinhados ao bolsonarismo defenderam ideias semelhantes e outras estratégias para enfraquecer o Judiciário, que travou uma relação tensa com o governo Bolsonaro nesses quatro anos de mandato.

O deputado bolsonarista Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), por exemplo, chegou a apresentar um projeto para facilitar o impeachment de ministros que "usurparem a competência" do Congresso Nacional.

Já a deputada bolsonarista Bia Kicis (PL-DF) defende a redução da idade de aposentadoria dos ministros de 75 para 70 anos. A aprovação de tal medida acabaria garantindo ao presidente eleito em 2022 indicar três nomes extras ao STF no próximo mandato, além de dois que já têm aposentadoria prevista.

Bolsonaro, por sua vez, tratou de minimizar o tom de ameaça ao STF nos dias posteriores a sua primeira declaração. No debate presidencial, ele afirmou que se compromete a não mexer no número de cadeiras na Corte, mas evitou falar que ele mesmo havia suscitado o tema dias antes.

Aumento de cadeiras, antecipação de aposentadoria, destituição de ministros e limitação de prerrogativas de Cortes superiores normalmente são estratégias usadas por governos autoritários para minar a independência do Judiciário e sedimentar seu poder.

Nenhuma dessas ideias é original. Todas já foram colocadas em prática por diversos regimes ditatoriais ou governos ultranacionalistas. Entre eles estão a Hungria e a Polônia, países governados por partidos de ultradireita, a Venezuela chavista, o governo populista de El Salvador e até mesmo a ditadura militar brasileira (1964-1985).

Hungria

Em 2010, ao retornar ao poder após um hiato de oito anos, o premiê da Hungria, Viktor Orbán, começou a governar com uma maioria confortável no Parlamento, o que lhe permitiu aprovar uma série de medidas para enfraquecer o Judiciário.

Elas incluíram o aumento de vagas na Corte Constitucional, mudanças no formato de indicação de membros do tribunal, esvaziamento de suas atribuições e alterações na idade de aposentadoria dos magistrados.

A primeira medida colocada em prática foi a alteração do processo de indicação. Antes a seleção de nomes para a Corte Constitucional precisava ser negociada em plenário, com partidos da oposição. Pelo novo desenho de Orbán, isso passou a ser delegado a pequenas comissões dominadas por aliados, praticamente excluindo membros de partidos rivais do processo.

O passo seguinte foi aumentar de 11 para 15 o número de membros da Corte do país. Contando ainda com uma vaga aberta pela aposentadoria de um juiz, o governo assegurou rapidamente a nomeação para cinco cadeiras – que foram logo preenchidas com figuras próximas do premiê.

Orbán também adotou outras ferramentas para emparedar o Judiciário. Em 2012, uma nova Constituição aprovada pelo Parlamento dominado por aliados determinou a redução de idade compulsória de aposentadoria dos juízes do país de 70 para 62 anos, afetando quase 300 magistrados no processo, incluindo muitos presidentes de cortes inferiores.

A medida, que provocou críticas da União Europeia, acabou sendo revertida no mesmo ano. Mas no meio-tempo as vagas já haviam sido preenchidas com magistrados próximos do governo. Aos juízes aposentados precocemente não foram oferecidas garantias de que eles voltariam a ocupar seus velhos postos. Em vários casos, foram oferecidas vagas em posições inferiores. Como resultado, muitos não voltaram.

Em outros momentos, Orbán usou a idade de aposentadoria no sentido oposto. Em 2013, quando o governo já havia assegurado uma maioria de aliados nas 15 vagas da Corte Constitucional, o Parlamento determinou que os membros do tribunal não precisavam mais se aposentar aos 70 anos, permitindo que eles exercessem seus mandatos de 12 anos até o final, o que, na prática, acabou prorrogando a presença de aliados de Orbán.

Em 2013, novas emendas na Constituição trataram de esvaziar os poderes da Corte Constitucional. Uma delas determinou que a Corte não teria mais poder para declarar inconstitucional emendas e leis aprovadas por uma maioria de dois terços do Parlamento. Isso teve efeito imediato em medidas promovidas pelo governo que anteriormente haviam sido barradas pelo tribunal, como a criminalização dos sem-teto – em 2012, a Corte barrou uma lei de Orbán que previa punições para moradores de rua. Em 2019, quando o governo já controlava firmemente o Judiciário, a Corte julgou a medida constitucional, provocando críticas de ONGs.

Polônia

Em 2015, o partido nacionalista Lei e Justiça (PiS) da Polônia venceu as eleições presidenciais e parlamentares e se envolveu imediatamente numa crise constitucional. Antes que o novo Parlamento tomasse posse, a legislatura cessante indicou cinco novos juízes para o Tribunal Constitucional do país.

No entanto, o novo presidente do país, Andrzej Duda, alinhado ao PiS e que já havia tomado posse, recusou-se a garantir que eles prestassem juramento e assumissem suas cadeiras, ganhando tempo para que o novo Parlamento fosse instalado e indicasse outros cinco nomes. Duda concedeu posse para os novos indicados do PiS em poucas horas.

Durante a crise, Jarosław Kaczyński, fundador do PiS e eminência parda do novo governo, afirmou que o Tribunal Constitucional era o "bastião de tudo que era ruim na Polônia".

Com o Parlamento e o Senado sob seu poder, o PiS também aprovou uma série de medidas que acabaram por paralisar as atividades do tribunal. Uma delas estabelecia que todas as decisões da Corte deveriam contar com uma maioria de dois terços, acabando com a regra da maioria simples. Em 2016, o Tribunal Constitucional decidiu que as novas regras eram inconstitucionais, mas o governo simplesmente não acatou o veredicto.

Em 2017, uma nova ofensiva. Dessa vez contra a Suprema Corte (semelhante ao STJ no Brasil). Naquele ano, o governo aprovou uma lei reduzindo a idade de aposentadoria dos juízes de 70 anos para 65, tentando apressar a saída de 27 dos 72 membros da Corte.

Em 2019, foi a vez de o governo polonês aprovar a criação de um Painel Disciplinar dentro da Suprema Corte para facilitar a demissão de juízes críticos ao governo.

Todas essas ofensivas contra o Judiciário provocaram reações da União Europeia (UE). No ano passado, o Tribunal de Justiça do bloco condenou a Polônia a uma multa diária de 1 milhão de euros se o painel não fosse suspenso. O valor a ser pago já passa de 325 milhões de euros, mas a Polônia ainda resiste em acatar a medida.

Venezuela

Ao longo de mais de duas décadas no poder, o regime chavista da Venezuela pôs em prática diferentes estratégias para minar a independência do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ). Entre elas o aumento do número de cadeiras na Corte, a prorrogação de mandatos de ministros leais ao regime e a destituição de figuras que tomaram decisões que desagradaram o governo.

Em 2004, o regime chavista ampliou o número de vagas na Corte de 20 para 32, preenchendo as vagas com figuras leais ao regime. A reforma foi possível por causa de mudanças que permitiram fazer alterações no Supremo contando apenas com maioria simples na Assembleia Nacional.

Uma das cláusulas da reforma também permitiu que a Assembleia destituísse ministros que adotassem "decisões que atentem contra ou lesem os interesses da nação". Poucas semanas após a reforma entrar em vigor, os chavistas destituíram o primeiro juiz da Corte com base na nova cláusula.

Como cabe ao Supremo o poder de indicar e remover juízes de cortes inferiores, o chavismo usou seu poder sobre o TSJ para se livrar de centenas de juízes de outras instâncias não alinhados ao regime.

Em 2010, depois de eleições legislativas que reduziram a maioria chavista na Assembleia Nacional, o regime também modificou o prazo de aprovação para indicação de vagas na Corte, atropelando ritos para assegurar nove nomeações antes que a nova composição do Legislativo tomasse posse. Os novos ministros foram arregimentados entre ex-deputados chavistas e ex-embaixadores leais ao governo.

Em 2015, o chavismo voltou a usar a mesma tática quando perdeu novamente espaço para a oposição na Assembleia Nacional, nomeando 13 novos ministros para a Corte antes da posse do novo Legislativo, novamente passando por cima dos prazos regimentais.

Em 2017, o Supremo dominado pelos chavistas suspendeu as prerrogativas da Assembleia Nacional controlada pela oposição e assumiu suas funções, numa ação descrita como "golpe de Estado" pelos críticos do regime.

Em 2022, um novo rearranjo promovido pelo regime: o número de cadeiras do TSJ foi reduzido de 32 para 20. Mas longe de diminuir a interferência do Executivo chavista, a nova reforma só foi uma mudança de tática.

Ela embutia uma "prorrogação" irregular para os mandatos dos ministros. Antes, eles eram limitados a 12 anos de atividade no tribunal, que não poderiam ser renovados. No entanto, a reforma permitiu que membros que já ocupavam cargos ficassem por mais um mandato de 12 anos, em direta violação da Constituição. Pelo menos 60% dos membros da Corte de 20 integrantes já ocupavam cadeiras antes da reforma.

Em um relatório de 2014, um diretor da ONG Human Rights Watch descreveu o Supremo venezuelano como um "mero adendo do Executivo" e "um dos exemplos mais toscos da falta de independência judicial na região".
El Salvador

Em maio de 2021, contando com uma maioria de 56 das 84 cadeiras no Parlamento do país, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, ordenou a destituição de todos os cinco juízes da Corte Suprema de Justiça e do procurador-geral do país, que eram críticos ao crescente autoritarismo do governo. O argumento usado pelo governo foi que eles haviam "tomado decisões arbitrárias".

A Corte apontou que a medida era inconstitucional, mas o governo simplesmente ignorou a decisão. O tribunal foi rapidamente preenchido com aliados do presidente.

No mesmo ano, em mais uma ofensiva para expurgar significativamente o Judiciário de qualquer oposição, parlamentares alinhados ao governo aprovaram um projeto que acabou por destituir pelo menos 156 promotores e juízes com mais de 60 anos de idade ou que tivessem mais de 30 ou mais anos de serviço

A nova composição da Corte Suprema prontamente começou a fornecer decisões favoráveis ao governo. Em setembro de 2021, autorizou Bukele a concorrer a um novo mandato consecutivo em 2024, em clara violação à Constituição do país.

A ditadura militar brasileira

Mas não é preciso olhar para outros países para observar que a interferência em tribunais superiores é uma prática de regimes autoritários. A história recente do Brasil é suficiente para exemplificar o objetivo da estratégia.

O Ato Institucional número 2 (AI-2), publicado em outubro de 1965 pelo regime militar brasileiro (1964-1985), é menos célebre que o posterior AI-5, de 1968.

O AI-2, quando citado, costuma ser resumido como o instrumento baixado pela ditadura para oficializar a extinção de eleições diretas para presidente da República e dissolver o multipartidarismo. Mas ele continha outra faceta: a intervenção direta do regime no Judiciário.

Com o AI-2, o número de cadeiras no Supremo Tribunal Federal foi aumentado de 11 para 16 – exatamente o número citado por Bolsonaro –, o que assegurou aos generais da ditadura uma maioria folgada na Corte e reduziu o número de decisões que desagradavam o regime. Posteriormente, a Constituição de janeiro de 1967, desenhada pelo regime, confirmou o acréscimo de cadeiras.

O AI-2 ainda esvaziou boa parte da competência do STF, determinando que crimes contra a "segurança nacional" fossem julgados pelo Superior Tribunal Militar (STM).

Mas o golpe final do regime no STF ocorreu com a aplicação do AI-5, em 1968. Considerado o mais repressivo da ditadura, o ato institucional forneceu uma fachada legal para que os generais destituíssem três ministros da Corte: Vítor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva – que haviam sido todos nomeados antes da ditadura, nos governos João Goulart e Juscelino Kubitschek. Um quarto, o então presidente da Corte, Gonçalves de Oliveira, renunciou em protesto.

Em 1969, após as cassações dos ministros, o general Artur da Costa e Silva editou o AI-6, que restaurou no STF o formato de 11 cadeiras. O regime já não precisava mais das cinco vagas extras: dos 11 ministros remanescentes, dez haviam sido nomeados pelos generais, e o único indicado antes de 1964 era um entusiasta da "revolução".