quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Brasil, assassinato flagrante

 


As finas flores do entulho

Quem por estes dias tenha acompanhado as notícias dos Estados Unidos, Brasil e América Latina em geral deve ter ficado estarrecido.

Como já se esperava rebentou a bronca com uma senadora evangélica do Brasil, Flordelis dos Santos de Souza, que é acusada de ter sido mandante do assassinato do marido, executado a tiro por alguns dos filhos duma família artificial de que era matriarca, constituída por cerca de 50 filhos adoptivos, numa casa que parecia um bordel e onde quase todos dormiam com quase todos.

Flordelis representa o pior do evangelicalismo brasileiro, onde qualquer pessoa sem escrúpulos pode ascender facilmente a posições de destaque em virtude do meio ser altamente conservador e pouco instruído. Veja-se o caso de Edir Macedo e outros tantos figurões do denominado neopentecostalismo, de resto uma designação imprecisa e que deixa muito a desejar.

Flordelis é uma construção desenvolvida nas últimas décadas e feita em cima da visibilidade mediática. Criada numa favela do Rio, fundou uma dos milhares de igrejas independentes do segmento pentecostal que anuncia um avivamento recorrente, mas sempre de olho posto em programas de carácter musical para atrair público. Foi assim que alguns elementos se tornaram celebridades e ganharam estatuto e poder, sempre fiéis à filosofia do sucesso, da conquista, da saúde, da rejeição de todo e qualquer sofrimento e da guerra contra os inimigos.

A alegada autora moral do crime chorou compulsivamente no velório do marido, Anderson do Carmo, mas consta que “por trás da aparência de mãe e mulher modelo, frequentava casas de swing e oferecia filhas como objectos sexuais a outras autoridades evangélicas.” O facto de ser amiga da ministra Damares Alves, de Michelle Bolsonaro, e apaparicada pelas lideranças neopentecostais é sintomático do moralismo hipócrita prevalecente.

Talvez não seja por acaso que o nome da figura (flor-de-lis) tenha sido adaptado da heráldica associada à monarquia absolutista francesa.


Poderíamos falar também do pastor Everaldo, tornado famoso por ter baptizado Bolsonaro no rio Jordão, em Israel (outra tara do meio!), ele que se diz católico… Pois Everaldo foi apanhado na teia da corrupção e está a contas com a justiça. De acordo com a imprensa o quinto classificado na eleição presidencial de 2014, líder do ultraconservador Partido Social Cristão (PSC), faz parte, segundo o Ministério Público, “de um grupo criminoso que desviou e lavou recursos em plena pandemia, sacrificando a saúde e a vida de milhares de pessoas num total desprezo com o senso mínimo de humanidade e dignidade”.

Mas se formos para os países sul-americanos de língua castelhana, o panorama não é melhor. Os escândalos sucedem-se em catadupa.

Nos Estados Unidos acabou de rebentar outro escândalo pela mão de Jerry Falwell Jr, líder evangélico e presidente duma universidade cristã conservadora, apoiante próximo de Donald Trump. Há dois anos, quando foi confrontado com a estranheza provocada pelo seu apoio fervoroso ao candidato presidencial com uma vida tão imoral, terá afirmado: “Todo ser humano é um pecador. Somos todos imperfeitos, todos temos falhas e somos redimidos pelo sangue de Jesus Cristo.” Pois bem, perdeu agora as suas mordomias, ao ter de se demitir e abdicar de um salário anual de um milhão de dólares e do uso de jacto particular, ao ser apanhado num escândalo sexual centrado no alegado adultério da mulher, consentido e incentivado por ele.

Os analistas políticos perguntam-se até que ponto o escândalo pode prejudicar o voto em Donald Trump, em especial por parte do eleitorado branco conservador e religioso.

Estes são apenas alguns sinais de um certo evangelicalismo extremista, alimentado por décadas de doutrinação distorcida do Evangelho de Cristo e do significado genuíno da cruz, que na sua pureza fala de tolerância, despojamento e compaixão. Esta nova doutrina substituiu o ensino de Jesus pela luta por notoriedade, poder, e por um discurso agressivo, triunfalista e hipócrita, montado numa moralidade duvidosa, mas onde não resta espaço para amar o que é diferente ou aquele que pensa de forma diversa.

Flordelis justificou-se dizendo que não se queria divorciar do marido para não “desagradar a Deus”. Pelos vistos envenená-lo e mandar matá-lo já agrada… Segundo um comentador brasileiro “atualmente a relação entre religião e governo é praticada em bases abertamente oportunistas e sem qualquer pudor de natureza ética”.

Mas os escândalos com os segmentos católicos (os alegados crimes do padre Robson) e espíritas (os do médium João de Deus) também compõem o quadro religioso.

Os abcessos precisam de ser lancetados. Embora incomode os sectores religiosos torna-se necessário, do ponto de vista higiénico, denunciar firmemente estes falsos cristãos e mercadores da fé, em nome da esmagadora maioria dos que se gastam e desgastam em privações, sob perseguição, em sacrifícios, que muitas vezes são presos e mortos em nome da sua fé, em regiões inóspitas, mas com vidas dignas e íntegras ao serviço do próximo. Sobre esses, disse Jesus: “Bem está, servo bom e fiel. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor” (Mateus 25:21). Mas sobre os outros dirá: “Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade” (Mateus 7:23)

Segurança alimentar piora pela 1ª vez no Brasil

A falta de alimento voltou a ser um problema sério para os brasileiros. Pela primeira vez, o indicador de segurança alimentar — quando não há problemas para conseguir e dividir os alimentos entre os membros de uma família — recuou no país e a fome já atinge 10,3 milhões de pessoas, segundo Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, divulgada nesta quinta-feira.

Os dados são de 2018, antes da pandemia e quando o país engantinhava para se recuperar da recessão iniciada quatro anos antes. 

A quantidade de lares que conseguiam prover alimentos para todos os seus membros atingiu 63,3% em 2018, o menor patamar desde 2004, quando a pesquisa começou. Em 2013, ano da pesquisa anterior, eram 77,4% dos lares que tinham segurança alimentar, o recorde da série.

Dos 68,9 milhões de lares no país, 36,7% enfrentavam algum problema para garantir qualidade e quantidade dos alimentos para todos os membros da família, a chamada insegurança alimentar.

A pesquisa classifica os lares em segurança alimentar e três níveis de insegurança alimentar (passando desde perda de qualidade em alimentos até a falta de comida para todos os membros do lar, podendo chegar à situação de fome).

A POF mostra ainda que mais de 41% dos 207,1 milhões de habitantes do pais, ou  84,9 milhões de pessoas  vivem em casas onde existe dificuldades para colocar comida na mesa.

Assim, 56 milhões estavam domicílios com insegurança leve (falta de qualidade nos alimentos), 18,6 milhões em domicílios com insegurança moderada (falta de qualidade e quantidade na comida, mas preservando alguns membros) e 10,3 milhões de pessoas em lares com insegurança grave (falta de qualidade e quantidade na comida, podendo chegar à situação de fome).

Na divisão regional, Norte (10,2%) e Nordeste (7,1%) foram as que tiveram os maiores percentuais de insegurança alimentar grave no total de seus domicílios. Na sequência, estão Centro-Oeste (4,7) e Sudeste (2,9%). A região com a menor incidência deste tipo de insegurança alimentar é a Sul (2,2%).

Os problemas relacionados à escassez ou falta de alimentos ocorrem com mais intensidade em lares cuja pessoa responsável é uma mulher ou uma pessoa parda. Em 2018, 61% das famílias chefiadas por homens estavam na faixa de segurança alimentar. No caso da mulher como chefe, eram 38,6% nesta faixa.
Gabriel Martins

Agronegócio: estragando o que deu certo

Nas últimas décadas acumulamos alguns fracassos, mas no mesmo tempo, fizemos uma revolução agrícola que é um êxito histórico. Há menos de 50 anos a produção agropecuária do Brasil não era sequer suficiente para atender ao nosso ainda pequeno mercado doméstico.

Quem viveu esses tempos lembra da importação de alimentos básicos, do racionamento periódico de feijão, óleo, carne e das infrutíferas tentativas de intervenção do Estado para controlar os preços e o abastecimento.

Hoje exportamos anualmente mais de US$ 100 bilhões para mais de 150 destinos e somos os principais exportadores de alimentos do mundo, sem falar no abastecimento completo do nosso mercado interno de praticamente todos os produtos que necessitamos, com preços que, ao longo do tempo, foram diminuindo em termos reais.

Tudo isto foi fruto predominantemente do empreendedorismo privado, mesmo reconhecendo a contribuição do Estado no setor de pesquisa e de crédito, graças à visão de uns poucos dirigentes públicos, o maior dos quais foi o mineiro Alysson Paulinelli.

A dimensão que tomou o nosso agro é um exemplo das virtudes do livre mercado e da iniciativa privada que deveria sempre nos orientar nas questões da economia. Sem empresários em busca do lucro não há nem crescimento e nem democracia política. Muito menos bem-estar social. Nenhuma sociedade pode viver permanentemente de subsídios e transferências de renda, pois o Estado não pode extrair dinheiro do nada e ninguém pode consumir o que não se produz.


Se o Estado não pode produzir alimentos pode, no entanto, causar sérios danos aos produtores e à produção. Hoje, no Brasil, várias políticas governamentais caminham no sentido de ameaçar o futuro do agro. A primeira delas é a política ambiental e de gestão da questão amazônica.

Formou-se solidamente na opinião pública internacional a imagem de que o Brasil tem políticas hostis à defesa do meio ambiente e é deliberadamente negligente na proteção da floresta amazônica. Parte desta percepção tem raízes em interesses comerciais e na ação de ativistas políticos, pouco interessados em fatos.

Mas parte importante deve-se a realidades que não devemos negar e a que devemos responder não com atitudes defensivas, mas com ações concretas e visíveis.

Se não provarmos com fatos que somos capazes de cuidar da Amazônia em proveito de toda a humanidade, os mercados externos vão retaliar as exportações brasileiras de produtos do agro. Dado o tamanho de nossa produção qualquer limitação de nossas vendas externas vai provocar graves prejuízos aos produtores e a desorganização de muitas cadeias produtivas. Sem falar nos danos ao nosso equilíbrio cambial, totalmente dependente dos saldos das exportações agrícolas.

Ao lado da questão ambiental, os rumos da nossa política externa, inteiramente orientada por considerações de estreita ideologia, tem potencial para afetar nossos mais importantes mercados.

A China responde hoje por um terço de nossas exportações do agro e o grupo de países islâmicos nos compra cerca de US$ 16 bilhões anualmente. A política externa de um país como o Brasil tem que estar ao lado de nossos interesses comerciais e não se intrometer em contenciosos sem nenhuma relação com nosso horizonte geopolítico. O alinhamento incondicional com o atual governante dos Estados Unidos e o capricho de nos envolver nas questões do Oriente Médio não servem aos nossos interesses econômicos pois nos afastam de nossos principais compradores, em troca de nada.

Por último, a retórica populista e antiquada que o Governo ensaia diante do aumento dos preços do arroz revela profunda ignorância das condições de mercado, aversão às regras da livre iniciativa e a intenção de criminalizar o lucro, que é o único motivo que leva as pessoas a correr risco e produzir. Por ironia, a produção de arroz é uma das atividades agrícolas menos lucrativas e mais arriscadas do país.

Meio ambiente, política externa e intervenção econômica: é tudo o que o agro precisa para também tornar-se um fracasso no futuro.
Roberto Brant

Morte e destruição não afetam Bolsonaro

O Pantanal que queimou até agora é do tamanho de metade do estado do Rio de Janeiro. É mais ou menos o triplo da área da região metropolitana de São Paulo, onde vivem quase 22 milhões de pessoas em 39 cidades. É maior que o estado de Sergipe inteiro.

Algumas pessoas se comovem com a imagem horrível dos pobres bichos mortos ou fugindo do fogo queimados e asfixiados, pedindo água nas estradas e nas ruas das cidades à beira do inferno. Sabe-se lá quantas poucas se preocupam com o tamanho do desastre ambiental, da calamidade irreversível que pode ter havido.

No mais, parece que o sentimento nacional de emergência definha quanto mais cresce nossa tolerância com a morte e a destruição. Sempre grande, a indiferença parece maior nos tempos de Jair Bolsonaro.

Ainda morrem 800 pessoas por dia de Covid-19. É como se todos os dias morressem todas as crianças de uma escola das grandes aqui de São Paulo. Talvez imaginar todos os pequenos cadáveres estendidos no pátio ajudasse a suscitar alguma comiseração. Mas talvez na verdade argumentem que três de cada quatro mortos são velhos, gente de mais de 60 anos, “e daí?”, como se faz numa dessas trocas quaisquer de insultos sórdidos e burrice feroz das redes insociáveis.


A indiferença pela epidemia é crescente, notam jornalistas e especialistas que medem a atenção da audiência, do público. Os abatidos pela Covid-19 mais e mais fazem parte da natureza mortal do Brasil, das dezenas de milhares de assassinados ou mortos no trânsito, para as quais quase ninguém liga. No Natal deste ano horrível de 2020 os mortos pelo vírus talvez sejam 200 mil.

Como se sabe com muito asco, o governo federal jamais juntou uma comissão dos melhores cientistas ou pensadores e administradores de calamidades a fim de conter o espalhamento da morte pelo coronavírus. Ao contrário, escorraçou toda a gente estudiosa, a razão e a humanidade. Transformou o Ministério da Saúde em um almoxarifado militar. Por que haveria de se ocupar da emergência do Pantanal?

A destruição do Pantanal, da Amazônia e do que resta do cerrado é parte do programa da coalizão governista, que juntou também grileiros, mineradores e madeireiros ilegais e o pior do agronegócio. Tudo isso é óbvio. Mais importante para quem pretende se ocupar da próxima destruição ou evita-la é o método Bolsonaro de ser irresponsável. Isto é, de não assumir suas responsabilidades, da capacidade de se colocar em um universo à parte, em uma bolha de culto à personalidade desvairado e odiento.

Bolsonaro se exime de responsabilidades na epidemia, nas queimadas, no fracasso do Renda Brasil, na indiferença inepta em relação à carestia da comida, às filas do INSS o que seja. Com sucesso, convence boa parte da população, uns dois terços, de que foi eleito para outras tarefas, como mentir, fazer propaganda de moralismo farisaico (logo ele, que faz piadas sujas com meninas de dez anos), eliminar ONGs, esquerdistas, “militâncias”, armar a população e evitar que seus filhos e, um dia, ele mesmo acabem na cadeia.

A medida de governo mais importante de seu mandato e que evitou uma convulsão social, o auxílio emergencial, foi tomada pelo Congresso. Nem mesmo estelionatos eleitorais evidentes colam, como ter escorraçado o lava-jatismo e feito pacto com a “velha política” do centrão (isto é, reencontrou-se consigo mesmo, apenas).

Bolsonaro por enquanto conseguiu se transformar em uma entidade do sobrenatural da política. Não é cobrado pelo seu desgoverno e se descola da destruição, as que promove ou tolera.

Bolsonaro terceiriza o apuro em que se meteu

O presidente da República esmera-se no seu melhor papel, o de quem, ao mesmo tempo, faz e desfaz. Diz e desdiz. Confunde e embaralha para reinar sobre o apuro fiscal em que se meteu. Sempre foi assim e não deixará de ser enquanto tiver um Congresso subserviente a esta bipolaridade.

Em 48 horas, Jair Bolsonaro tomou uma decisão contra bem aquinhoados (o veto da anistia fiscal às igrejas isentas), recomendando ao Congresso que a derrubasse, gravou vídeo dando cartão vermelho à turma “sem-coração” do Ministério da Economia e dizendo que desistira de um programa de renda básica em favor do Bolsa-Família. Por fim, ressuscitou o Renda Brasil, pediu que o relator o incluísse no Orçamento e elogiou o ministro Paulo Guedes e sua equipe.Em qual desses Bolsonaros se deve acreditar? Em nenhum e em todos eles. Como não sabe como fazer caber o Brasil dentro do PIB e não aceita arcar com as consequências das alternativas que lhe são apresentadas, o presidente se compraz em terceirizar uma responsabilidade que é sua.



Ao acender o fogareiro para o ministro da Economia, não significa que queira fritá-lo. Ao apagá-lo não pretende salvá-lo. O vaivém é inócuo. Para a agenda que move suas obsessões, Paulo Guedes hoje tem um papel decorativo. É, porém, mais útil do que nunca a um presidente que precisa se mostrar em guerra contra seu próprio governo.

E não apenas contra Guedes. Por um lado, Bolsonaro precisa dosar as ambições dos parlamentares aderentes para mantê-los como sócios de sua recondução em 2022. Por outro lado, tenta preservar o apoio daqueles que apostam na agenda do ministro, não somente para conter a pressão sobre a dívida pública, mas também para evitar que ponham um pé em outra canoa precipitadamente. Por tudo isso, Paulo Guedes pode continuar a fingir ser quem é.

É claro que o presidente não se move apenas pela intuição. Do monitoramento das redes sociais, conclui-se, por exemplo, que o deputado que acorda e vai dormir falando de auxílio emergencial, André Janones (Avante-MG), teve 55 milhões de interações em suas redes sociais nos últimos 30 dias (levantamento da Bites), mais do que o próprio Bolsonaro (36 milhões). Por isso, o presidente avança e recua no tema para não perder o bonde.

Ao jogar a viabilização de um programa de renda mínima para o colo do Congresso, Bolsonaro parece confiar na agenda fiscalista do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que inibe uma alternativa fura-teto. Parece acreditar que se não for viabilizada uma saída orçamentária para o programa, o problema poderá ser debitado na conta do Congresso. Ou não.

Assim como os louros do auxílio emergencial alavancam a popularidade presidencial, sua redução, com posterior interrupção, também podem vir a ser debitados na sua conta. Por isso, a estratégia do presidente ainda está longe de lhe abrir as portas do paraíso, apesar de acenar àqueles que vão ficar sem auxílio emergencial ou renda básica, com o inferno.

A criação de novos impostos, como insiste o ministro Paulo Guedes, esbarra no Congresso. Por isso, já há quem se mobilize, no entorno do gabinete presidencial, em buscar alternativas para encorpar o Bolsa-Família. Depois do vídeo, um colaborador começou a fazer as contas do quanto o governo poderia abrir de espaço fiscal se passasse um pente fino no custeio (contratos de aluguel e mão-de-obra terceirizada, diárias, combustível, passagens aéreas, alimentação, uniforme e manutenção).

Um corte de 30% nos contratos de custeio, desde que extensivo a todos os Poderes, proporcionaria uma economia próxima a dois dígitos com a qual se viabilizaria um Bolsa Família mais robusto. Não lhe faltam, porém, obstáculos. Desde a oposição de grandes usuários deste custeio, como as Forças Armadas, até intermediários desses contratos que hoje estão no time de líderes do governo no Congresso Nacional.

O relator do Orçamento, que recebeu a incumbência de arrumar um lugar para um programa de renda básica, é o mesmo da proposta de emenda constitucional que estabelece um gatilho quando os gastos atingirem 85% da receita. Uma alternativa ao corte linear seria a tesoura nos penduricalhos, extensiva a todos os Poderes.

Estivesse disposto a encará-la, porém, Bolsonaro a teria incluído na proposta de reforma administrativa. O medo de paralisação de corporações que movem a máquina do Estado, como a Receita Federal, e contas que o presidente e sua família têm a ajustar com a justiça o afugentam da pauta.

Mais fácil é fazer economia em cima de serviços cujo dano é tão extenso quanto inofensivo. Tome-se, por exemplo, a paralisia da perícia para a concessão de benefícios do INSS por conta do coronavírus. A regulamentação existente da telemedicina é suficiente para que a perícia seja realizada.

O álibi da pandemia, no entanto, faz com que o governo represe silenciosamente a concessão de benefícios. O passivo já atingiu dois milhões de pessoas este ano, entre aposentados, doentes e acidentados, os mesmos que, Bolsonaro, no vídeo, disse que “jamais” prejudicaria, na ilusão de que a bomba fiscal possa ser retardada.

A resistência a medidas do gênero “choque de gestão” empurra, cada vez mais, Bolsonaro para o papel em que ele parece se sentir mais confortável na disputa de 2022, o de “capitão dos pobres”. Capitaneia uma máquina pública carcomida e desigual, mas aposta que nenhum dos adversários que virão pelo meio, é capaz de encabeçar uma proposta viável, eleitoral e politicamente, de reforma do Estado que venha a desafiá-lo. Parece acreditar que seja mais fácil se acomodar no lugar que ainda pertence ao PT, como provedor do mais amplo e permanente programa de renda do país.

Ainda não se sabe com que dinheiro pretende fazer isso. Por enquanto, com o Pantanal em chamas, uma imagem internacional esfarinhada, um arroz pelos olhos da cara e milhões de brasileiros com a vida à deriva em 2021, resta ao presidente confundir - sem remediar.

Pensamento do Dia

 


A hipóxia da América Latina

Na lista de países com o maior número de mortes diárias por milhão de habitantes, vidas ceifadas pela covid-19, os dez primeiros lugares pertencem à América Latina. Na lista de países com o maior número de casos diários por milhão de habitantes, há sete países da região entre os mais afetados. O primeiro lugar não pertence aos Estados Unidos, mas à Argentina. O segundo lugar é da Costa Rica, o quarto lugar é do Peru, o quinto do Panamá, o sexto da Colômbia, o sétimo do Brasil. Os EUA aparecem na nona posição, já que a décima pertence ao Chile.

A pandemia chegou à região em fevereiro de 2020, tendo, assim, dado dois meses para que os governos se preparassem. Poderiam ter usado esse tempo para traçar planos de resgate econômico, estratégias de saúde pública, medidas para proteger as centenas de milhões de pessoas vulneráveis da região. Do desperdício emergiram os pulmões dilacerados da América Latina.

Foram muitos os erros. Lideranças frágeis, instituições em crise permanente, presidentes como Andrés Manuel López Obrador no México e Jair Bolsonaro no Brasil que negaram com veemência a gravidade de um vírus novo e letal sobre o qual pouco se sabia. O caso mexicano surpreende bem mais do que o brasileiro já que López Obrador, apesar de algumas limitações, fez campanha como “defensor dos pobres” e prometeu uma agenda de priorização da proteção social em seu país. Até agora, pouco fez. Bolsonaro…bem, com esse já aprendemos tudo o que não devemos esperar que faça.

O resultado do fracasso latino-americano está estampado nos números. Até o dia 11 de setembro contabilizavam-se quase 7 milhões de casos de covid-19 nas 5 maiores economias da região, a saber: Brasil, México, Colômbia, Argentina, e Peru. São centenas de milhares de mortos, sem contar que os números estão subestimados devido à má qualidade da coleta de informações, a falta de testagem, a ausência de protocolos para o rastreamento de contatos. As quedas registradas da atividade econômica jamais foram tão fortes, o desemprego está em alta, e a crise humanitária tem recaído, sobretudo, na população mais pobre. Tudo isso na região que é campeã da desigualdade no planeta e cujos níveis de pobreza são dramáticos.


Em conferência recente aqui em Washington – o evento anual da Confederação Andina de Fomento (CAF) – ouvi dos meus colegas de painel relatos semelhantes aos que escuto no Brasil. Descaso de governantes, políticas mal elaboradas, aberturas prematuras de locais de grande aglomeração, descontrole da pandemia. Em algumas partes da região fala-se em desordem social, igual ou pior do que aquela que testemunhamos na segunda metade de 2019 – parece uma eternidade, mas foi outro dia.

A economia da América Latina já estava abalada antes da pandemia. As duas maiores potências econômicas da região, Brasil e México, resfolegavam para crescer em meio a contas públicas desarranjadas e ausência de perspectivas para o resgate do desenvolvimento. Nesse contexto, quase todos os países da região cometeram exatamente o mesmo erro: o de tentar evitar medidas sanitárias mais drásticas – como quarentenas rigorosas – para “salvar” as economias. O resultado foi o pior possível: não houve controle da epidemia, tampouco da crise econômica.

Como já escrevi em outras ocasiões nesse espaço, não há retomada econômica na ausência de medidas para controlar as epidemias. Contudo, como muitos países voltaram à seminormalidade nos últimos meses, mantendo escolas fechadas, porém abrindo bares, restaurantes, shopping centers, medidas sanitárias restritivas não têm apoio social ou político.

Tal quadro significa que epidemias descontroladas serão a norma ao longo dos próximos meses, com consequências, evidentemente, desastrosas em termos de vidas perdidas e abalos socioeconômicos nestes países da América Latina.

Os pulmões dilacerados da América Latina continuarão a afligir a população vulnerável e a elevar os índices de desigualdade e pobreza já tão altos nessa trágica região do planeta. Roubando as palavras de Caetano e Gil, parece difícil que sejamos capazes de escapar de um destino. Desse destino: o Haiti é aqui.

Brasil agora é cinza


O Brasil tinha uma marca simpática, positiva, e agora tudo isso está sendo destruído por nada, sem ganhar nada em troca. É algo gratuito, absurdo e sem sentido 

Rubens Ricupero, diretor da Fundação Álvares Penteado (Faap)

Ressurreição

Todo dia, me surpreendo com a capacidade e dedicação que as pessoas têm em causar dor. Seja em outras ou em si mesmas, minha impressão é temos um dispositivo desconhecido, programado para tomar decisões das quais vamos nos arrepender mais tarde. Várias vezes. Apesar de já ter uma ideia dos efeitos que repercutirão, ainda assim, optamos pelo caminho errado. Cabeça dura, fraqueza, emoções mais fortes do que a razão; tantas razões para o fracasso. E, ao mesmo tempo, tantas desculpas. Tentar botar a culpa em algum elemento incontrolável não nos livra do fato de que, no final das contas, fomos nós os agentes diretos do ato que nos transformou em vítimas. O fato é que errar constantemente nos dá a certeza de que somos humanos. É com o sofrimento que percebemos nossa vulnerabilidade. E, assim, nos preparamos para a morte. Quanto mais dor acumulamos, a morte perde seu atmosfera cruel e injusta. Morrer se torna um final inevitável. A consequência para uma série de acontecimentos que não foram como imaginávamos. Pode soar sombrio, mas não é tanto. Quando menciono “acontecimentos que não foram como imaginávamos”, também me refiro a coisas boas. Cada vez mais, acredito que a vida nada mais é que a acumulação de acidentes sobre os quais não temos controle. A maioria das pessoas não gosta de acreditar nisso. Eu próprio gosto de pensar que tenho controle sobre minha vida, o que, no fundo, sei tratar de uma mentira deslavada. Será, então, a revolta por saber somos folhas ao vento que nos faz provocar acontecimentos cujos eventos já sabemos como prosseguirão? Ou será que o desejo de não temer mais a morte nos faz cair num espiral de culpa e violências? Nesse caso, o tal dispositivo não seria autodestrutivo, mas um mecanismo de preservação. Ao mesmo tempo, como uma droga sintética, nos dá a ilusão artística de podemos criar uma realidade. A única forma que teríamos de nos preparar e a outros para o inevitável, também seria uma forma de auto- afirmação. A dor é como uma droga: terapêutica, enganadora, incrivelmente disseminada, viciante e fora de controle. A dor não seria um mal, mas até uma necessidade. Isso me faz lembrar uma história sobre Alexandre, o Grande: um dia, ele olhou para seu reino e chorou, pois não havia mais nada para conquistar. Qual é razão para estar vivo quando todos os seus objetivos se cumpriram? Chorar se torna uma redenção. Ele provou que ainda estava vivo.



Pensando sobre a dor, temos que mencionar sobre o depois. Quando a dor se passa, o que ocorre? Lembro da Páscoa, considerado dia da ressurreição. Finalmente, na cruz, o homem que se diz o filho de Deus sente- se mais homem do que nunca, pois sente- se abandonado e machucado. Física e espiritualmente. Três dias depois, ele ressuscita: mais forte, transformado e vencedor. Esta história me remete ao clichê de Nietzsche: “O que não nos mata, nos fortalece.” Não é estranho ver o anti-cristão filósofo alemão e o Salvador serem coincidentes num determinado ponto. A dor é que nos faz perder o medo e sua propagação nos faz sentir menos impotentes. O pós-dor, por sua vez, nos dá mais força para seguir em frente. As cicatrizes nos estimulam a vencer. A rir da cara da morte, como se gritássemos para ela: “Pelo menos, algo eu consegui! Nossas feridas nos deixam determinados. Já tivemos uma pequena mostra da morte, mas continuamos aqui. Se continuamos, é porque somos fortes o suficiente para tentar outra vez. E ser ousados. Já experimentei, aguentei e, agora, me aguardem, pois estou mais preparado do que na última vez.” A imagem que me vem à mente, é como se estivesse no fundo do mar ou de um lago, nadando até a superfície, quase sem fôlego, achando que vou morrer. Finalmente chego a superfície e respiro longamente. A pergunta que fazemos após o retorno é: “E agora? O que vamos fazer?” Pode ser agoniante, mas, enquanto tivermos a capacidade de sentir, saberemos que nosso trabalho ainda não está pronto e que temos uma razão para continuar. Mesmo que você tenha conquistado todo o mundo conhecido. Você não está morto. Mas não lhe isenta dos corpos que deixa pelo caminho. Algumas coisas se perdem. As outras esperamos esbarrar pelo caminho. Ninguém volta da morte o mesmo. Que seja, então, sublime.
Daniel Russell Ribas

Os humanos que o vírus descobriu no Brasil.

Tenho peregrinado pelos memoriais e por páginas desconhecidas de redes sociais em busca dos fragmentos da vida dos mortos, em busca dos testemunhos dos enlutados, para que também eu possa acreditar com eles que houve uma morte. E então empresto o meu corpo e escrevo a partir destes fragmentos. Essa crônica que faço a partir do real me ajuda a ficar em pé. É o meu jeito de estar junto num velório que não velou, num enterro que sepultou também os vivos, porque sem despedida, num sepultamento em que os familiares foram compelidos a mentir a causa da morte para não serem estigmatizados pela vizinhança. Sim, porque também isso está acontecendo no Brasil. Morrer de covid-19 tornou-se uma vergonha a ser ocultada, assim como subnotificados são os números oficiais.

Perambulo pela história dos outros para costurar fiapos de vida. Não reportagens ou depoimentos, como costumo fazer, mas pequenas crônicas como estas a seguir.

Era o pijama azul, aquele que tinha a mancha de vinho no peito. Ele sempre derramava coisas na roupa quando comia ou bebia. Queria enterrá-lo com ele, pra que possuísse algo seu que pudesse reconhecer na travessia, para que não fosse para a escuridão sem algo familiar, para que as minhas tentativas sempre fracassadas de tirar a mancha fossem uma lembrança de que tinha sido tão amado. Mas você me foi arrancado, eu não pude acariciar sequer o seu rosto. Eu não perdi apenas a sua vida, eu perdi também a sua morte.

Quando ria, ela tentava esconder um dente amarelado, uma escultura estragada por um dentista barato, que não prestou atenção no seu sorriso. E agora, quando ela é arrancada de mim, é este dente torto, abalroado pela vida, que me falta mais. Como se só ele pudesse me devolver alguma sanidade na insanidade de não poder dizer a você que eu nunca me esforcei para lhe ajudar a pagar o dentista porque não queria perder nem um pedacinho de você, nem mesmo aquele dente que a constrangia, mas que eu amava mais porque era a prova de que você era deste mundo e não escaparia. Sim, eu sempre achei que você era perfeição que eu não merecia, mas queria. E então, sequestraram você de mim. E eu, que contava tudo a você, só a você, não tenho a quem contar que até seu dente ruim me faz falta.

Eles disseram que as crianças tinham muito muito muito menos chance de pegar o vírus. Eu me agarrei a isso. Você, minha filha, tinha bochechas grandes demais, rosadas demais, para caber um vírus. E quando corria, você tinha uma confiança absoluta em seus passos incertos. E quando caía, você apenas ria, anunciando que não temeria as quedas que viriam. Eu, sim. Eu temia todas as suas quedas. E agora que você é só uma foto num porta-retratos, agora que nem me permitiram embalar o seu corpo, agora que você passou naquele pequeno caixão fechado onde eu não poderia reconhecer você, a minha menina, eu queria só ter a chance de ver você cair e ajudá-la a levantar. Preciso te dizer que não acredito. Como vou saber que não era outra naquele caixão? Como vou saber que você não está viva caindo de bunda em outro chão e rindo como se tudo isso fosse apenas mais uma graça do mundo que você apenas começava a descobrir? À noite eu sonho, minha filha, que caminho até o cemitério e a arranco de lá. Abro aquele caixão como se fosse um porta-joias e resgato da escuridão e assim também eu saio do escuro onde estou desde que você passou numa caixa. E nunca mais, nunca, você sairá de novo do meu útero.

Disseram que você poderia morrer, afinal você era velho. Ouvi aquele animal falar coisas assim. Morrer os que têm que morrer. Deixaram você morrer, como deixaram tantos morrer. Não sabiam nada das suas pequenas delicadezas, nem das maldades, às vezes você gostava de ser mau, como quando ria ao me ver andando encurvada. Mas os que assim falavam não sabiam que você também me cobria, passava a noite me cobrindo, porque depois de velha meu sono se tornou errático e agitado, e eu jogava tudo longe como se tivesse raiva do cobertor. E você acordava para que meu pé não gelasse, e às vezes, nunca te contei, eu apenas fingia para ser cuidada por ti. E eu não pude. Não pude cuidar de você. Você teve febre, desapareceu dentro da boca do hospital e de lá foi vomitado num caixão lacrado. Eu não consigo explicar por que tenho medo de seguir o teu caminho, e o presidente do meu país diz que os velhos estão autorizados morrer. Não sei o que se passou comigo, eu queria te contar e talvez você soubesse, mas murchando entre dobras de pele enrugada (você lembra como a minha pele era lisa? Já não há ninguém para lembrar que a minha pele foi lisa), chorando dia após dia umas lágrimas secas que me esfolam os olhos ruins, eu ainda quero viver. E não sei para quê. Você saberia, você sempre sabia dos meus porquês.

Desde que ela desapareceu, porque para mim haverá de ser sempre um sequestro, já que não a vi, não a preparei, não a abracei, não pude dizer nada perto dos ouvidos dela. Desde que ela desapareceu só consigo pensar naquela penugem que ela tinha na nuca. Como se uma parte dela nunca tivesse desistido de ser bebê apesar de já ser uma mulher adulta. Quando ela era dura, no trabalho, eu ria para dentro de mim, porque só eu sabia da penugem que ela escondia. Só eu conhecia aquela verdade mais absoluta que qualquer outra que ela vendia ao mundo. E era isso que fazia com que me sentisse especial. Mesmo que ela fosse dura também comigo mais vezes do que seria necessário, ela me deixou chegar onde ninguém mais tinha alcançado, como um pico do Everest só meu, e me deixou ver. E agora, também a penugem está no silêncio dos mortos que não conseguem descansar porque não foram velados.

Eu cresci lendo histórias sobre a pandemia, em especial na Idade Média. As grandes pestes que devastavam um continente inteiro. Eu tentei convencer os Médicos Sem Fronteiras a me deixar acompanhá-los numa epidemia de ebola em Uganda anos atrás. Eu testemunhei como a doença de Chagas tinha se tornado uma maldição que atravessava ― e matava e marcava ― gerações de camponeses bolivianos porque poucos se interessavam em barrar aquelas mortes e assim aquilo que é evitável vai se tornando imutável. Eu já era repórter quando a Aids matou alguns dos meus ídolos. Ser jornalista é também aceitar que terá sua vida assinalada por mortes de quem nunca conheceu.

Quando a pandemia de covid-19 chegou, ela não me surpreendeu. Quem escreve sobre a destruição da natureza, sobre a emergência climática, sabia que o tempo das pandemias chegaria. Gritamos há anos, e os indígenas, que sabem mais, há décadas. Quando as primeiras notícias chegaram eu estava num navio do Greenpeace, na Antártida, e ouvia as explosões dos icebergs. O que pode ser mais aterrador do que o continente gelado sem gelo? E então os jornalistas chineses que nos substituiriam na próxima etapa não puderam vir. E quando chegamos ao aeroporto, no Chile, havia pessoas de máscaras por todo canto.

Há muito eu tento me preparar para o abismo que a minoria dominante do planeta, as grandes corporações, os bilionários que arrancaram suas fortunas da natureza, os governantes e os executivos que os servem, cavaram para todos nós. Mas eu nunca me preparei para o que está acontecendo no Brasil agora. E é com isso que não consigo lidar. Eu não consigo lidar com a indiferença.

Há dois acontecimentos simultâneos e conectados no Brasil, o que o torna diferente de outros países do mundo nesta pandemia. Um é a covid-19, que aqui atingiu proporções de catástrofe, tornando o Brasil um dos países mais afetados do mundo. O outro é a ação deliberada de Jair Bolsonaro e de pessoas, militares e civis, que ocupam cargos no seu Governo para, por um lado, deixar a covid-19 avançar e matar, por outro ampliar as condições para que ela mate mais.

Já escrevi bastante sobre os atos governamentais, sobre a campanha oficial de desinformação, sobre as declarações públicas de Bolsonaro. Não há como analisar o impacto da covid-19 no Brasil sem relacioná-lo com a ação intencional do Governo Federal de deixar morrer: a população em geral, e por consequência os mais pobres, o que significa os negros (pretos e pardos), que representam tanto a maioria da população quanto a maioria dos mais pobres. E sem relacionar com a ação deliberada de ampliar as condições para que a doença mate mais, caso explícito dos povos indígenas, bem fundamentada nos pedidos de investigação de Bolsonaro por genocídio e outros crimes contra a humanidade que já chegaram ao Tribunal Penal Internacional.

A covid-19 e a suspeita de crimes contra a humanidade praticados por Bolsonaro e por seu Governo estão intimamente relacionadas no Brasil e não há como dissociá-las em qualquer análise sem promover o apagamento de fatos documentados. O que eu não imaginava é que, diante das evidências de um genocídio, a maior parte da sociedade silenciaria. O que eu não imaginava era ouvir: “Você está banalizando a palavra genocídio”. Não seria você que estaria banalizando a morte?, eu respondo. A dos outros, claro. São sempre os outros os que podem ser sacrificados.

Um negro, uma negra, talvez dissesse à branca que eu sou. Como você acha que nos sentimos todos esses anos, enquanto nossos filhos morriam à bala e as pessoas se limitavam a “tocar a vida”? Um indígena, uma indígena talvez lembrasse à branca que eu sou. Como você acha que nos sentimos em todos esses cinco séculos, enquanto sua sociedade ora nos exterminava, ora tentava nos assimilar, ora ambos, até hoje?

Sim. Essas perguntas, que apontam para a normalização do genocídio pela minoria dominante da sociedade, respondem. Efetivamente respondem. Mas, ainda assim. Ainda assim há um limite que foi ultrapassado no Brasil da covid-19. Se a pandemia acabasse hoje, e está longe de acabar, o que temos diante de nós é uma população de mais de 130.000 cadáveres de mulheres e de homens, a maioria deles adultos, mas também crianças e bebês recém-nascidos, uma população maior do que a da maioria das cidades brasileiras feita de corpos mortos. De vidas interrompidas. E cada uma destas vidas interrompidas deixou, segundo as projeções estatísticas, cerca de 1 milhão de enlutados, o equivalente a população inteira de algumas capitais do Brasil e do mundo que perderam pai, mãe, irmão, irmã, tio, tia, filhos, amigos íntimos.

E sabemos ― é inaceitável que alguém possa ainda mentir que não sabe ― que parte destas pessoas poderiam ainda estar vivas se Bolsonaro e seu Governo tivessem: 1) combatido a covid-19 seguindo as normas da Organização Mundial da Saúde; 2) liberado aos estados os recursos existentes no momento necessário, em vez de retê-los para alimentar disputas políticas; 3) mantido no ministério da Saúde um ministro que conhece o assunto e uma equipe gabaritada de sanitaristas e epidemiologias que já estavam lá; 4) agido emergencialmente em vez de negar a gravidade da doença; 5) orientado corretamente a população em campanhas responsáveis e bem fundamentadas; 6) feito todos os esforços para barrar a chegada da pandemia às terras indígenas, em vez de vetar água potável, leitos emergenciais e campanha de informação, entre outros barbarismos; 7) agido como chefe de Estado e dado o melhor exemplo.

O Brasil tem hoje uma nova geografia humana. E ela não é acidental. Temos essa cratera de mais de 130.000 pessoas a menos, como luzes que se apagam num curto espaço de tempo, deixando aqueles que as amavam no escuro de um luto que sequer é reconhecido. Uma cratera que segue se ampliando na velocidade de centenas de mortos por dia. Isso já é algo para além do possível.

Mas há mais. Há muito mais.

Em minha última coluna, eu perguntava: Como poderá barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer? Que naturalizou todas as formas de morte a ponto de tornar a covid-19 mais uma delas? Que normalizou que são os mesmos de sempre os que mais morrem e então tipo tudo bem? Que naturalizou o inominável que nos governa? Era uma pergunta difícil, a pergunta de quem vive num país em que o futuro foi negado à maioria, consumida pela mera reprodução das forças num presente contínuo.

Agora, minha pergunta é mais delicada. O que será dos que restarem quando a pandemia acabar? O que será dos que vivem esse luto que ninguém mais na história dessa humanidade viveu?

Em todos os países do mundo há pessoas lidando, nas mais diversas línguas e culturas, não apenas com a perda de quem amavam, mas com a despedida que não houve, com o cuidado que foi vetado pelo risco de contaminação, lidando com caixões lacrados e túmulos que não escolheram, quando não com a indignidade das valas comuns. Lidando com os abraços que não puderam acontecer. Essa tragédia ― ainda que com a evidência de que houve uma série de abusos e de descuidos evitáveis nos processos e nos sistemas de saúde ― é intrínseca a uma pandemia que só pode ser barrada impedindo a replicação do vírus em outros corpos, só pode ser barrada com isolamento físico (não social) e protegendo-se fisicamente (não socialmente) do outro.

A questão, no caso do Brasil, é que há mais.

Os enlutados enfrentam uma dor extra, que é a da invisibilidade pela negação da gravidade da pandemia. Famílias inteiras se dilaceram enquanto tantos festejam nos bares, buzinam nas ruas, desrespeitam o distanciamento, aglomeram-se. Se aqueles que escolheram ignorar a pandemia soubessem da dor dos que foram atingidos pela morte, será que mudariam, será que cuidariam, será que fariam o gesto?

“É atroz”, diz uma mulher que perdeu o marido, assistir a esse espetáculo das ruas cheias. Faz com que pareça que a morte do meu marido não existiu. Onde está ele então, ele que eu deixei no hospital e nunca mais vi? O que então é real? As ruas cheias onde a pandemia é uma ‘gripezinha’ ou meus filhos e eu, perdidos numa casa onde ele não está? Como as pessoas podem estar nas ruas festejando enquanto uma parte da população está morrendo?”.

Liguei para Bruna Tabak, para que ela me ajudasse a compreender o que vivemos. Psicóloga especializada em cuidados paliativos, ela e outras duas profissionais atuam com grupos de familiares na Rede Apoio Covid-19 – acolhimento, escuta e memórias da pandemia, formada inteiramente por voluntários. “A palavra que se repete em muitas falas é arrancada”, conta Bruna. “Os familiares sentem que tiveram aqueles que amam arrancados. Com o arrancamento, é um rombo que se abre.”

Será que a sociedade vai imitar os militares da ditadura e falsificar o passado para se absolver dos horrores feitos em seu nome? Será que apagarão a história, deixarão os mortos desaparecerem nas valas comuns, silenciarão as viúvas, esperarão que os órfãos se suicidem?

Como fechar esse buraco numa sociedade que normalizou tanto a morte quanto a dor de quem perde, fazendo com o mais real de uma vida, que é a morte, seja encoberto por uma aura de irrealidade pela negação compartilhada da crise sanitária mais grave em um século? Bruna teve a generosidade de compartilhar algumas frases surgidas nos grupos de vivência do luto. Outras, encontrei em depoimentos na internet.

“Foi a pior coisa que nos aconteceu. Me senti devastada, sem rumo e sem chão. E como estamos vivendo dias anormais, ainda penso que não foi real.”

“Entreguei meu marido no hospital e recebi de volta três papeizinhos.”

“Eu não deveria ter levado o meu marido ao hospital. Nunca mais o vi.”

No hospital aquele que amamos é colocado fora do alcance, nem uma prisão de segurança máxima seria tão efetiva. A ligação prometida para aquele mesmo dia, com notícias, acontece três dias depois.

“O vírus não passa pelo telefone. Por que não ligaram pra gente?”

E nestes três dias tudo aconteceu, e ele estava sozinho.

Outra queria pelo menos ter a Bíblia de volta, ele era pastor. Aquela Bíblia, não outra, mas sim aquela, que o acompanhou por toda uma vida. Informaram à família que o livro estava contaminado, que fora “descartado”, a palavra terrível. Ele também teria sido “descartado”?

Vocês têm cinco minutos para se despedir. Pelo tablet. A pessoa que era tudo morria. O que você diz em cinco minutos? Como se vive com essa última imagem em um tablet? E o que você diz para a pessoa que te chama de “privilegiado” porque você pôde pelo menos ter uma imagem, enquanto ela atravessa as noites sem certeza do que havia naquele caixão que não pôde abrir? Quem te abraça diante do horror se agora você é também um risco, um possível vetor? Quem dá o contorno do seu corpo que se perdeu?

“Será que ninguém vê que eu sangro, aqui, bem aqui, onde ele me foi arrancado?”

“Como alguém que perdeu um familiar por covid-19 faz para sobreviver.” Ela preenche o espaço de busca do Google com esse pedido de socorro. E espera por uma resposta.

“Eu sou um milagre”, ela se espanta. “Como estou sobrevivendo só com metade do coração?”

“Não poder me despedir me causa uma dor que vou carregar para o resto da minha vida.”

No momento do sepultamento, “sem despedida, sem poder olhar ele pela última vez, sem poder tocar as mãos e agradecer por tudo”.

“Na última vez que falei com a minha mãe ela me pediu, pelo celular, que a buscasse, que a tirasse do hospital. Nunca mais a vi, nem pela tela.”

“Não, não me diga para ter pensamento positivo. Não me diga para ser forte. Ser frágil é a prova de que sou humana. Me permita ser humana.”

Receber a notícia daquela maneira, “me matou viva”.

Ela sequer encontrou o caminho de volta para casa, nem sabe para onde levará os filhos, quando é atingida pela cidadã de bem: “Você tem certeza de que seu marido tomou cloroquina? Porque se tivesse tomado ele estaria vivo”.

Bruna Tabak fala de “uma dor que não descansa”. A voz da paliativista, a voz daquela que escuta, dói. Não é verdade que o verbo doer só tem a terceira pessoa. Eu doo, tu dóis, ele/ela dói, nós doemos, vós doeis, eles/elas doem. Gente dói. O que são então todos esses outros que fingem não nos ver?

A tragédia do Brasil é que os mortos são tratados com a mesma indiferença reservada aos vivos. Quem estuda o morrer sabe que a forma como a morte é tratada reflete o valor reservado à vida. O vírus revelou-nos. De uma vez, como um esparadrapo arrancado com apenas um gesto.

Essa é a diferença no Brasil. O luto pela morte dos que amamos é parte inescapável da experiência de viver. Este luto é elaborado de forma singular, própria, por cada pessoa que perde. Mas, no Brasil da covid-19, o direito ao luto é violado por uma dupla perversão. A doença que matou seu pai, sua mãe, seu irmão ou irmã, avô ou avó, filho ou filha tem sua gravidade negada pela autoridade máxima do país. Para piorar, essa autoridade não está sozinha. A aberração de negar a gravidade de uma pandemia é compartilhada por milhões de pessoas, os milhões que lotam os espaços públicos sem necessidade, fazendo com que o real da morte se torne algo irreal. O delírio, quando coletivo, corrompe a realidade.

Torna-se muito mais difícil fazer luto quando esse luto não é reconhecido ― e não é reconhecido em frases de Jair Bolsonaro como “E daí?”, ou “Vamos tocar a vida”, ou “Está morrendo gente? Tá. Lamento. Mas vai morrer muito mais se a economia continuar sendo destroçada” ou “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”. No luto da covid-19, os brasileiros que perderam não tem o reconhecimento da magnitude da sua perda porque a morte pela doença foi normalizada. Sua dor, então, torna-se uma carta que não chega ao seu destino, uma carta que não é aberta pelo outro. É esse buraco que os memoriais tentam preencher, sabendo que podem apenas tecer uma rede em volta dele.

Essa negação da dor que silencia os enlutados e os condena ao ostracismo, mesmo entre seus vizinhos, é da ordem do traumático. Mas o que acontece hoje, no Brasil, é ainda pior do que o pior. Sobram indícios de que as mortes por covid-19 podem estar conectadas aos crimes de genocídio ou de extermínio, como já foi amplamente mencionado neste texto. Esses indícios também são negados por uma significativa parcela da população. E mesmo por alguns estudiosos do tema, que preferem, por razões que a razão não desconhece, afirmar que é “apenas incompetência” de Bolsonaro.

Se há fortes indícios de que a pessoa que você perdeu poderia estar viva não fosse o processo genocida em curso, o que isso faz com o seu luto? Se os responsáveis por investigar as ações do presidente e dos ministros e funcionários de seu Governo não investigam e o Judiciário não julga, o que isso faz com o seu luto? Se o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), não vê nas suspeitas que envolvem o tratamento da covid-19 pelo Governo nenhuma razão para levantar o traseiro da pilha de pedidos de impeachment de Bolsonaro, o que isso faz com o seu luto? Como você faz para que seu cérebro “esqueça” que sua mãe ou seu filho podem ter sido vítimas de um crime contra a humanidade e, caso “apague” essa informação, o que isso fará com a sua sanidade? Sem justiça, o luto está sendo convertido em violência. Só haverá luto para aqueles que perderam os que amavam na pandemia se houver luta por responsabilização.

As instituições já se mostraram incapazes ― ou sem vontade ― de investigar e julgar Bolsonaro mais de uma vez, tanto no plano do Judiciário quanto no do Legislativo. A negação de justiça, que é o que hoje vivemos no Brasil, violenta o luto dos familiares de mortos por covid-19. Sem possibilidade de encontrar justiça no Brasil, organizações da sociedade civil moveram petições no Tribunal Penal Internacional, mas este processo é lento ― e a dor demanda urgência.

Não sei como lidaremos com o fato de testemunhar um genocídio e, com exceção de alguns núcleos de resistência, não realizar como sociedade o esforço mínimo para barrá-lo. Ao deixar de fazê-lo, abandona-se vizinhos, familiares, parentes. Mas abandona-se, individualmente, algo constituinte do que é ser uma pessoa humana. E, coletivamente, quando abdicamos de barrar os horrores que são feitos em nosso nome, abdicamos do coletivo. Já não somos mais nada então, para além de um amontoado de quase 212 milhões de pessoas circunscritas por uma convenção político-geográfica. O Brasil, que já vinha se destroçando, terá de se haver então com algo ainda não nomeável no âmbito do horror. Não se pode passar por cima de algo desse tamanho sem se perder por completo.

Temo, porém, o rearranjo caso não seja feita justiça e não exista reconhecimento dos mortos nem do luto dos que perderam. Será que a sociedade vai imitar os militares da ditadura e falsificar o passado para se absolver dos horrores feitos em seu nome? Será que apagarão a história, deixarão os mortos desaparecerem nas valas comuns, silenciarão as viúvas, esperarão que os órfãos se suicidem? É assim que finalmente se fará o desacerto de contas deste país com sua desmemória?

Bolsonaro, assim como todos os apagamentos que ele representa, terá então vencido, porque conseguiu fazer de cada brasileiro um cúmplice, um igual a ele. E agora a maioria já não poderá falar sem denunciar a si mesma. Onde você estava? O que você fez? A sociedade brasileira vai recusar essas perguntas, cada indivíduo vai recusar essas perguntas. E tratará de destruir quem insistir em seguir perguntando.

Há bem pouco do que se orgulhar na história do Brasil, esse país construído sobre corpos humanos e costurado com o fio interminável da violência. Mas isso, isso que estamos deixando acontecer, isso é terrível demais até para nós.

Qualquer um

A nomeação por Richard Nixon de um notório medíocre para a Suprema Corte americana foi defendida com o argumento de que a mediocridade também precisava ser representada num governo. Presumivelmente por modéstia, Nixon não se escalou entre os medíocres representativos. Poderia ter se autodefinido como um exemplo extremo do que uma democracia tem de admirável, a oportunidade, pelo menos teórica, que oferece a qualquer um de chegar à Presidência da República. É verdade que o mesmo exemplo serve para o que uma democracia tem de mais perigoso, a oportunidade que oferece a qualquer um — mesmo um Nixon, um Trump ou, meu Deus, um Bolsonaro & Filhos — de chegar à Presidência da República. Faça um teste. Se pergunte o que você prefere, o velho ideal ciceroniano de uma casta preparada para o poder, à prova de qualquer medíocre e com o direito divino de governar, mas dada a injustiças e calhordices como toda aristocracia, ou o ideal democrático da igualdade de oportunidades, pelo menos teórica, com o risco de eleger qualquer um.

O mesmo Nixon, noutro contexto, falando sobre a economia americana na sua época, soltou uma frase surpreendente: “Somos todos keynesianos, agora”. A era Nixon, que terminou com sua renúncia depois do escândalo Watergate, não teve nada a ver com Keynes, que defendia a interferência do Estado na economia e pregava a responsabilização social da política financeira internacional desde o fim da Segunda Guerra Mundial — o que leva a crer que Nixon leu os livros errados, ou se preparava para aderir a Keynes quando foi derrubado. Hoje a era Nixon é vista como uma espécie de antessala da era cuja frase-tema foi dita não por um economista ou um político, mas pelo Michael Douglas no papel de Gordon Gekko, a fera de Wall Street no filme do mesmo nome, do Oliver Stone. A frase é: “Greed is good” (Ganância é bom). É a ganância desenfreada que move a era dos trilionários e gerentes de fundos sem escrúpulos e agita o sono sem descanso de Keynes.