sábado, 24 de julho de 2021

A recorrente indústria das eleições no Brasil

Está na hora de redefinir como financiar campanhas eleitorais. O Congresso Nacional turbinou as máquinas da indústria de eleições no Brasil. Passou o Fundo Eleitoral para R$ 5,7 bilhões! E fez a sociedade aumentar sua rejeição aos políticos e a Política. É preciso voltar ao financiamento misto – público e privado – e adotar o sistema eleitoral distrital misto, que torna as campanhas mais baratas.

Há tempo, com a fragmentação partidária e a personalização das campanhas (induzida por nosso sistema eleitoral proporcional uninominal), as eleições viraram uma indústria de votos. No auge do marketing político, tornaram-se também um espetáculo midiático. A proibição do financiamento privado teria a finalidade de estancar a industrialização do espetáculo da democracia. Mas não estancou. Piorou.

O aumento dos Fundos Eleitoral e Partidário; das emendas individuais e de bancadas; e, agora, das emendas do Relator, são vistos pelos brasileiros como um escárnio. Os recursos dos fundos são “protegidos” pela metonímia de que são recursos públicos. Ora, não existe dinheiro público, existe dinheiro dos contribuintes. Aí é que está. Virou um ralo.


Estamos assistindo o fortalecimento do poder das oligarquias partidárias. Suprassumo, no Brasil do Século XXI, da Lei de Ferro das Oligarquias de Robert Michels, formulada para designar a estrutura oligárquica do Partido Social-Democrata alemão no início do Século XX. Ao mesmo tempo, estamos assistindo o esgotamento do nosso sistema eleitoral uninominal, que induz a proliferação de candidatos e a competição entre eles. Há, então, uma disputa ferrenha pelo controle dos recursos dos partidos pelas oligarquias partidárias. Está aí a raiz da indústria das eleições.

O escárnio dos Fundos e as emendas “secretas” escancararam, para a sociedade, a premência de reformas políticas. Não as reformas regressivas – como a do distritão –, que estão em andamento na Câmara. Mas, sim, a agenda da permanência da cláusula de barreira e da proibição de coligações proporcionais. – e, também, da mudança do sistema eleitoral, do regime de governo e da legislação partidária, para vigorar em 2026.

É preciso conter a retomada do avanço da indústria das eleições. E atacar o verdadeiro cerne da questão político-institucional no Brasil: (a) o sistema atual não permite a formação de maiorias estáveis de governo; e (b) não estimula graus razoáveis de representatividade da representação política, isto é, a aproximação entre eleitores e eleitos.

Na trilha de Montesquieu, há que se renovar sempre a qualidade das instituições. Pois as virtudes e vícios do Estado decorrem de deficiências institucionais, muito mais do que de virtudes e vícios dos seus dirigentes e dos cidadãos. A causa maior de nossos problemas está nas regras, e o efeito está nos indivíduos. Até agora, o debate focou apenas o efeito: os indivíduos. É preciso focar a causa: o sistema e suas regras.

Brasil vive momento mais perigoso de sua jovem democracia

Teremos eleições em 2022? A mera existência de uma pergunta como essa em pleno século 21 é um dos sintomas mais dramáticos da ameaça que a democracia brasileira atravessa.

Ao longo dos últimos meses, governo, milícia digital e cúmplices de um movimento autoritário disseminaram dúvidas sobre a legitimidade das urnas no país, contradizendo auditorias nacionais e internacionais. O objetivo nunca foi o de construir um sistema mais sólido.

Mas, assim como toda a estratégia do bolsonarismo, a meta é a de minar a credibilidade e desmontar a confiança popular sobre as instituições.


O projeto não é novo. A extrema-direita no Brasil iniciou os ataques contra a democracia ao colocar opositores, imprensa e sociedade civil como alvos de uma operação de destruição de reputações, além de borrar as fronteiras entre a Justiça e o Executivo.

Para esse grupo no poder, jamais houve um limite sobre o que era possível fazer para justificar a morte — inclusive no cadastro do SUS — de qualquer um que representasse um questionamento.

Ao disseminar mentiras como política pública, as autoridades buscaram retirar qualquer legitimidade dessas vozes.

Não faltaram ainda ofensivas para rever a história do Brasil, transformando o Golpe de 1964 em um ato a ser comemorado.

Enquanto isso ocorria, um avanço claro era feito para fechar qualquer tipo de canal para permitir a influência da sociedade civil na condução das direções do país. Operações para esvaziar a imprensa também passaram a ser recorrentes, com ataques verbais do presidente Jair Bolsonaro, a opacidade sobre decisões de estado, a lentidão de seus serviços de imprensa em dar respostas aos jornalistas e campanhas declaradas apelando à população para considerar a imprensa como inimigos.

Ao longo de dois anos e meio, o resultado foi a redução do espaço cívico, as dúvidas sobre informações apuradas de maneira profissional e a construção deliberada de um cenário de incertezas.

Agora, o palco está montado para uma guerra suja. Irresponsável e nefasto, Bolsonaro deixou de flertar com o autoritarismo. Hoje, ele é o golpe.

Não podemos esperar pelos tanques para agir. Eles talvez nunca virão. Mas a destruição da democracia, por um sistema sofisticado, está em curso.

Em 2022, viveremos a eleição mais importante de nossa jovem democracia. O que estará em jogo não é o destino de um candidato. Mas de uma nação. E, por isso, a luta diária por sua realização se confunde com a própria sobrevivência da liberdade. Não há mais tempo a perder.

Por que não faz sentido celebrar 'placar' de curados da covid

A questão já havia vindo à tona no ano passado, com o Ministério da Saúde — e muitos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro — enaltecendo uma obviedade: que o número de curados de covid-19 é maior do que o número de mortos pela doença. A CPI da Pandemia escancarou essa questão, com governistas exibindo plaquetinhas com o saldo total dos considerados recuperados, enquanto parlamentares da oposição costumam mostrar a quantidade de mortos.

Atualmente, de acordo com dados oficiais, o Brasil se aproxima dos 550 mil mortos em decorrência da epidemia, enquanto curados ultrapassam a marca dos 18 milhões. Em dois momentos recentes, o debate ganhou contornos midiáticos. Em depoimento prestado à CPI, a microbiologista Natalia Pasternak, fundadora do Instituto Questão de Ciência, atentou para o fato de que celebrar os curados é lembrar de uma doença que traz "dor, sofrimento e sequelas".

Na mesma toada, o epidemiologista Pedro Hallal, pesquisador na Universidade Federal de Pelotas, afirmou à CPI que exaltar o número total de recuperados seria algo semelhante a comemorar o gol da seleção brasileira no fatídico jogo em que o Brasil perdeu de 7 a 1 para a Alemanha, na Copa de 2014.

"O intuito do meu comentário é [frisar] o fato de que existir muitos recuperados é consequência de ter existido muita gente infectada, o que já é má notícia por si só", comenta Hallal à DW Brasil.

Também à comissão parlamentar, a médica Nise Yamaguchi, que ficou conhecida por defender tratamentos sem comprovação científica contra a doença, exaltou que o Brasil "é um dos países que têm mais curados no mundo".

"Naturalmente é muito importante ter esse dado de recuperados, monitorá-lo, até para futuras análises se essas pessoas apresentam algum tipo de sequela após a infecção aguda gerada pelo [coronavírus] Sars-Cov-2", diz a biomédica Mellanie Fontes-Dutra, coordenadora da Rede Análise Covid-19.

"No entanto, para acompanhar e entender o andamento da pandemia, outros dados como a taxa de crescimento de casos e óbitos diários são mais informativos. Além disso, se temos um grande número de recuperados, é porque tivemos um grande número de pessoas infectadas. E com um grande número de pessoas infectadas, infelizmente vemos também um número intolerável e exacerbado de óbitos pela doença."


Hallal ressalta que estudos já indicam que muitos dos sobreviventes de covid-19 "vão ter sintomas de longa duração persistentes, alguns até com sequelas mais graves". "Esse é um motivo pelo qual comemorar o número de recuperados não faz sentido algum", afirma.

Mas, afinal, o que é estar curado dessa doença ainda tão desconhecida? Pesquisadora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a biomédica Karina Possa Abrahão ressalta que "a ciência ainda está descobrindo os desdobramentos" da covid-19.

"Curar é uma palavra filosoficamente debatida. O que é realmente curar?", reflete. "Se cura é o dia em que não existe mais o vírus Sars-Cov-2 no corpo do indivíduo, podemos dizer que a pessoa está curada em três semanas, embora haja relatos de infecção persistente. Então é um período curto, mas pode ser que a gente venha a entender que a cura seria a cura das sequelas, os danos residuais que afetam o organismo mesmo depois que o vírus foi eliminado pelo corpo."

E é aí que está o xis da questão. Ainda não se sabe com exatidão qual o percentual dos que apresentam problemas a médio e longo prazo, inclusive por se tratar de uma doença nova. Em março, a revista científica Nature Medicine trouxe uma compilação de dados apontando que o percentual de pacientes com sequelas pós-covid gira em torno de 10% a 30%.

O estudo cita fadiga, dor torácica, dificuldades respiratórias, distúrbios cognitivos e dores nas articulações e monitorou casos a partir de três semanas após o diagnóstico de covid-19. Parte dos avaliados apresentou essas sequelas de 4 a 12 semanas depois do diagnóstico; e parte seguiu com elas após as 12 semanas.

Especialistas frisam, contudo, que é preciso cautela ao analisar quaisquer estudos sobre o tema no momento, pelo fato de que em geral o acompanhamento só vem sendo feito com pacientes que chegaram a ser hospitalizados. Ainda não dá para mensurar o impacto futuro da doença naqueles que a desenvolveram de forma leve — e ficaram em casa — ou mesmo nos assintomáticos.

Pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a fisioterapeuta Mirelle Saes alerta que o sistema de saúde precisa se preparar para o período pós-epidêmico levando em conta aqueles que seguirão precisando de tratamentos.

"Ainda não se tem conhecimento do tempo de persistência dos sintomas residuais da doença, nem de suas complicações a longo prazo. Algumas pesquisas, que avaliaram a presença de sintomas após um ano de infecção, identificaram sintomas persistentes em até 50% dos investigados", afirma ela, citando que estudos preliminares apontam que 10% daqueles que ficam com sequelas acabam morrendo pelo agravamento do quadro.

Saes diz que já é possível considerar que a covid se apresenta em duas formas: a aguda e a crônica. "Ainda se tem pouco conhecimento sobre a covid longa, a crônica, mas se acredita que seja uma doença multissistêmica, que ocorre após o período de infecção, que pode ser leve ou grave", diz. "Frente a isso, o sistema de saúde deve adotar medidas considerando que o paciente recuperado da infecção ainda pode apresentar a covid em sua forma crônica, com duração longa e incerta, e que exige cuidados contínuos e qualificados."

De fadiga a danos cardíacos, passando por problemas respiratórios, perda de olfato e anormalidades renais e gastrointestinais, são muito variados os quadros que têm surgido no pós-covid. Aqueles que passam um tempo intubados também apresentam dificuldades motoras.

"E já sabemos que em torno de 30% dos casos com sintomas acabam desenvolvendo alguma sequela neurológica por meses, como distúrbios do sono, dores de cabeça, problemas de memória, ansiedade, depressão e dificuldade de concentração", pontua Abrahão. "Há estudos preliminares, ainda não publicados, que mostram que indivíduos que tiveram covid aumentam a expressão de marcadores de prognóstico para o desenvolvimento de doenças como Parkinson e Alzheimer. Precisamos ficar atentos para o futuro."

Diversas iniciativas estão buscando compreender melhor essa situação. É o caso do Estudo Coalização Covid-19 Brasil, uma parceria entre hospitais e o Ministério da Saúde que tem monitorado as sequelas nos que foram ali hospitalizados. A pesquisadora Saes participa de um projeto chamado Sulcovid, que deve acompanhar 4 mil indivíduos pós-infecção — atualmente, estão na primeira etapa, em que os pacientes contraíram o vírus de três a seis meses atrás. Mas a ideia é repetir as entrevistas com 12 e 18 meses.

"Se considerarmos que 18 milhões de pessoas estão livres do vírus [no Brasil], consideradas curadas da fase aguda, e que destes, estima-se que pelo menos 30% apresentam sequelas, estamos falando de 5,4 milhões de pessoas com sintomas residuais da doença", diz a pesquisadora Saes. "Possivelmente, a quantidade é ainda maior, visto que casos leves da doença são subnotificados. O SUS precisará se organizar para acolher essa nova demanda."

"A gente ainda não conhece essa doença por completo”, enfatiza Abrahão. A Organização Mundial de Saúde (OMS) vem demonstrando preocupação com as sequelas da covid-19 desde pelo menos agosto do ano passado.

Abrahão prevê que o mundo sofrerá uma "segunda pandemia" no rescaldo da covid-19. "Vai ser a das doenças mentais, decorrentes não só das sequelas da covid, mas também do período de isolamento social, distanciamento e da crise econômica. Tem uma bomba-relógio para estourar em breve", acredita ela.

A cegueira da governação

Príncipes, Reis, Imperadores, Monarcas do Mundo: vedes a ruína dos vossos Reinos, vedes as aflições e misérias dos vossos vassalos, vedes as violências, vedes as opressões, vedes os tributos, vedes as pobrezas, vedes as fomes, vedes as guerras, vedes as mortes, vedes os cativeiros, vedes a assolação de tudo? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. 

Príncipes, Eclesiásticos, grandes, maiores, supremos, e vós, ó Prelados, que estais em seu lugar: vedes as calamidades universais e particulares da Igreja, vedes os destroços da Fé, vedes o descaimento da Religião, vedes o desprezo das Leis Divinas, vedes o abuso do costumes, vedes os pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as simonias, vedes os sacrilégios, vedes a falta da doutrina sã, vedes a condenação e perda de tantas almas, dentro e fora da Cristandade? Ou o vedes ou não o vedes. Se o vedes, como não o remediais, e se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. 

Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra: vedes as obrigações que se descarregam sobre vosso cuidado, vedes o peso que carrega sobre vossas consciências, vedes as desatenções do governo, vedes as injustças, vedes os roubos, vedes os descaminhos, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos, vedes as potências dos grandes e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores e gemidos de todos? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos.
Padre António Vieira, "Sermões"