sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Pensamento do Dia

 

Solda, Comédia da Vida Privada

País elege um Congresso como nunca se viu na democracia

A discussão política quase toda se afoga no mar de ansiedade quanto ao resultado da eleição presidencial. É compreensível. Podemos estar pela hora da morte da democracia. Conviria, porém, prestar atenção ao Congresso, assunto em parte obliterado pelo excesso de discussão de "apoios" para o segundo turno, muita vez apenas fofoca politiqueira.

O Congresso é assunto de interesse prático e quase imediato. Embora pareça já história velha, ainda não se deu devida atenção ao fato de que a maioria do Congresso e as presidências de Câmara e Senado devem ser dominadas por uma coalizão de direita, fisiológica e/ou extremista, que jamais se viu na redemocratização.


Isso deve ter consequências sérias tanto para Lula da Silva (PT) como para Jair Bolsonaro (PL). O blocão direitista terá influência na política do Supremo (sic), ainda maior na malversação do Orçamento e no aparelhamento de funções de Estado.

PL, União Brasil, o PP, que governa para Bolsonaro, e o Republicanos (partido evangélico estrito senso) engordaram devido ao bolsonarismo, a Bolsonaro ou eles aderiram. Em coalizão, teriam 246 votos.

Podem engordar mais, devido a fuga de parlamentares de partidos ameaçados pela cláusula de barreira ou atraídos por outros incentivos. A coalizão pode crescer ainda com a adesão fácil de uma dúzia de direitistas dos nanicos.

Essa quadra direitista elegeu 154 deputados em 2018 e 114 em 2014, note-se. O ano de 2014 foi também o da grande fragmentação, do começo da dissolução do sistema partidário dominante entre 1990 e 2010, em que os maiores partidos eram em geral PMDB, PFL (depois DEM), PSDB e PT. Desses partidos, o "velho centro", central na definição do que era governo e oposição, acabou de se dissolver.

A fragmentação partidária na Câmara diminuiu em 2022. Apesar de ainda grande, voltou mais ou menos ao nível do que era entre 2002 e 2010. Na verdade, já diminuíra ao longo da legislatura de 2019-2022.

Nesses anos, o PL engordou com a migração de bolsonaristas duros do PSL, o União Brasil absorveu o bolsonarismo aguado do PSL restante, pois o DEM tomou uma atitude a fim de não se tornar um nanico como o PSDB. Além disso, elegeram ainda mais deputados.

O centrão, enfim, chegou ao centro do poder, depois de duas décadas como agregado menor de PSDB-DEM e PT. Agora, vestiu a roupa da direita extremada sobre a pele fisiológica —ou é de extrema direita mesmo. Esses partidos são netos ou bisnetos da Arena, o partido da ditadura. São liderados por alguns oligarcas regionais, mas de composição e base social ainda lá não muito bem compreendidas.

A opinião popular e de muito cientista político diz que é fácil comprar apoio parlamentar. Que seja. Ficou mais caro e isto tem consequências várias.

Uma consequência, desprezada por muito politólogo, foi o grande nojo da população por um sistema político negocista, indiferenciado "ideologicamente", fechado à participação e a exigências de mudanças e resultados reais. A revolta contra tal estado de coisas explodiu em 2013 e continua. Não é por acaso que a atitude "antissistema" tem apelo, mesmo depois da farsa de Bolsonaro.

De mais concreto, Bolsonaro pode ter vida mais fácil na nova Câmara, em parte por afinidade ideológica. Ainda que siga o arroz com feijão de certa politologia, redistribuição sem mais de poder, Lula terá problemas. O miolo mais maleável do Congresso desapareceu e a esquerda é ainda mais diminuta.

Essa mudança parece velha, pois começou a ficar evidente já na eleição de 2014, tomou impulso em 2018 e deu sinal forte de persistência na eleição municipal de 2020. Mas não estava consolidada, como é gritante pelo resultado desta eleição de 2022. É uma novidade grande.

O que sobrou da democracia

Uma das hipóteses levantadas com frequência por cientistas políticos é a de que após uma derrota eleitoral Jair Bolsonaro não conseguiria manter vivo o movimento reacionário que encabeçou. O resultado que saiu das urnas mostra o contrário. Em 2018, descobrimos que as redes poderiam mudar radicalmente o cenário político. Aí parece que esquecemos a lição. Pois elas seguem transformando o Brasil. Para pior.

Os partidos de Centro e Centro-Direita foram dizimados no Congresso. PSDB, Novo, MBL, mesmo MDB, reduzidos a uma fração do que já foram. No último pleito, Bolsonaro trouxe consigo uma penca de parlamentares. Os que entregaram o nível de lealdade e extremismo exigidos pelo presidente se elegeram.


Com base na teoria política tradicional, não era para ter sido assim. Os candidatos fisiológicos tiveram muito dinheiro para fazer campanha, os bolsonaristas não tanto. Mas foram estes que acumularam milhares de votos. Além disso, Bolsonaro não tem um partido, é hóspede no PL. Sem partido, sugere a teoria que temos, não dá para ter movimento.

Mas, se não houvesse um movimento, se não houvesse um Bolsonarismo vivo e na sociedade, nem Bolsonaro teria dado sua arrancada final, nem sua base teria sido a campeã.

Não precisa de partido. Bastam as lives de dentro do plenário, na saída de um palácio. Bastam as bem construídas redes de Zap, que atingem num só dia dezenas de milhões de brasileiros. O algoritmo do TikTok e do Kwai, o do YouTube. Essas estruturas mantém políticos bolsonaristas e suas bases em contato contínuo, mantendo a militância mobilizada.

Esta comunicação que o digital proporciona aos políticos, e isso é quase exclusividade da extrema-direita, é barata, envolve emocionalmente, é permanente e instantânea.

O digital transformou a maneira como a política é feita. Quando mergulharmos nas pesquisas para entender onde erraram, possivelmente descobriremos que não erraram. A instantaneidade do digital catalisa decisões de última hora. Pesquisas feitas pessoalmente mostram o retrato de três dias atrás, as por telefone de um ou dois, painéis na internet conseguem encurtar o tempo. Na semana da eleição, pesquisas serão mais úteis para detectar movimentos do que placares.

Hoje, pela incapacidade de boa parte dos políticos dominarem o digital, porque a ciência política e o jornalismo político não estão suficientemente atentos, o poder foi capturado pelo pior que temos.

O que sobrou da democracia brasileira foram Esquerda e Centro-esquerda. É isso que temos para hoje.

Os evangélicos do Brasil

Que evangelhos leram os evangélicos

do Brasil?

Que aprenderam, nesses evangelhos,
de subtil?

Acharam que o capitão Bolsonaro
era gentil?

Aquele infame palhaço ignaro,
carão hostil?

Isso ensinaram os evangelhos,
no Brasil?

Mas, então, nessa terra do Brasil,
não há Abril?

Que mal fizeram ao mundo os índios
do Brasil?

Não achará o Brasil, para seu bem,
algum ardil?

Por exemplo, enterrar os evangélicos
num covil?
Eugénio Lisboa, escritor e poeta português

Onde a Covid matou mais, Bolsonaro derrotou Lula com folga

A pandemia subtraiu votos a Bolsonaro que deu passe livre ao vírus para matar os “que tivessem de morrer”, mas não o suficiente a ponto de torná-lo execrado por sua ignorância e desumanidade, responsável em parte pela morte de mais de 650 mil pessoas.

Levantamento do Valor Data mostra que se a eleição tivesse se limitado aos 194 municípios com mortalidade por Covid acima da média, Bolsonaro estaria reeleito no primeiro turno. Onde o vírus matou mais, ele alcançou 66% dos votos, e Lula, 44%.


Nos 20 municípios que encabeçam a lista dos 194, Bolsonaro ganhou em 15 e Lula em 5. A maioria dos 20 está em São Paulo (7) e no Paraná (4). Os demais em Mato Grosso (2), Alagoas (2), Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás, Espírito Santo e Rondônia.

O número de mortos por 100 mil habitantes varia. Vai de 1.040 em Santa Clara do Oeste a 707 em São Caetano do Sul, ambos municípios de São Paulo. Nos extremos do país, o vírus matou 784 em uma cidade de Rondônia e 825 em outra do Rio Grande do Sul.

Faltou oxigênio em Manaus durante a pandemia e muitos morreram sufocados. O governo federal culpou o estadual pela tragédia, e o estadual negou a culpa. Bolsonaro imitou em live uma pessoa morrendo sem oxigênio. Pois ele venceu em Manaus.

Que país é esse? O que explica Bolsonaro ser bem votado no primeiro turno em lugares onde as populações deram-se tão mal com o vírus? Que os estudiosos do assunto possam explicar um dia. Certamente haverá explicações de toda natureza.

É possível, por exemplo, que a política do “fique em casa” defendida por governadores e prefeitos não tenha sido bem aceita pelos que queriam sair de casa. Ela pode ter sido entendida como mais uma forma de intervenção do Estado na vida privada.

Ou vai ver que em redutos bolsonaristas, o amor à vida revelou-se menor do que o amor ao presidente que combateu as medidas de isolamento. Isso poderá até deixar Bolsonaro satisfeito, mas a história é implacável com os que fazem o mal ao invés do bem.