segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Minha aldeia


Minha aldeia é todo o mundo.
Todo o mundo me pertence.
Aqui me encontro e confundo
com gente de todo o mundo
que a todo o mundo pertence.

Bate o sol na minha aldeia
com várias inclinações.
Ângulo novo, nova ideia;
outros graus, outras razões.
Que os homens da minha aldeia
são centenas de milhões.
-
Os homens da minha aldeia
divergem por natureza.
O mesmo sonho os separa,
a mesma fria certeza
os afasta e desempara,
rumorejante seara
onde se odeia em beleza.

Os homens da minha aldeia
formigam raivosamente
com os pés colados ao chão.
Nessa prisão permanente
cada qual é seu irmão.

Valências de fora e dentro
ligam tudo ao mesmo centro
numa inquebrável cadeia.
Longas raízes que imergem,
todos os homens convergem
no centro da minha aldeia.
António Gedeão (1906-1997)



Desaparecido


Muito barulho para esconder a mesma sujeira



O que é bom a gente mostra. O que é ruim a gente esconde
Rubens Ricúpero, ex-ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, em 1994 antes do início de uma entrevista captada por antenas parabólicas  


É com a máxima presteza que Dilma vai de um extremo a outro sem a mínima vergonha, talvez esquecida do que diz antes. Foi capaz de condenar o atentado em Paris - "Barbárie!" - esquecida que ocupou o parlatório da ONU, em Nova Iorque, diante da Assembleia Geral, para defender negociações com o Estado Islâmico, exterminador de gente em chacinas.

Agora, com amplo destaque na mídia, para uso interno, advogou as súplicas ao governo indonésio para a clemência ao brasileiro instrutor de asa delta, que traficou drogas para aquele país, onde o tráfico é condenado com a morte.

A presidente foi ao cúmulo de se dizer "consternada e indignada" com a execução. Deu uma de santinha, sabendo que o caso era perdido, porque Joko Widodo, presidente indonésio, também queria tirar casquinha da execução para dar ibope em casa. Ou seja, um brasileiro que vivo ou morto daria apenas pontos para os governantes, independente do crime que cometeu. Apenas mais um caso usado e abusado pelos governos, que não têm consideração por ninguém fora do grupo.

Aqui houve mais um gesto de cretinice dos "revoltados" com a execução, não admitida felizmente no país. Confundem respeito às leis soberanas de um país, no caso islâmico, apontam-nas como barbárie, mas esquecem que nos Estados Unidos a pena de morte também existe. Seríamos tão clementes com um brasileiro condenado por lá? Achincalharíamos os States? Ou a China?

Num momento de falta de manchete, a execução ganhou a mídia e as redes sociais, exageradamente. Se condenou a Indonésia, por vezes até esculhambada, e se apelou em massa para a liberação do condenado, muito mais do que se falou nas chacinas de Pedrinhas. A cobertura jornalística chegou às raias do apelativo, quando as prisões brasileiras não são diferentes das de lá. O privilégio, o tráfico, o uso indiscriminado de celulares, smartphone, iPad, estão nas cadeias de lá como nas daqui. Portanto não seremos assim tão superiores, nem muito tão civilizados, em relação aos indonésios. A sujeira penitenciária é igual. A diferença é a pena, porque lá se mata e aqui se deixa sair pela porta da frente.

Pedimos a clemência de um condenado no exterior, mas esquecemos de com a mesma força criticar penas de menos de um ano de prisão os políticos corruptos, por terem trabalhado e estudado na prisão; deixamos encarcerados por anos sem estudo e trabalho os pobres ladrões de galinha, até mesmo inocentes. Mas esses não merecem clemência, porque não dão voto nem contribuem para a imagem civilizada da presidente, que abriga em seu ministério gente com prontuário na Justiça ou procura esconder a corrupção generalizada.

A pena de morte não exterminará o tráfico e é mesmo condenável, mas não se pode aproveitar a execução de Marco Archer para se esconder as mazelas brasileiras em relação ao tráfico, que aqui encontrou um paraíso, até propiciado por falta de ações governamentais, às prisões abarrotadas onde tudo se comercializa, à corrupção de baixo a alto escalão.

Se a Indonésia executou um brasileiro, aqui se condenam e executam brasileiros por minuto sem que haja tanto movimento por clemência dessas vítimas. Criticar tanto o rabo dos outros é feio, quando o nosso está emporcalhado, talvez mais do que achamos.

A trincheira

No momento de barbárie, vejo como a ideia da liberdade individual, livre de doutrinas políticas ou religiosas, é uma trincheira a se defender com todos os riscos. Embora os riscos não sejam tão altos aqui nos trópicos
Fernando Gabeira

O mundo vai acabar



O mundo passou dos mil, mas não passa dos 2 mil!

Ouvi isso aos 11 anos.

Não se falava em Antropoceno e aquecimento global. Éramos etnocêntricos e eu temi menos o fim do mundo apocalipse do que a minha idade no apocalipse. Com 62 anos, eu seria mais velho que papai!

Mas o futebol e o amor, fizeram-me esquecer o fim do mundo. Ele retorna novamente com o aquecimento global e a crise do capitalismo consumista. É imperioso descobrir o suficiente e direcionar ambições.

Não há lógica no roubo de bilhões feito nas encruzilhadas entre Estado e sociedade porque quem paga a conta é o Brasil. Afora isso, sei que o mundo vai acabar.

No século passado pensava-se em limites. Hoje, eu prefiro falar do meu passado (o qual, penso, conheço razoavelmente) do que do futuro do País o qual se já não se f..., a Deus pertence, como dizia minha avó.

Entrei no mundo por meio do futebol e no universo da individualidade quando descobri o sexo. Falava do meu time sem nenhuma delação premiada; mas o sexo era tão obscuro como a corrupção que assola o País.

- O que é sutiã?

Para achar a resposta, começamos a ver a empregada tomar banho. Vestir o sutiã sinalizava o fim do espetáculo e tivemos uma resposta. Mas a travessura vazou e a porta foi trocada. Acabaram com o show da empregada, mas começamos a espiar a mulher do vizinho, que mudava de roupa sem fechar a janela.

Entre o cinema e as histórias em quadrinho, vivíamos o sexo indo ao banheiro com uma revista debaixo do braço. Tal como hoje defecamos lendo a notícia malcheirosa de um Brasil que como aquele bloco do carnaval de João Ternura, de Aníbal Machado, dá um passo pra frente e três pra trás.

O banheiro era o único lugar da solidão. Nele surgia o cidadão moderno livre, totalmente inexistente debaixo da supervisão familística porque, "menino não tem vontade"; e Deus - onipresente - nos via em todo lugar, sobretudo no banheiro.

Éramos entidades infra-humanas: "meninos". O mundo tinha "gente grande" e "crianças". Fui muitas vezes expulso da varanda porque "a conversa não era para criança!". Como "meninos", não éramos filhos e netos mas "diabos" e "cornetas". Quando lembravam da travessura de espiar a empregada - virávamos patifes!

O mundo tinha pobres e ricos; brasileiros e estrangeiros (ingleses beberrões que gostavam de clubes). A oposição entre brancos e negros que viviam na casa, mas não eram parte da família, era tabu. Ninguém deveria ser assim chamado numa óbvia sobrevivência de uma escravidão embargada.

Os grandes eram, além de adultos, misteriosamente homens e mulheres. Como soubemos? Todos eram obrigados a comer numa mesma mesa, mas a dormir em camas separadas. Entretanto, pai e mãe e até mesmo vovó e o "velho Raul" dormiam em camas de casal. Por que a comunhão na mesa e nas camas dos casais, as quais correspondiam a quartos separados e com chave enquanto todos nós, "meninos" dormíamos sozinhos?

Pensei muito sobre a cama e a mesa quando morreu uma colega, a professora nos obrigou a ir ao velório e, pela primeira vez, vi a máscara de cera dos mortos no corpo da menina que jazia em cima da mesa, na sala de jantar.

A mesa era uma cama de pés altos onde os mortos não acordavam. A cama, era uma mesa de pés baixos na qual os vivos amavam, dormiam, o sonhavam e experimentavam um arremedo da morte. Estudava-se e comia-se na mesa. Nela eu vi minha mãe fazendo um copo girar, em volta de um alfabeto, formando mensagens enviadas pelo espírito de um tio morto. Mensagens que, logo descobri, eram desejos de minha mãe.

Os "grandes" tinham sexo. Nas casas com animais de estimação, a divisão surgia mais nitidamente. Num lar de amazonenses que queriam falar de tudo, menos de índios, selva e bichos, a identidade de gênero era encoberta pela de idade. E um dia, um de nós quis saber o que era uma mulher.

- Elas sangram mensalmente e usam Modess, disse alguém.

- E os homens usam Midess jurou um outro que "passava a mão" na prima e, como especialista, sabia que elas não tinham nada entre as pernas, exceto um vale ondulado e escorregadio como uma geleia.

Esses eram tempos em não havia limite para quem estava no poder. Hoje, evoluídos e cientes do fim do mundo, temos múltiplas escolhas. A liberdade e os direitos criaram a consciência do palco e dos privilégios e deveres dos papéis. Quando eu era juvenil, a paixão estava na política que dominava até mesmo o nosso erotismo. Do mundo de hoje, eu nada sei. Penso que ainda existe amor e paixão e muita insegurança e confusão. E se isso existe, então há esperança.

Roberto Damatta